sexta-feira, 25 de novembro de 2022

ESCRAVOS DO BARRO VERMELHO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Um industrial de cerâmica disse-me, em segredo, que o sector em Portugal estava estragado porque a maior parte das fábricas tinham escravos e, por isso, faziam preços muito baixos. Quem pagava salários de acordo com a lei e garantia condição dignas aos trabalhadores, corria o risco de falência. É preciso acabar com isto, quanto mais não seja para salvar os desgraçados que vivem pior que os meus cães.

Nessa altura trabalhava no Jornal de Notícias, o de maior tiragem em Portugal. Fui saber dos escravos do barro vermelho. O que vi, era mais feio do que me foi pintado pela minha fonte. Dezenas de africanos (alguns angolanos e muitos guineenses) dormiam no chão dos armazéns e tinham apenas uma latrina. Quem estivesse apertado, ia ao mato. Nem sequer tinham um chuveiro. Só descansavam ao domingo, por causa da missa. Recebiam menos de metade do salário mínimo nacional e não tinham qualquer protecção social. Passavam fome. Fiz uma série de reportagens denunciando a escravatura, em pleno sucesso do cavaquismo. 

As minhas reportagens levaram a outras denúncias anónimas. Descobri que todas as grandes obras do betão e asfalto no consulado de Cavaco Silva tinham trabalhadores escravos. Aos milhares. Desde as estradas à construção da sede da Caixa Geral de Depósitos em Lisboa. O trabalho escravo era regra. Mais reportagens. Para daí lavarem as suas mãos, os “donos” das obras (o Estado Português era o maior…) escondiam-se atrás de subempreiteiros, figuras sinistras que faziam cursos técnico profissionais e depois, devidamente certificados, vendiam os escravos. Eu comprei dez a um subempreiteiro. O negócio foi devidamente fotografado. 

As minhas reportagens não tiveram qualquer impacto. O Governo de Cavaco Silva assobiou para o lado. A Inspecção do Trabalho não quis saber. As autoridades policiais tinham mais que fazer. O sucesso do cavaquismo não podia ser beliscado com essa coisa dos pretos que eram escravizados nas grandes obras públicas. Quanto a mim, fiquei mal visto, como sempre. E recebi insultos misturados com ameaças de morte. 

Ainda no Porto fiz uma reportagem na qual denunciei a existência de grupos organizados (os integrantes eram quase todos muito jovens) que faziam operações de “arrebenta aos paneleiros”. Perseguiam e agrediam homossexuais e os “travesti”. Ninguém reagiu. Indiferença total. Hoje Portugal continua a ser o paraíso dos escravocratas. Mas as coisas mudaram. Ontem as autoridades policiais e judiciais detiveram 30 suspeitos de negociarem escravos no Alentejo. O cavaquismo acabou. 

Perseguições a homossexuais ainda existem. Mas já não há grupos organizados para darem o “arrebenta”. Ainda que a mentalidade homofóbica estejam em alta, sobretudo desde que o sistema (herdeiros do cavaquismo…) criou uma coisa sinistra chamada partido Chega. 

Este quadro é igual nos países da União Europeia, no Reino Unido e nos EUA. Em muitos países de África e da Ásia. No Brasil de Bolsonaro foi o dilúvio! Mas pelos vistos só estão escandalizados com os escravos e as perseguições aos homossexuais do Catar. Querem afastar-nos do Mundial de Futebol! Eu passo. Comecei a minha carreira desportiva no xadrez, como o Presidente João Lourenço. Um dia propus ao meu adversário um empate e ele, furioso, atirou-me com o rei à cara. Partiu-me uma lente dos óculos. Desisti dos desportos violentos.

Encontrei no futebol, a minha praia. É uma espécie de xadrez nos relvados, nos pelados e nas ruas dos bairros pobres. As peças correm que se fartam. Adoro o futebol. Os futebolistas mais espantosos que alguma vez passaram pelos campos de futebol são africanos. Alguns, angolanos. Em todos os clubes da Europa, onde o futebol é rei, os africanos são estrelas brilhantíssimas. Os melhores clubes do mundo vivem à custa da arte e talento de futebolistas africanos. 

Apesar disso, o continente africano apenas teve direito ao Mundial da África do Sul. Ano após ano, os muitos futebolistas africanos excepcionais são preteridos por outros menos valiosos na eleição para “melhor do mundo”. George Weah lá ganhou a Bola de Ouro, foi futebolista Europeu do Ano e Jogador do Ano da FIFA. Excepção! 

Este ano o Bola de Ouro foi o francês Karim Benzema, de origem africana. Já não é mau. Saiu-nos a aproximação. Mas o genial futebolista do Real Madrid ficou à frente do extra terrestre Sadio Mané, senegalês, um feiticeiro da bola ao nível do Barros Chapeleta Rei do Congo e do Faria, estrelas do Clube Desportivo do Negage, do Miala, do Recreativo do Uíje, e do Milo Vitória Pereira, do Futebol Clube do Uíje.

Os africanos são roubados em todos os mundiais. Neste, o árbitro despachou o Senegal, dando a vitória à Holanda, pátria de sanguinários corsários, ladrões dos mares e colonialistas no século XXI. O Gana foi roubadíssimo por um árbitro comprado pelo Cristiano Ronaldo. Ele compra tudo: Mulheres, filhos, golos, clubes, títulos, records e até comprou a selecção de Portugal. Mais poder de compra do que ele, só mesmo o Grupo Carrinho.   

Muda o disco. Amanhã, os mercenários do M23 vão ter de recuar para o Ruanda. Assim ficou decidido na cimeira de Luanda, sem o presidente Kagame. Mas está decidido. É uma espécie de trégua do Natal. Porque daqui a uns tempos regressam os bandidos roubando para os países ocidentais e as multinacionais, os abundantes recursos naturais do Leste da RDC. 

O Ocidente está tão falido que já nem consegue comprar as matérias-primas de que necessita. A OTAN (ou NATO) destruiu a Líbia para roubar o petróleo. Escolheram aquele país africano porque lá é baratinho tirar o petróleo do subsolo. Destruíram a Síria para roubar o gás. Querem destruir o Irão para roubar tudo. Querem destruir a Federação Russa para manterem o modo de vida europeu, que assenta no latrocínio, na exploração desenfreada e na corrupção. 

Quanto ao Catar não há problema. A ordem é rica, os frades são poucos e os EUA levam mais de metade dos lucros do do gás e do petróleo. Se o emir ousar reclamar, vai preso para a base militar dos gringos. Como vive frustrado por ajoelhar permanentemente ante os ocupantes, ele escraviza os emigrantes e persegue os homossexuais. Mas hoje o Tio Célito chegou a Doha e vai acabar com a farra contra os direitos humanos. O emir que se cuide. Ainda acaba como porteiro do Palácio de Belém.

Última hora. O Cristiano Ronaldo comprou à FIFA o direito a jogar de muletas ou mesmo em cadeira de rodas. Agora é que vai ser marcar golos. Sai do Catar como campeão do mundo.

*Jornalista

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