Adelino Cardoso Cassandra | Téla Nón | opinião
Um dia após a suposta intentona que abalou o país, recebi, por SMS, de um grande amigo meu, dos tempos de estudante em Coimbra, com quem partilhei o quarto durante alguns anos, a seguinte mensagem: “Estou à espera de um artigo”. Também, por mensagem, fiz-lhe saber que não tencionava, naquele momento, escrever nada sobre a referida intentona, por razões profissionais momentâneas, prometendo-lhe, todavia, que lhe telefonava, no dia seguinte, para trocarmos algumas impressões sobre o tema em causa.
Em conversa com o meu amigo, no dia seguinte, convergimos na ideia que aqueles acontecimentos, sobretudo o massacre perpetrado aos supostos assaltantes no quartel das forças armadas, representam algo abominável e, como tal, condenável. Todavia, ele tentara convencer-me, com argumentos válidos e aceitáveis, que a situação momentânea no país é surpreendente e inesperada, com contornos incompreensíveis ou indecifráveis, fruto de um desvario momentâneo de um grupo específico de irresponsáveis, quer daqueles que cometeram a suposta intentona quer dos perpetradores do massacre no quartel das forças armadas, que culminou com a morte de quatro ou cinco pessoas.
No decurso da nossa conversa, tentei, contudo, convencer o meu amigo que, embora compreendesse a abordagem que ele fizera do problema em causa, eu defendia, no entanto, uma perspetiva analítica mais profunda e ampla do mesmo, consequência dos constrangimentos de natureza política e socioeconómica prevalecentes no referido contexto, há décadas, sendo que, para mim, aqueles acontecimentos não tinham nada de surpreendente ou inesperado.
De facto, recorrentemente tenho escrito sobre o rumo que a nossa sociedade tem seguido, e, para mim, estes acontecimentos não trazem nenhuma surpresa, muito pelo contrário, e até estranho o facto do impacto do mesmo não ter provocado um maior número de vítimas e mais estragos, quer em termos pessoais como patrimoniais.
Num país insular, com uma estrutura económica débil, com grandes desigualdades sociais, vivendo num contexto de explosão demográfica, comportando uma estrutura estatal frágil e, nalguns casos, em desagregação, a ideia de poder, como uma relação ou capacidade de agir ou influenciar a ação dos outros, passou a ser interpretado, por razões diversas, por quase todos os principais agentes políticos nacionais, como um instrumento privilegiado para manifestação de violência tendo como propósito a sua aquisição, manutenção ou extensão. Isto é a pura negação da política, no seu sentido mais ou menos lato.
Os sintomas da manifestação deste grave problema, que consome a nossa sociedade, podem ser constatados no conteúdo discursivo e práxis da maioria dos nossos políticos, na manifestação de desprezo e agressividade pelos adversários políticos, nas diversas formas de ódio, crescentemente difundidas nas redes sociais e nos contextos decisórios, baseadas na intolerância, tendo como propósito ofender, humilhar, apoucar, ridicularizar e intimidar.
Ou seja, os nossos protagonistas políticos, nalguns casos, comportam-se como aqueles cães que os donos engordam e dão um tratamento especial para participarem em lutas caninas, sendo que a disputa em causa só pode acabar com a morte de um dos animais. Este modus faciendi, enraizado há décadas na nossa sociedade, interiorizado como principal função da política no contexto em causa, reproduziu no contexto social e em determinadas instituições do país, comportamentos miméticos que passaram a ser considerados como modelo a seguir.
É isto, infelizmente, que acontece, quando os bens são escassos, numa sociedade em declínio moral e onde todos andam ao redor do mesmo. Nesta luta, participam claques, no terreno e nas redes sociais, que incentivam este propósito exterminador.
É esta, infelizmente, a fórmula política dominante neste momento em S.Tomé e Príncípe. Isto só poderia ter como resultado instabilidade política e confrontação permanente. Basta ver, por exemplo, que, nos últimos 12 ou 15 anos, quase todos os atos eleitorais para eleições legislativas foram contestados, por diversas razões, pelos perdedores das mesmas.
Este é um problema estrutural do nosso sistema político-partidário e só pode ser resolvido, também, por intervenção política de fundo, coisa que, infelizmente, ninguém quer e pode fazer. Preferem, em alternativa, continuar a lutar até a morte, tendo como propósito a domesticação dos adversários sendo que tal é entendido como valor ou arte da política.
É, também, por isso, que não achei estranho nem constituiu qualquer surpresa para mim estes últimos acontecimentos que sucederam no país. E não tenho dúvidas nenhumas que tal continuará a acontecer, com uma intensidade mais crítica nos próximos tempos, se, entretanto, esta gente não ganhar juízo.
E fico espantado, até, tendo em conta a quantidade de acontecimentos que denunciavam um caminho, cada vez mais estreito, para este desfecho trágico momentâneo, que, no entanto, deixou a maior parte dos Santomenses, incluindo a nossa suposta elite, muito surpreendida. Todos já esquecemos por exemplo, que:
o senhor primeiro-ministro, Patrice Trovoada, no seu anterior governo, ordenou a entrada das tropas ruandesas no país sendo que estas “tomaram de assalto” a Assembleia Nacional perante a estupefacção dos deputados e da nossa população;
em 2015, se a memória não me atraiçoa, um jovem foi barbaramente espancado, em plena parada militar, no interior do quartel das forças armadas, por altas patentes daquela instituição sendo que tal foi gravado e o vídeo em causa foi intensamente difundido nas redes sociais;
ainda recentemente, durante a vigência do anterior governo do senhor Jorge Bom Jesus, um foragido da justiça, que decidiu entregar-se aos agentes da polícia judiciária, foi torturado até a morte por esta mesma polícia, contando, aparentemente, com conhecimento ou assentimento da anterior ministra da justiça do governo em causa;
o senhor Levi Nazaré, enquanto deputado da nação na oposição, no plenário da Assembleia Nacional, quase que chegou a puxar da arma para atirar contra o então primeiro-ministro, Gabriel Costa;
o atual presidente da república, Carlos Vila Nova e o anterior ministro das finanças, Américo Ramos, foram detidos por simples capricho de domesticação ou vingança, sob orientação do governo do senhor Jorge Bom Jesus;
o anterior presidente do Governo Regional do Príncipe, pelo facto de ousar defender os interesses da referida população, foi ameaçado pelo anterior ministro da defesa, do governo do senhor Jorge Bom Jesus, Óscar Sousa, que o advertiu, em jeito de ameaça e intimidação, bem como a alguns dos seus familiares, por telefone, tendo afirmando, que, se a façanha em causa fosse repetida, ele enviaria tropas especiais para a região autónoma do Príncipe com a intenção de o prender, dando ordens ao comando militar na referida região que deixassem de prestar segurança ao referido governante;
o actual primeiro-ministro, senhor Patrice Trovoada, tem sido, sistematicamente, enxovalhado, num registo de intolerância e ódio inqualificável, sendo que lhe têm apelidado de ser estrangeiro e Gabonês;
o actual presidente do governo regional do Príncipe, Filipe Nascimento, ainda antes de tomar a posse, foi violentamente atacado nas redes sociais, num registo, também, de manifestação de ódio e intolerância inusual no país;
Alguns políticos nacionais bem como alguns cidadãos reprodutores do modelo dos mesmos, que, no entanto, nunca emitiram qualquer consideração reflexiva relativamente aos factos enumerados anteriormente, que foram acontecendo na nossa sociedade, estão, todavia, muito surpreendidos, neste momento, com o impacto desta autêntica tragédia que aconteceu no quartel das forças armadas, em consequência da suposta intentona. É legítimo que assim seja. As dezenas de imagens que me foram enviadas, nesta última semana, deixam-nos indignados com a crueldade manifestada pelos perpetradores deste massacre.
Entretanto, não posso deixar de dizer isso, o silêncio destas pessoas, perante as mais variadas atrocidades que foram acontecendo ao longo dos tempos na nossa sociedade, algumas das quais enumerei anteriormente, ajudou a criar e engordar o monstro.
Estas pessoas assistiram na plateia, durante muito tempo, ao confronto entre os cães que ajudaram a criar e ensinar a lutar, bateram palmas quando um dos animais subjugava o outro, decorrente desta luta canina em que a nossa sociedade se transformou.
Ou seja, como comunidade, fomo-nos transformando, ao longo dos tempos, por distração, cinismo, hipocrisia ou comprometimento militante acrítico de alguns, em “feios, porcos e maus”, num contexto societal de completa amoralidade. Até deram ao modus faciendi em causa, em língua forra, o nome de “piãn só cá tilá piãn”.
Agora, no entanto, ninguém conhece a fórmula com que possamos ficar livres do monstro que muita gente ajudou a criar e engordar e todos estão surpreendidos com a dimensão da referida tragédia.
Recordo-me do anterior presidente da república, senhor Manuel Pinto da Costa, ter proposto, há algum tempo, tendo em conta o rumo que o país estava a seguir, que se fizesse um grande encontro nacional, sem restrições de qualquer espécie, que fosse, de facto, um palco para a expressão de opiniões e diversidade, tendo como propósito arrepiar o caminho.
Alguns destes políticos bem como os reprodutores do modelo dos mesmos, sobretudo nas redes sociais, apelidaram-lhe de velho, gagá e ultrapassado.
A actual Direção do seu próprio partido não lhe perdoou tal gesto, tendo em conta a doutrina prevalecente no interior do referido partido, momentaneamente, cujo comportamento, nos últimos quatro anos, no governo da república, denuncia a mobilização de um grande contributo para a engorda do monstro.
É, também, por isso, que tenho dificuldades em compreender o cinismo, na proposta apresentada pelo MLSTP, na condenação dos referidos acontecimentos e no pedido apresentado à Assembleia Nacional para um debate de urgência sobre os acontecimentos ocorridos no quartel das forças armadas sem que, todavia, o partido em causa tivesse feito, internamente, uma reflexão profunda sobre o seu contributo, sobretudo nos últimos quatro anos, para a situação em que chegamos.
É óbvio que as principais instituições do país, especialmente o senhor primeiro-ministro, Patrice Trovoada, têm muitas culpas na gestão política e comunicacional dos acontecimentos relacionados com esta autêntica tragédia, que nos envergonha como país, mas o MLSTP e todos os outros partidos tradicionais do nosso sistema partidário não estão isentos de culpas, tendo em conta os seus contributos, diretos ou indiretos, na criação e engorda do monstro, ao longo dos tempos.
Nesta tragédia, ao contrário daquilo que já ouvi, não existe um problema entre os bons e maus, sendo os bons os supostos golpistas e os partidos da oposição e os maus os supostos perpetradores do massacre no quartel das forças armadas e o atual governo. São todos “feios, porcos e maus” como referi anteriormente.
Nem tão pouco este é um problema jurídico, como também já ouvi dizer, que, uma vez ultrapassado, faz com que tudo volte ao normal nos próximos tempos.
Os nossos principais responsáveis políticos bem como os reprodutores do modelo dos mesmos, muito raramente olham para a Lua, quando o sábio aponta o céu. Preferem olhar para o dedo.
E, sendo assim, temos na comunidade bem como nas redes sociais, muitos comentadores de dedos, uns dos outros, e poucas pessoas preocupadas com a Lua.
Teremos, com toda a certeza, tempos complicados no futuro!
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