sábado, 7 de janeiro de 2023

VIAGEM DOS CARICOCOS AOS CHARUTOS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Espantosamente, estou a poucas horas do novo ano. Nem sei como resisti mas a prova de vida é que escrevo. Nada de especial ou mereça uma comemoração. Mas a vida deve ser celebrada, nem que seja com palavras escritas. No final deste ano convoco as pessoas que fizeram parte dos meus sonhos e ninguém responde. Todas e todos partiram. Ficou a memória viva, por vezes esbatida.

A comunidade do Palácio da Cuca abandonou-me. Todas e todos partiram. Primeiro o comandante Leopoldo. Depois foi a debandada: Bob, D. Diogo Dá Mesquita, Ernesto Lara Filho, Álvaro Novais (Caixinha de Fósforos), Joca Luandense, Mamã Guinhas (Maria Augusta), Pedro Jara de Carvalho e finalmente a nossa menina, Dionísia, filha biológica da Guinhas e do Pedro. A princesinha de todos nós que, como Dinamene, cedo partiu, desta vida descontente.

O nosso palácio era um cubico onde dormia o casal e a menina. Nós, os passantes, dormíamos em luandos, no quintalão, embrulhados num kambrikito, resguardados por uma acácia que no tempo da floração atapetava o chão de pétalas rubras. No tempo das vacas gordas escrevíamos para várias publicações, diárias, semanais e que saíam quando calhava. O Joca Luandense recebia da Tribuna dos Musseques, o Ernesto Lara Filho da revista “Notícia” e eu dos originais que vendia ao velho Maciel. De vez em quando facturava uma crónica que a censura deixava passar incólume.

Um dia estava nas lonas e fui à Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra cravar 20 paus ao médico Eduardo Baptista, um santo com figura de gente. Encontrei lá o seu colega Carlos Mac-Mahon, meu amigo do peito, pendurado num charuto que largava um fumo perfumado. Recebi o empréstimo e fui logo à tabacaria da Versailles comprar um charuto, eu que só fumava jucas e caricocos, comprados a cinco tostões o montinho de dez cigarros. Saltei logo para um H. Upmann, criado com uma selecção de finíssimos tabacos cubanos. 

Cheguei ao palácio e antes de entrar no quintalão acendi o charuto. Pensava que ia ser admirado, apoiado, olhado como um vitorioso da vida. Puro engano de alma. Fui xingado com todas as palavras desagradáveis e condenado a ir comprar fiado um cartucho de arroz à loja do Mókotó, que nos tinha cortado o crédito por incumprimento abusivo e reiterado. 

Sempre fui um homem de sorte. Entrei na loja e a esposa do comerciante, uma senhora que conseguiu a quadratura do círculo porque era quadrada e redonda ao mesmo tempo, torceu o nariz ao fumo do charuto. Para impressionar o Mókótó soltei uma grande baforada para o seu rosto, antes de pedir fiado o cartucho do arroz. E ele, em vez de se esvair na volúpia do fumo, protestou: 

- Kitó, não me atires com essa merda à cara! 

Gente sem categoria. Entrei a matar: 

- Preciso de um quilo de arroz, pago amanhã. E o Mókótó, para me ver pelas costas, pesou o produto e despachou-me.

Entrei triunfante no palácio com o cartuxo de arroz. O Joca Luandense tinha arranjado um saco de patas de frango, oferta do engenheiro da Avicuca, que era fã das suas crónicas e contos na Tribuna dos Musseques. Fui perdoado pelo devaneio do charuto e todos deram uma passa tipo cachimbo da paz. A vida é uma coisa maravilhosa. A seguir aos baixos logo subimos. Agora fumamos jucas ou caricocos, logo charutos cubanos.

Em Paris também fui do céu ao inferno várias vezes. Aluno aplicado do mestre François Châtelet, fui levado pela Mamé, o Toi Caeiro e o Serras Gago às aulas de Foucault no Collège de France. Muito melhor do que a voluptuosidade dos H Upmann. 

Os meus amigos tinham um espírito muito inquieto e descobriram que o creme do creme eram as aulas de Lacan. E lá fui eu. O mestre, como quem não quer a coisa, entrou a matar dizendo: A mulher não existe! Fiquei siderado.

Este gajo devia conhecer a Helena de Troia, com um grande carregamento de copos, insultando e ameaçando o Cassiano Bossa Nova quando tentava engatar-me. Ou, tresloucada, decidia que aviava numa noite todos os fazendeiros que iam a Luanda vender o café. Fez uma combina com o dono da residencial Katekero que lhe garantia quarto permanente, para o negócio. Chegou a ocupar dez quartos numa noite!

 Primeiro levava os bêbados que, mal se deitavam adormeciam, roncando como a camioneta Morris do meu pai. Ela aliviava-os das notas e partia para outro freguês a cair de bêbado. Arranjava makas mundiais! A Helena de Troia não existe? O Lacan está louco.

Se a mulher não existisse nem o Presidente João Lourenço conseguia salvar Angola. Fica sabendo, ó mestre, que se a mulher não existisse eu hoje era milionário sem asas de marimbondo e fazia parte da corte do Presidente João Lourenço, no mínimo, à frente do Grupo Carrinho. 

A mulher existe, sim. E ainda bem. Desejo ardentemente que continue a existir em 2023. Ficam já a saber que, se as mulheres desaparecerem no novo ano, eu marcho também.

Em Paris regressei às aulas do mestre François Châtelet mesmo a tempo de ser recrutado para figurante no filme de Arrabal, Eu Irei como um Cavalo Louco. O filósofo também participou na fita, embora desempenhando um papel ligeiramente secundário quando ele era o máximo filósofo.

Em 2023 vou fumar charutos. Ninguém mais me vê fumando jucas fininhos e caricocos mal cheirosos. A mulher existe, perfilhou-me e eu vou ganhar o euromlihões. Preparem-se, o Kitó está de volta!

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana