sábado, 28 de janeiro de 2023

Angola | EXECUTIVO COMPARA AMIGOS A INIMIGOS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Hoje é dia de anedotas para desopilarmos o fígado e não levarmos demasiado a sério o mobutismo reinante em Angola mais a diplomacia de Kinkuzu. Sempre fui mau contador de piadas mas nesta que se segue vou sair-me bem.

O Ministério das Relações Exteriores publicou ontem um comunicado no qual revela a posição da República de Angola “no conflito que opõe a Federação Russa à República da Ucrânia”. Já não me ria tanto desde as noites em que o meu camarada Armando Guinapo contava, em casa do comandante Ndozi, que tinha uma tia santa. Ainda que morta, sem qualquer tratamento, o seu corpo ficou sempre incorrupto e uma vez por ano, chorava copiosamente. Isto contado pelo meu querido e saudoso amigo Guinapo era de morrer as rir.

O Ministério das Relações Exteriores, no seu comunicado, afirma que “na qualidade de actor internacional comprometido, a República de Angola mantém a sua posição de princípio, reiterando o seu apelo pela cessação incondicional das hostilidades pelos beligerantes, priorizando sempre a via pacífica para a resolução desta crise”. À Voz da América, o Presidente João Lourenço exigia da Federação Russa “o cessar-fogo incondicional”. A coisa agora está mais moderada. A cessação incondicional das hostilidades já inclui “os beligerantes”.

A UPA desencadeou a Grande Insurreição em 15 de Março de 1961 com o apoio incondicional dos EUA. O MPLA tinha dado o tiro de partida para a Luta Armada de Libertação Nacional no dia 4 de Fevereiro. Menos de um mês e meio antes. Os apoios vieram dos combatentes que quebraram as algemas. E das forças progressistas africanas, mais a União Soviética, incansável na libertação de África. 

O comunicado do Ministério das Relações Exteriores diz isso mesmo: “Desde os primórdios da luta pela independência nacional da República de Angola, incluindo durante o período do conflito armado, o povo russo manifestou sempre a sua amizade e solidariedade para com o povo angolano. Hoje em dia, a República de Angola e a Federação Russa mantêm fortes laços de amizade que sustentam uma relação de cooperação estreita, dinâmica e multiforme a todos os níveis”. 

Muito bem senhor ministro Tete António. Parabéns. Mas dispensávamos a anedota que vem a seguir. Leiam: ”A República da Ucrânia é igualmente um importante parceiro com quem a República de Angola mantém boas relações diplomáticas e de cooperação”. Sinceramente, não percebi se esta parte é mesmo uma piada ou nesta fase do comunicado o escriba já estava a pingar de bêbado. Seja o que for, brincar com coisas sérias é sempre sinónimo de mau gosto.

A Ucrânia ascendeu à independência em 1991. No ano seguinte tivemos eleições em Angola no âmbito do Acordo de Bicesse. A UNITA foi derrotada clamorosamente e regressou à guerra. Mas como, se por força do acordado não podia ter armas nem homens armados? E mais: A chamada “comunidade internacional”, via ONU, comprometeu-se a não fornecer armamento ao Governo e à UNITA. 

O ministro Tete António e seus colaboradores já não devem lembrar-se mas eu vou avivar-lhes a memória. As FAPLA, mal foi assinado o Acordo de Bicesse, foram desmobilizadas. Todo o mundo desarmado. Paz é paz! O Estado Angolano só ficou com forças policiais. Mas a UNITA escondeu em bases secretas do Cuando Cubango mais de 20 000 homens armados até aos dentes e as suas melhores armas, inclusive os mísseis Stinger oferecidos por Reagan à África do Sul racista, via Savimbi.

Os comandantes Nzau Puna e Tony da Costa Fernandes, altos dirigentes da UNITA, não gostaram de saber da traição ao acordado em Bicesse e saíram da organização, denunciando publicamente a falcatrua. Mas não sabiam onde estavam escondidos os militares e as armas. Isso só se soube mais tarde, graças às diligências do General António José Maria (Zé Maria) que encontrou os documentos dos serviços secretos do regime de apartheid.

Os EUA e o “ocidente alargado” não podiam aparecer como os fornecedores de armas à UNITA para a guerra depois das eleições. Por isso arranjaram um estado pária, acabado de nascer, para armar e municiar as tropas do criminoso de guerra Jonas Savimbi. A Ucrânia! Quando personalidades estrangeiras (Estados nem pensar…) ajudaram Angola a armar-se para enfrentar os bandidos armados da UNITA, rebentou o “Angolagate”. Lembra-se senhor ministro Tete António? Anos mais tarde, o processo foi arquivado pelo Tribunal Supremo de Genebra e os milhões roubados a Angola pelo “ocidente alargado” foram devolvidos.

Eu estava com o General João de Matos na Catumbela quando chegaram camiões e helicópteros para integrar a coluna que foi libertar a cidade do Huambo. Eram viaturas e aeronaves civis, pintadas de várias cores. Parecia uma festa. Assim começou a tremenda tareia militar à UNITA. Quando Savimbi fugiu do Huambo para o Bailundo, entrou a Ucrânia em acção. Todos os dias aterravam aviões ucranianos na pista da vila despejando armas, munições, equipamentos e rações de combate. 

No Andulo, os ucranianos construíram uma base aérea para abastecerem os bandidos armados da UNITA. Essa pista nunca foi usada (só usaram a antiga…) porque antes chegaram as Forças Armadas Angolanas comandadas pelo General Simione Mukune e escorraçaram Savimbi mais a sua quadrilha. O Heroico General morreu nessa operação ao acionar uma mina. 

Os ucranianos continuaram a fornecer armas, equipamento e rações de combate aos bandoleiros da UNITA no Leste de Angola. Em nome do “ocidente alargado. E quando foi desencadeada a operação policial (reforçada com as FAA) para pôr fim aos bandidos armados capitaneados por Savimbi, aviões da Ucrânia tentaram resgatar o criminoso de guerra na base aérea de Lumbala NguImbo (Gago Coutinho), que já existia desde a Guerra Colonial. Falharam. Leiam por favor o livro ZUMBI O GENERAL DE TODAS AS FRENTES. Está lá tudo com todos os pormenores.

Nessa pequena base estavam permanentemente dois aviões bombardeiros T6 e uma Dornier para reconhecimento e evacuação de feridos ou doentes das tropas portuguesas no Leste da província do Moxico, numa linha fronteiriça entre o Mussuma e o Ninda até ao interior, no Luvuei. Nas operações com tropas especiais (comandos e paraquedistas) a base ficava repleta de helicópteros da África do Sul e da Rodésia de Iam Smith. Numa dessas operações morreu em combate o médico e dirigente do MPLA Américo Boavida.

Senhor ministro, escrever que ”a República da Ucrânia é igualmente um importante parceiro com quem a República de Angola mantém boas relações diplomáticas e de cooperação” comparando esta relação com aquela que existe com a Federação Russa é uma piada de rir e chorar por mais. A não ser que seja demasiado trágico para ser verdade. Porque o comunicado diz mais isto: “Assim sendo, com base nesses elementos que nos colocam fundamentalmente numa posição de equidistância, encorajamos as autoridades russas a dar mais chance ao regaste do merecido estatuto e prestigio da Rússia perante a História, estabelecendo um cessar-fogo definitivo”.

Para respeitar a declaração do chefe à emissora da CIA (Voz da América), o festival de baixeza política atingiu o clímax. O final do comunicado volta a transferir para a Federação Russa o ónus do cessar-fogo incondicional. O que faz do comunicado mais uma página brilhante da História Universal da Infâmia. Desde 2017 que essa colaboração é permanente. A direcção do MPLA é chamada a pôr fim a este descalabro? Caso contrário é o descalabro que põe fim ao MPLA.

Os angolanos não merecem semelhante humilhação. Os militantes e dirigentes do MPLA, muito menos. Pensem nisso.

*Jornalista

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