Morre um dos mais infames
canalhas a serviço da ditadura militar brasileira, o Cabo Anselmo. No seu
obtuário, os detalhes do maior feito de sua vida, entregar a companheira
grávida para morrer sob a tortura dos terroristas de Estado
# Publicado em português do
Brasil
Urariano Mota | Outras Palavras
Faleceu o Cabo Anselmo em 15 de
março de 2022
Pelo telefone, o escritor e
jornalista André Cintra me comunicou a notícia há 5 minutos. Eu estava fazendo
a sesta, mas dei um salto da cama. E estou até agora sem saber por onde comece
o obituário de José Anselmo dos Santos.
As notícias, com a sua natural
objetividade, que nesse caso querem dizer, com todo natural desconhecimento da
história, falam que José Anselmo dos Santos morreu na noite dessa terça-feira
aos 80 anos, em Jundiaí (SP). E que ele foi “agente duplo durante o regime
militar”. Viram? Chamam de “regime militar” a ditadura e o terror de Estado no
Brasil.
Mas vamos ver se Deus nos ajuda a
tentar alguma justiça para esse criminoso.
Se retirarmos a infâmia da sua
pele, tarefa difícil ou impossível, a primeira característica do Cabo Anselmo é
que era um bom mentiroso. Primeiro, mentia sobre o seu nome: ele era Daniel,
como se apresentava no Recife, ou Jadiel ou Jônata? Isso era o mínimo. Onde ele
se excedia com artes de representação não só em palavras, era na frieza e
cinismo com que se referia a seu maior crime: a entrega da companheira grávida,
Soledad Barrett, à repressão. Em mais de uma entrevista, diante de repórteres
comprometidos com a direita ou pela ignorância histórica, ele se referia à
grande guerreira com a finura de uma serpente.
Na sua entrevista à Band, anotei
que Fernando Mitre, ao mencionar Soledad, o Cabo Anselmo respondeu, com as duas
mãos levantadas, como quem se defende, como quem faz lembrar um trato, que
ameaçou ser rompido: “Opa!”. E Mitre, de volta: “Depois o senhor fala sobre
ela”. E ele, “ah, claro”. E o que se viu depois foi nada, ou quase
nada.
No Roda Viva, em um dos momentos
de calculado cinismo, Anselmo se refere a Soledad Barrett.
Falou o entrevistador: “O senhor
contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica…?”
Cabo Anselmo: “Se eu acreditar,
como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu
contesto, sim”.
E o entrevistador levantou a bola
para Anselmo: “Então o feto encontrado lá não era dela?”
Cabo Anselmo respondeu: “Eu
imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema
de gravidez, e Soledad a levou até o médico”.
Infâmia fria sem contestação.
Mas conheçam a palavra de Nadejda
Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas
mortos no Recife, junto a Soledad. Hoje, Nadejda Marques é doutora em Direitos Humanos
e Desenvolvimento:
“A minha avó Rosália, mãe de
Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério. Ela, entre os vários trabalhos
que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó
sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de
tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões
compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na
cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda,
tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado.”
E definitivas são as palavras na denúncia
da advogada Mércia Albuquerque:
“Soledad estava com os olhos
muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada.
Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha
anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue
coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e
ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso
nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela.
Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele
caiu, que ele nasceu, naquele horror.”
Na morte do Cabo Anselmo, enfim,
Soledad Barrett foi e continua a ser o centro, a pessoa que grita, o ponto de
apoio de Arquimedes para os crimes dele. Ela aponta para José Anselmo dos
Santos e lhe sentencia, aonde ele for: “Até o fim dos teus dias estás
condenado, canalha”.
Que o inferno lhe seja pesado,
enfim. Por toda a eternidade.
Uraniano Mota -- Escritor e jornalista,autor do romance "A Mais Longa Duração da Juventude"
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