sábado, 7 de janeiro de 2023

O VOO PLANADO DE UM DESCRENTE – Artur Queiroz


Artur Queiroz*, Luanda

No meu tempo da Rádio fui colega de um filho do Bairro Operário, Elísio de Oliveira, que começava a dar os primeiros passos na profissão sendo hoje um perito no audiovisual. De vez em quando falamos desses tempos e recordamos antigas e antigos colegas. Trocamos novidades. Ontem, último dia de 2022, ele presenteou-me com uma notícia maravilhosa. O general Borja (Novato) publicou um livro sobre o “BO” na óptica das suas famílias tradicionais. 

Vivi em vários quartos alugados no Bairro Operário mas sem família, portanto, não consto do livro que vou ler avidamente quando me chegar às mãos. Mas consta seguramente a família Praça. O Mais Velho era camionista e depois de muito trabalho construiu uma frota de camionagem tão importante como a do Portugal das Camionetas. Seus filhos nasceram no nosso “BO”. Um deles foi meu colega e com ele vivi um episódio de arrepiar.

O Praça e mais alguns jovens do meu tempo fizeram um “curso de cristandade” e de lá saíram activistas da causa  de Jesus Cristo. Nessa actividade convidou-me para ir também a um curso. E eu recusei o convite com delicadeza porque é assim que devemos tratar os amigos. O Praça insistia e eu recusava. Um dia ele foi tirar o “brevet” no Aero Clube de Angola. Logo nos primeiros dias foi eleito o melhor aluno. Fez exame e aprovou. Partiu imediatamente para o “brevet comercial”. Andava ele acumulando horas de voo quando me convidou para um passeio aéreo. Aceitei de bom grado.

O Praça, para me mostrar que sem a fé em deus ninguém vale nada, fingiu que tinha dificuldades em manobrar a avioneta, ainda que o céu estivesse limpo de nuvens. Fiquei atrapalhadíssimo porque nunca gostei de entrar em aviões, pequeninos, médios ou grandes. Lá em cima não há oficinas e numa queda de não sei quantos pés de altitude, nem os ossinhos dos dedos ficam incólumes. O Praça, quando viu a minha atrapalhação disse calmamente:

- Calma, ainda não estás a viver os últimos momentos da tua vida! Mas se estivesses, só Deus podia salvar-te. Se eu morrer num acidente vou para a vida eterna no Céu. Tu ficas esmagado e acabas para sempre logo ali. 

O que dizer naquele momento? O que disse: 

- Que se lixe. A melhor maneira de morrer é a voar! Ele riu-se e explicou que íamos dar mais uma volta e depois aterrar com toda a segurança. Isto não se faz. Porque apanhei um susto tão grande que os pelos púbicos ficaram todos eriçados e ainda hoje parecem os enfeites de um porco-espinho. Mas não, na hora da hipotética morte não me converti.

Quando saímos da avioneta, uma coisinha frágil com uma armação em ferro oco coberta com lona, disse ao meu amigo Praça: 

- Uá bulo ó ulungo uia ni mabaia mé! Quem partiu a canoa vai com as suas tábuas. Agora é que eu não triviro. E ele muito admirado: Triviras?

Balsemão Pires, despachante oficial, Rola da Silva, um dos maiores cronistas angolanos de sempre, e este vosso criado, todas as semanas jantávamos. A refeição era regada com um bom tinto do puto. Durante o repasto, trocávamos novidades enumerávamos cenas ridículas do regime colonialista. Muitas vezes o encontro acabava na sua casa, onde tinha um ratinho de estimação, que vivia na sua toca algures no quintal. Ele e os filhos consideravam-no como se fosse da família. 

Num desses encontros Balsemão Pires contou que os cursos de cristandade, muito em voga na cidade, eram os trivira. Porque os frequentadores entravam ateus ou agnósticos e três dias depois viravam autênticos beatos. O próprio frequentou um mas não virou. Uma alma perdida, danada, pronta a ser pasto do Satanás.

Hoje em Angola, entre as elites culturais, económicas e políticas, temos carradas de triviras. Eram fidelíssimos a José Eduardo dos Santos e aos marimbondos mais bem-sucedidos. Três dias depois da primeira eleição do Presidente João Lourenço já estavam a renegar o passado.

Para não me chamarem duro e radical permito-me informar as minhas e os meus camaradas do MPLA que as maiorias eleitorais são uma coisa. As maiorias sociais são outra. Quase nunca coincidem. E se olharmos para o mapa dos resultados eleitorais, podemos ter a certeza de que a maioria eleitoral conquistada pelo MPLA em 25 de Agosto não tem correspondência numa maioria social. Os resultados no círculo de Luanda são a prova mais evidente. Para as duas maiorias coincidirem o partido tem de trabalhar no duro. Espero que ninguém se ofenda com esta opinião. Adiante.

Nem com aquele susto que o Praça me pregou, aceitei frequentar um curso trivira. Espero que isso não seja impedimento para depositarem as minhas cinzas na Kapopa do Negage. Pode ser mesmo junto do artístico túmulo do soba do Catumbo. Sou do MPLA há 50 anos. Não viro nem por um decreto presidencial.

Um esclarecimento. O meu amigo Praça, filho do Bairro Operário, foi comandante da TAAG Linhas Aéreas de Angola. Trabalhou lá até se reformar. Infelizmente, há uns anos foi publicado um livro sobre o “BO” que deturpa criminosamente o que foi o bairro e a sua importância como “incubadora” de nacionalistas. O autor, depois de esforços hercúleos, conseguiu chegar a soldado motorista do RI20. 

Sabem quem era instrutor no quartel? Meu irmão Luís. Sabem quem estava também nessa altura no Centro de Instrução e Condução Auto (CICA) no espaço do Grupo de Artilharia de Luanda? Salviano de Jesus Sequeira. Ambos foram longe. Salviano é o General Kianda e o Luís, meu mano, é patrono de uma sociedade de advogados em Oeiras. O solado motorista, graças à falsificação que publicou sobre o Bairro Operário, chegou à Academia Angolana de Letras. Quanto a mim sou um fracassado amalucado! Só um louco varrido passa a vida cavando notícias e reportagens. Bolsando umas crónicas.

Hoje mando-vos uma fotografia do General Kianda quando era comandante na luta armada de libertação nacional, II Região Político-Militar do MPLA. Com ela homenageio todas e todos que se bateram de armas na mão pela Independência Nacional. Enquanto arriscavam as suas vidas, eu escrevia crónicas, notícias e reportagens na linha Hermes Baby. E bebia vinho a granel Sovan. Feliz Ano Novo e ponham-se a pau com os sicários da UNITA.

*Jornalista

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