quarta-feira, 29 de março de 2023

A MODERNIDADE OCIDENTAL EM XEQUE -- Pochmann

Por séculos, a modernização ocidental assentou-se em economias de guerra e destruição ambiental. Agora, o centro dinâmico do mundo desloca-se para o Sul global e um novo projeto civilizatório pode surgir. Brics será fundamental para construí-lo

Marcio Pochmann* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil

Vivemos o despertar de uma nova ordem mundial. São tempos confusos, cujas ideias parecem se fragmentar, pasteurizadas em torno das referências do passado. Mas a consciência que resulta dos problemas mundiais atuais está a demandar outro projeto de modernização. Os limites impostos pelo decrescente horizonte de expectativas mundiais refletem uma espécie de cancelamento do futuro, pois predominam imagens da guerra, da destruição ambiental, da desigualdade e do desemprego estrutural, acompanhado pela tragédia da pandemia viral.

Desde o estrangulamento do comércio entre o Oriente avançado e a primitiva Europa na metade do século 15, quando ocorreu a queda de Constantinopla, emergiu o projeto de modernidade ocidental fundamentado na economia de guerra e de uso da natureza como mero recurso ilimitado. O aparecimento das armas de fogo e o seu uso difundido por impérios ocidentais da época coincidiram com a própria constituição inicial do mercado mundial.

A integração de diferentes continentes (escravos da África, minérios e plantation da América e consumo de mercadorias na Europa) se tornou possível mediante a formação do sistema colonial europeu. Por três séculos, o colonialismo permitiu a difusão de valores associados à extração de riquezas de territórios ocupados por civilizações originárias que compreendiam a natureza diferente do modo de vida imposto pelo colonizador.

A partir do final do século 18, as lutas anticoloniais permitiram a formação de nações independentes, porém integradas e subordinadas à continuidade do projeto de modernidade Ocidental. Mesmo com a superação do velho colonialismo, o novo sistema hierárquico capitalista se tornava dominante no mundo cada vez mais assentado na economia de guerra e de extração da natureza.

No século 20, as duas grandes guerras mundiais revelaram o poder destrutivo da própria humanidade pela sofisticação das armas de fogo, especialmente em sua fase nuclear. Mesmo como fim da Guerra Fria (1947-1991), o esperado período dourado do projeto de modernidade Ocidental, conforme verificado após a derrota do nazi-fascismo em 1945, terminou não ocorrendo.

Nos últimos cinco séculos, a perspectiva Ocidental de modernidade se consolidou pela força das armas de fogo, bem como pela indústria cultural centrada na concepção universal determinada pelo Norte global, trazida pelo iluminismo. Um projeto de modernidade que separou o modo de vida humano da convivência com a natureza, transformada a exaustão como simples fator de produção de uso ilimitado.

Ao mesmo tempo, o projeto de modernidade Ocidental resultou na ocultação de civilizações formadas por povos originários, com saber e modo de vida compatível com a natureza. Os problemas que hoje afligem o mundo, como as guerras, a mudança climática, as crises virais, entre outros, estão diretamente relacionados aos limites do projeto de modernidade Ocidental.

Neste começo da terceira década do século 21, o deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente tem sido acompanhado pelo aparecimento de novos pressupostos de modernidade, distintos do nortecentrismo global. O seu conhecimento e a sua difusão no mundo se tornam fundamentos necessários para além da esfera econômica e, sobretudo, comercial.

Outra cultura de convivência com a diversidade dos povos, especialmente com as especificidades da natureza, deve emergir constituída pela nova participação política democrática que a Era Digital possibilita. Mesmo que não reconhecida plenamente, a digitalização das sociedades contempla nova dimensão da cidadania que ultrapassa a velha concepção de participação política exercida exclusivamente pela presença física e protagonismo humano.

Novos sujeitos, para além da ação humana, tornaram-se decisivos, como a biosfera, a mudança climática, a natureza, os vírus. Da mesma forma, as crescentes possibilidades tecnológicas convertidas em partes da indumentária humana (luvas, óculos e outros) fazem da conectividade com o mundo virtual o campo estendido e complexo da nova vida política democrática.

A esperança reside na construção de uma outra ordem internacional fundamentada na tradicional democracia política que não seja a repetição do passado de domínio Ocidental, muitas vezes incapaz de reconhecer a igualdade e a soberania entre os povos como a unidade necessária para o desenvolvimento de um futuro comum. Para tanto, as economias de guerra e da destruição ambiental, próprias do domínio da centralidade do norte global nos últimos cinco séculos, precisam urgentemente ser substituídas por um novo projeto de modernização.

Do contrário, a marcha atual da insensatez tende a se prorrogar, cancelando o futuro em torno do protagonismo das emergências do presente. O estabelecimento de inéditas instituições, construídas coletivamente, encontra no dinamismo do Sul Global as oportunidades de um novo tempo da modernidade, como o BRICS que pode vir a definir um novo projeto de modernização e liderá-lo.

* Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti

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