segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

VÍCIO INTRÍNSECO -- Manuel Augusto Araújo

A UE, para melhor travestir os interesses dos grandes negócios, de que é uma defensora e activa interventora, é muito activa na maquilhagem da corrupção material e imaterial que lhe está associada. 

Manuel Augusto Araújo | AbrilAbril | opinião

"Hoje em dia, as pessoas já não respeitam nada.
Dantes, punham-se num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a lei.
A corrupção campeia na vida americana dos nossos dias.
Onde não se obedece a outra lei, a corrupção é a única lei.
A corrupção está a minar este país.
A virtude, a honra e a lei esfumaram-se das nossas vidas"

Afirmou Al Capone, numa entrevista à revista Liberty, 17 de Outubro de 1931, feita pelo jornalista Cornelius Vanderbilt Jr, alguns dias antes de ser preso por fuga ao fisco.

O despudor e doblez desta sociedade sem dignidade, e sem dignidade para oferecer, têm umas regulares erupções que reagem com indignação a alguns casos que, tornados públicos, não são mais que a exibição dos vícios intrínsecos1 do capitalismo, mormente depois das portas escancaradas por Thatcher e Reagan, capatazes medíocres caninamente cumpridores dos desígnios do grande capital, até aos nossos dias em que a financeirização da economia possibilita que empresas de investimentos, que não estão submetidas a qualquer regulamentação, tenham o poder de influenciar as políticas de muitos países mesmo os mais poderosos que, aliás, estão entregues às suas directivas. Em que emergiram grandes empresas tecnológicas, algumas com capitalizações superiores ao PIB dos países até do G7, que viajam entre as malhas das leis recuperando direitos típicos do feudalismo, em que o traço mais comum é a destruição sistemática de direitos e conquistas sociais, económicas e políticas em séculos de duras lutas empreendidas pelos explorados de todo o mundo, o que se acentuou depois da queda do Muro de Berlim. 

Nos últimos tempos são tantos os exemplos, que se podem escolher quase ao acaso. Por cá temos os casos da indemnização a Alexandra Reis a subsidiar-lhe o seu desejo de abraçar novos desafios profissionais, do interrompido trânsito de Rita Alves do sector público para o privado à velocidade de um Fórmula 1, na Europa o Catargate, anos depois de se ter decidido que a bola do mundial iria rolar nos estádios construídos por mão-de-obra praticamente escrava que foi túmulo para muitos, na omnipresente Ucrânia com as purgas de uma selecção de corruptos para a generalizada e conhecida corrupção da elite dirigente não ver interrompido o seu curso normal, agora ao som das lagartas dos Leopard e Abrams que lhes garantem mais uns sopros de vida. 

O afã das indignações, condenações ou aplauso deste seleccionado rol de casos nas instituições democráticas é intenso. A sua maior repercussão são as comissões de inquérito da Assembleia da República enquanto armas de arremesso pela oposição e de defesa por quem ocupa o poder, muitas vezes com cumplicidades escusas. Atente-se na comissão de inquérito à TAP, limitada aos tempos mais próximos, tendo sido excluída a possibilidade de se questionar a sua privatização pelo governo Passos Coelho/Portas, que de facto abriu as comportas que desaguam na situação actual. Para a comunicação social e redes sociais essa sucessão de acontecimentos são territórios de lutas para ganhos de audiências, explorando com maior ou menor subtileza os populismos, numa permanente corrosão da democracia.

O processo é simples, linear e bem conhecido da física. O excesso de iluminação a incidir na trajectória de um átomo deforma essa trajectória. Quando se esmiúça o caso, de facto escandaloso, da indemnização concedida a Alexandra Reis, obscurece-se a vulgaridade das indemnizações, honorários, bónus, prémios, dividendos e outras oferendas feitas aos detentores do capital e seus serventuários, que ao longo de dezenas de anos são prática comum que distorce a distribuição da riqueza, em que os mais ricos ficam sempre mais ricos e os pobres e as classes médias cada vez mais despojadas. Essa a lógica inoxidável do capitalismo. 

A mesma pauta é aplicada quando afanosamente se coloca no centro do alvo das atenções Rita Marques, que mais não fez que seguir o exemplo de um seu antecessor nos governos PSD/CDS, e a prática corriqueira do trânsito entre o aparelho de Estado e as maiores empresas privadas, que garantem apoio variável em conformidade com as suas conveniências aos partidos ditos do regime e aos que a ele se candidatam, que deixaram de ser instrumentos ao serviço dos interesses dos eleitores para se transformarem numa finalidade em si-próprios, pelo que mantém sempre em bom funcionamento essa porta giratória. A virtude da focagem intensa neste caso, aliás como em todos os outros casos, é enfraquecer a memória ou mesmo atirar para debaixo do tapete os escândalos ominosos das privatizações, a socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, bem patenteadas nos apoios concedidos à banca, as múltiplas regalias directas e indirectas às grandes empresas, o tráfico de patacas e outras divisas de Soares, Almeida Santos, Melancia & Companhia, as negociatas malsãs dos governos de Cavaco Silva e sua devassa corte, Dias Loureiro, Oliveira e Costa, Duarte Lima & Companhia, as trafulhices de Passos Coelho, Portas, Relvas, Moedas & Companhia. 

O Catargate é uma erupção do vulcão das perversões nunca adormecidas da União Europeia, em que as práticas de lobismo são a normalidade que condiciona toda a acção legislativa, influenciada pelos grupos organizados de pressão dos grandes grupos económicos. São mais de dez mil em plena e frenética actividade, em favor do objectivo de os seus interesses ficarem intocados e serem ampliados. Os êxitos da algazarra desencadeada pelo Catargate são vários, com a curiosidade primeira de já em nada influenciarem o evento que os provocou, o Campeonato do Mundo do Futebol de estádios construídos por mão-de-obra ao nível da escravidão. A segunda, por o Catar ser país com a terceira maior reserva de gás mundial, depois da Rússia e do Irão, estar a negociar contratos de longo prazo para fornecimento desse combustível fóssil a países da União Europeia (UE), em particular a Alemanha, o que de algum modo colide com os interesses dos EUA, que adquiriram uma posição dominante depois das sanções à Rússia e de terem explodido o NordStream 2, e que este tardio escândalo de algum modo obstaculiza. 

A terceira e mais significativa é ter praticamente apagado dos radares o negócio bilionário das vacinas, tratado directamente entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, em que a Provedora de Justiça da Europa foi fintada pela presidente da Comissão Europeia, uma perita nessas artimanhas com longo treino adquirido na sua passagem pelo governo da Alemanha. A UE, para melhor travestir os interesses dos grandes negócios, de que é uma defensora e activa interventora, é muito activa na maquilhagem da corrupção material e imaterial que lhe está associada e é evidenciada pelas aceleradas circulações entre os seus burocratas, do topo à base, e o grande capital. Entre milhares de exemplos, destaque para o caso bem conhecido de Durão Barroso, um homem sem qualquer qualidade que a Goldman Sachs recrutou. Presume-se que, no futuro, a banca venha a ser superada pelos fundos de investimento, como a Blackrock e Vanguard, agora predominantes no governo do senil Biden, que até tem dificuldades em ler os teletextos e responder às perguntas encomendadas aos jornalistas acreditados pela Casa Branca, que superaram a banca, sobretudo a já referida Goldman Sachs prevalecente nas presidências Clinton, Obama,Trump, que, apesar das diferenças entre eles, a serviam devotadamente. Na União Europeia mudam-se os tempos, mas não as vontades, pelo que os oligarcas ocidentais podem continuar confiantes no trabalho das sucessivas comissões europeias. 

A Ucrânia é a grande oportunidade da Comissão Europeia, dando cobertura e aprovando o quadro político, social e económico imposto nesse país. De modo sorrateiro, antecipar e oficializar o que gostariam que fossem as suas práticas ordinárias, algumas já no terreno, muitas ainda embrionárias, de normalização dos processos de excepção numa sequência autoritária e securitária para cumprir os desígnios do capitalismo, tornando a carta dos Direitos Fundamentais da UE num rol de meras intenções como se comprovou durante a pandemia, impondo «medidas de contingência para garantir a livre circulação, bem como a disponibilidade de bens e serviços essenciais durante uma crise», que violaram os direitos dos trabalhadores e das populações. Ora, quem define o que é ou não é crise é a Comissão Europeia com o suplemento de aparecer como a protectora das populações das crises que provoca ou que são importadas. É o melhor dos mundos para desinvestir nos serviços que são a coluna vertebral das políticas sociais públicas, saúde, educação, segurança social, privatizar o que ainda não foi privatizado, impor leis de excepção que logo entram no quadro legal normal e corroem direitos e liberdades conquistadas em dezenas de anos de luta. Uma situação que se vai consolidando com alguma lentidão para o gosto da voracidade do grande capital, como se ouviu em Davos. 

É neste ponto que entra quase milagrosamente a Ucrânia, invadida pela Rússia para travar o genocídio das populações russófonas em marcha desde 2014. País em crise pela guerra que está a viver, aproveita a crise para legislar, cortando os já escassos direitos e liberdades que ainda subsistiam depois do golpe de estado de Maidan, o que Ursula von der Leyen elogia numa entrevista que deu em Maio para a Time, sublinhando: «com uma enorme coragem, os ucranianos estão a lutar pelos nossos valores e princípios democráticos». A recente reunião em Kiev, mais do que tratar da adesão desse país à UE, foi a exibição do comprazimento pelos comissários europeus por esse estado de sítio. A corrupção foi aceite desde que bem enquadrada. Nada melhor do que negociar com um governo presidido por um notório corrupto, detentor de várias propriedades de luxo no ocidente e contas offshore2 de que não se conhece o estado actual, que fez umas ligeiras, e sem grandes consequências, limpezas para Europa e EUA verem e aplaudirem, a par da comédia em que os oligarcas ucranianos entram por uma porta e saem empreendedores pela outra, para confraternizarem com os oligarcas ocidentais que há muito têm o empreendedorismo como emblema.

Devem ter ficado embevecidos com a velocidade com que mais de metade das terras muitíssimo férteis da Ucrânia foram vendidas em saldos à Blackrock e Monsanto; como as entidades públicas tem sido desmanteladas e privatizadas; como as novas leis laborais arrasaram os direitos dos trabalhadores, atirando os sindicatos para uma vida vegetativa; em que a liberdade de informar já nem é meramente formal, tendo sido despojada das falácias da imprensa ocidental e dos subterfúgios dos critérios jornalísticos para, em diversos tons de voz, fotocopiarem as narrativas oficiais; em que os partidos permitidos são os que estão conluiados com o governo e ao serviço das multinacionais e dos oligarcas agora travestidos de empreendedores.

Um florilégio que Ursula von der Leyen, Charles Michel e os restantes comparsas consideraram positivo porque, de facto, ainda sem o poder claramente manifestar, corresponde aos desígnios dos seus mandantes e bem sabem que o capital está cada vez mais ansioso por impor a sua ditadura. 

Zelensky, agradecido e obrigado à senhora Von der Leyen, devia numa próxima visita fazer-lhe uma surpresa, levando-a a visitar uma rua que desemboque na avenida Stepan Bandera, que decidiu renomear com o nome do avô da presidente da Comissão Europeia, distinto oficial das SS que por lá andou a chacinar judeus, eslavos, polacos e comunistas de braço dado com os facínoras nazis ucranianos agora erigidos heróis nacionais. 

Estes últimos sucessos em terras ucranianas têm o mesmo efeito dos sucessos anteriormente referidos. Há um traço comum entre todos eles, muitos outros poderiam ser relatados, em que a questão nuclear não é a verdade que fica sepultada, mais que revelada na multiplicidade de opiniões sobre cada um dos assuntos, mas porque se tornam, num determinado período provisório e efémero, um acontecimento que paradoxalmente se situa e desliga temporalmente das situações em que sucedeu, empolado pelo seu uso político mediático imediato, destruindo a memória dos sucessos com a mesma tipologia que o antecederam e preparando a destruição da sua memória, que será consumida nas fogueiras dos acontecimentos que se irão verificar, inevitáveis no estado de sítio político, social e ético inerente a esta sociedade. 

É um processo em contínuo que garante a manutenção do ideário neoliberal para lá das crises e dos seus arranjos para imediata sobrevivência.

É um terreno adubado para todos os populismos, em que, sobretudo, a direita e a extrema-direita navegam de vento em popa.

Razão tinha Al Capone, a virtude, a honra e a lei estão a esfumar-se nas nossas vidas desde sempre vitimadas pelos vícios intrínsecos do capitalismo.

Imagem: «Parábola dos Cegos», Pieter Brueghel, o Velho, 1568, Museu de Capodimonte, Nápoles, Itália

Notas:

1. - Condição natural de certas coisas que as torna mais suscetíveis a se destruir ou avariar, sem que seja necessária a intervenção de qualquer causa externa.

2. - O Consórcio de Jornalistas de Investigação, para respaldo de uma suposta independência, só investigava muito discriminadamente para benefício de alguns em detrimento de outros, os Panama Papers atingiram umas offshores enquanto engordaram outras, calou-se e está bem calado em relação a Zelensky e seus comparsas, nem se prevê que sobre esse tema o açaimo lhes seja retirado no médio prazo.

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