sábado, 3 de dezembro de 2022

EUA | VIDEOGAMES E A PROPAGANDA DE GUERRA DO PENTÁGONO

Fidel, Chávez, Soleimani… Nas telas, missões miram líderes políticos e ajudam a máquina de guerra estadunidense a impor sua visão de mundo. Enquanto isso, nos corredores da Casa Branca, negociações enriquecem as indústrias de jogos e armas

Revista Opera* | em Outras Palavras | #Traduzido em português do Brasil

Em 2013, a franquia Call of Duty lançou um jogo que tinha como cenário a Venezuela, e cujo objetivo consistia em derrubar um líder que representava Hugo Chávez. O jogo foi lançado com o nome Call of Duty: Ghosts.

Este tipo de projeto se popularizou na indústria cultural estadunidense justamente quando Washington começava a classificar a Venezuela como uma “ameaça inusual e extraordinária”, tornando-se evidente que o objetivo era fabricar consentimento para legitimar a agressividade norte-americana contra o país latino-americano.

Talvez por isso, dizer que o jogo é claramente uma ferramenta de propaganda estadunidense possa não parecer a coisa mais surpreendente do mundo; no entanto, dar conta do óbvio não é suficiente. É importante ter as informações para sustentar tal afirmação.

Graças a uma investigação do jornalista Alan MacLeod no Mintpress News, baseada, por sua vez, em documentos obtidos pelo jornalista Tom Secker por meio da Lei de Liberdade de Informação, podemos conhecer os detalhes da conexão existente entre os criadores de Call of Duty e o governo estadunidense, bem como sobre a intenção de que esse tipo de jogo promova os interesses dos Estados Unidos em matéria de segurança nacional.

O interesse de Washington em conseguir recrutas por meio dos jogos

A Activision Blizzard é a empresa por trás da franquia Call of Duty. Ela lançou outros títulos famosos no mundo dos jogos, entre eles Guitar Hero, Warcraft, Starcraft, a série Tony Hawk’s Pro Skater, Crash Bandicoot e Candy Crush Saga. No entanto, a estrela da produtora é o Call of Duty, responsável por 76% de sua receita anual.

Os documentos citados por MacLeod revelam que as forças militares dos EUA colaboram com a empresa para que ela possa desenvolver seus produtos. Um dos exemplos está na produção de Call of Duty: Modern Warfare 3 e Call of Duty 5, que contaram com o apoio do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos (USMC, na sigla em inglês). Depois de solicitar o apoio do USMC durante a convenção de entretenimento E3 em Los Angeles, em 2010, os produtores do jogo tiveram acesso a hovercrafts (aerobarcos), um tanque e um avião C-130.

Dois anos depois, o USMC voltou a colaborar com a produção de Modern Warfare 4, e os produtores da Activision Blizzard tiveram acesso a veículos militares aéreos e terrestres. Tais máquinas de guerra estão presentes no jogo.

A colaboração seguiu ao longo da década. O artigo de MacLeod menciona um episódio de setembro de 2018. Nesta ocasião, a Força Aérea estadunidense convidou a produtora do jogo, Coco Francini, junto a um grupo de executivos do entretenimento, à sua sede em Hurlburt Field, na Flórida. Segundo os documentos apurados, a Força Aérea tinha o interesse de mostrar seu “hardware” a esse grupo para que a indústria de entretenimento fosse uma defensora mais credível da maquinaria de guerra estadunidense.

Francini pôde observar o funcionamento de helicópteros CV-22 e aviões AC-130, que aparecem na franquia Call of Duty.

Um oficial das Forças Aéreas escreveu em um email o seguinte sobre o grupo: “Temos um montão de gente que trabalha nas futuras superproduções (Marvel, Call of Duty, etc.) entusiasmados com esta viagem”, enquanto em outro email é dito que o objetivo da visita era “proporcionar aos produtores ‘de peso’ uma ‘imersão no Comando de Operações Especiais das Forças Aéreas (AFSOC) focada nos aviadores táticos especiais e nas capacidades ar-terra”, diz o artigo.

Outra parte do texto de MacLeod cita a opinião do jornalista Tom Secker sobre a colaboração entre os militares estadunidenses e a empresa de jogos. Secker diz que, ao fazê-lo, as Forças Armadas conseguem uma imagem positiva que pode gerar mais recrutamentos. “Para certos grupos demográficos de jogadores, é um portal de recrutamento, alguns jogos de tiro em primeira pessoa têm anúncios integrados aos próprios jogos […] Inclusive sem esse tipo de esforço explícito de recrutamento, jogos como Call of Duty fazem a guerra parecer divertida, emocionante, um escape da monotonia de sua vida diária”, afirma Secker.

Altos funcionários da Casa Branca acabam na indústria de jogos

Os vínculos entre o poder estatal dos Estados Unidos e a indústria de jogos não se detêm nas colaborações mencionadas anteriormente. Há ex-funcionários do governo estadunidense que agora trabalham na Activision Blizzard, um padrão que se repete nas empresas de redes sociais, sobre o qual o MintPress tem outras investigações publicadas (resenhadas aqui e aqui).

Neste caso, o artigo começa com a principal assessora da Activision Blizzard: Frances Townsend. Antes de ir trabalhar na companhia, ela “passou sua vida trabalhando para subir os degraus do estado de segurança nacional”, de acordo com MacLeod. Townsend ocupou o posto de chefe de inteligência da Guarda Costeira e Condoleezza Rice a nomeou Secretária Adjunta de Estado para Contraterrorismo em 2003. Um ano depois, passou a ser membro da Junta de Assessoria de Inteligência do presidente George W. Bush. MacLeod sintetiza a passagem de Townsend pela Casa Branca: “Como a principal assessora da Casa Branca sobre terrorismo e segurança nacional, Townsend trabalho em estreita colaboração com Bush e Rice, e se converteu em um dos rostos da guerra contra o terrorismo daquela administração. Uma de suas principais conquistas foi levar o público estadunidense a um constante estado de medo pela suposta ameaças de mais ataques da Al-Qaeda (que nunca chegaram a ocorrer).”

Frances Townsend trabalha também com outras organizações influentes na política exterior dos EUA: o Atlantic Council, o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais e o Centro de Relações Exteriores.

O artigo menciona ainda outros empregados-chave da Activision Blizzard que trabalham para o Atlantic Council: Chance Glasco, membro principal não-residente do think-tank. Na indústria de jogos, Chase é o cofundador da Infinity Ward, estúdio que desenvolveu o Call of Duty. E também Dave Anthony, outro membro não-residente do Atlantic Council que se juntou ao grupo em 2014. Seu trabalho como escritor e diretor de Call of Duty: Black Ops foi muito importante para o êxito da franquia.

Sobre Anthony, diz MacLeod: “não esconde que colaborou com o estado de segurança nacional dos Estados Unidos enquanto estava criando a franquia Call of Duty. ‘Minha maior honra foi ter me consultado com o coronel Oliver North sobre a história de Black Ops 2’declarou publicamente, agregando: ‘há vários pequenos detalhes dos quais nunca teríamos sabido se não fosse pela sua participação’”.

Como membro do Conselho de Segurança Nacional, Oliver North administrou o dinheiro da venda de armas ao governo iraniano que mais tarde seria usado para financiar grupos armados na Nicarágua para atacar o governo sandinista, no famoso escândalo Irã-Contras da década de 1980.

As questionáveis contratações da Activision Blizzard, no entanto, não terminam aí. A estes empregados se somam Brian Bulatao e Grant Dixon. O primeiro foi diretor de operações da CIA sob a gestão Mike Pompeo, e o acompanhou ao Departamento de Estado dos EUA quando Pompeo foi nomeado Secretário de Estado da administração Trump. Ali, Bulatao ocupou o cargo de subsecretário de Estado da gestão.

MacLeod escreve que os ex-companheiros de trabalho de Bulatao o descreveram “como um ‘valentão’ que trouxe uma ‘nuvem de intimidação’ sobre o local de trabalho, pressionando repetidamente para que ignorassem possíveis ilegalidades ocorridas no departamento.”

Após o fim do mandato de Donald Trump, a Activision Blizzard contratou Bulatao, mesmo sem que ele tivesse nenhuma experiência prévia na área de jogos. Ele tem o cargo de diretor administrativo na empresa.

Grant Dixon, por sua vez, que atualmente é diretor legal da empresa, foi advogado associado do presidente George W. Bush entre 2003 e 2006. Dixon o aconselhou “sobre muitas das atividades mais controversas de sua administração (como a tortura e a rápida expansão do estado de vigilância”, de acordo com o artigo.

O advogado da Activision Blizzard também ocupou os postos de vice-presidente sênior, conselheiro geral e secretário corporativo da fabricante de armas Boeing.

Manipular os jogadores para que defendam a visão estadunidense do mundo

No começo deste texto, falamos da missão particular do jogo Call of Duty: Ghosts. Matar presidentes ou líderes de países que não comungam da política dos Estados Unidos é um desafio virtual recorrente ao qual os consumidores da franquia são expostos. No jogo anterior, Call of Duty Black Ops (2010), os jogadores devem matar o líder cubano Fidel Castro para completar sua missão. MacLeod detalha que se o disparo do jogador for dirigido à cabeça do líder, ele é recompensado “com uma cena extra sangrenta em câmera lenta, e obtêm um troféu de bronze ‘Morte aos ditadores’”.

O último jogo da série estreou há menos de um mês e segue a mesma linha. Em Call of Duty: Modern Warfare II, os usuários são convidados a jogar um míssil sobre um personagem chamado Ghorbrani, uma referência ao general iraniano Qassem Soleimani, que foi assassinado por um ataque da Força Aérea dos Estados Unidos em 2020. O jogo também conta com alguns russos com os quais o fictício general chega a um acordo para fornecimento de armas.

A franquia não só celebra os maiores crimes cometidos pelo governo estadunidense, como também falsifica situações a favor da propaganda estadunidense, se aproveitando do fato das histórias serem fictícias.

Em Call of Duty: Modern Warfare (2019), os eventos se desenvolvem em um país inventado do Oriente Médio, que obviamente ilustra a Síria durante a guerra. Na história, as tropas estadunidenses e britânicas chegam para lutar contra militantes da al-Qatala, uma referência à al-Qaeda, mas a trama também coloca o jogador para lutar contra “terroristas russos” que, segundo o jogo, matam a população civil e usam armas químicas.

Há uma menção à “estrada da morte” no jogo. Na obra, é dito que os russos dispararam contra a estrada, que era usada para a retirada de civis. Realmente houve tal episódio na história, mas ela não tem nada a ver com a Rússia. Nesse evento, ocorrido durante a Guerra do Golfo no Iraque, os militares dos EUA dispararam contra soldados iraquianos que se rendiam e fugiam, matando centenas deles.

Call of Duty não é uma série de jogos pouco conhecida ou marginal, mas sim uma das maiores e mais populares da indústria. Em 2020, trouxe quase 2 bilhões de dólares de lucros a seus desenvolvedores. Portanto, o impacto ideológico que tem sobre seus consumidores em todo o mundo é claramente importante, seja conquistando novos recrutas ou apenas defendendo a visão de mundo americana. Secker, consultado por MacLeod sobre a “estrada da morte”, explica: “Em uma cultura onde a exposição da maioria das pessoas aos jogos (e filmes, programas de televisão, etc.) é muito maior do que seu conhecimento dos acontecimentos históricos e atuais, estas manipulações ajudam a demarcar as reações emocionais, intelectuais e políticas dos jogadores. Isso ajuda a convertê-los em defensores mais gerais do militarismo, mesmo que não se alistem”.

A franquia foi considerada durante muito tempo uma das principais porta-vozes da propaganda estadunidense. Os detalhes sobre as conexões entre seus criadores, o Pentágono e o governo dos Estados Unidos ilustram muito bem o motivo.

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*A Revista Opera é um veículo independente fundado em 11 de abril de 2012, com a perspectiva de fazer um jornalismo contra-hegemônico e popular, que jogue luz sobre as pautas verdadeiramente relevantes do dia com um ponto de vista crítico.

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