terça-feira, 21 de março de 2023

CRÓNICA DE UMA PRISÃO ANUNCIADA, OU ENTÃO NÃO

Rui Gustavo, jornalista | Expresso (curto)

Antes que me esqueça: se é assinante do Expresso (se não for, este é um excelente pretexto para passar a sê-lo), não deve perder o “Junte-se à Conversa” de amanhã, 22 de março. Às 14h, o diretor-adjunto David Dinis e o editor de Economia João Silvestre conversam sobre “Apoios às famílias: as medidas temporárias chegam?”. Pode participar clicando nestas letras azuis.

Bom dia da poesia,

Num dos inícios mais reconhecíveis da história da literatura, Gabriel García Márquez avisa: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo.” Donald Trump nunca será comparável ao imaginativo autor de “Crónica de uma Morte Anunciada”, mas predisse no último fim de semana que seria preso hoje por causa de uma investigação da procuradoria-distrital de Manhattan a um alegado pagamento secreto a Stormy Daniels, uma atriz pornográfica que se terá envolvido romanticamente com o ex-presidente dos Estados Unidos da América dez anos antes das eleições presidenciais de 2016 que o colocariam, algo chocantemente, na Casa Branca.

De acordo com o que escreveu na sua rede social Truth Social (este nome é mesmo verdade), Trump terá tido acesso a uma “fuga de informação ilegal” do gabinete do procurador de Manhattan que referia a prisão iminente de um “ex-presidente” e “candidato” à liderança do país. Ou seja, ele.

Mais do que adivinhar o que seria a sua morte política – se for mesmo detido, será o primeiro ex-presidente americano a passar por esta experiência sempre desagradável – Trump apelava a uma espécie de levantamento dos seus apoiantes: “Protestem, tragam de volta a nossa nação.” A retórica é semelhante à que precedeu a invasão do Capitólio a seguir às últimas eleições que o magnata perdeu para o atual presidente americano, Joe Biden. Ainda ontem, um tribunal americano condenou seis participantes nessa invasão. É a quarta vez que apoiantes de Trump são condenados em tribunal por causa dos acontecimentos que provocaram a morte a cinco pessoas, entre polícias e manifestantes.

Alvin Bragg, o procurador que dirige a investigação a Trump, não confirmou nem negou a prisão anunciada pelo suposto alvo, mas segundo o jornal Politico, garantiu ao próprio staff que “não” irá “tolerar” qualquer “intimidação” por parte dos apoiantes do ex-presidente americano que lidera as sondagens para ser o candidato republicano nas próximas presidenciais.

Num desenvolvimento de última hora, três representantes do Partido Republicano escreveram a Bragg para que se disponibilize para ser interrogado sobre o que consideram ser as suas “motivações políticas”.

Mas quais são, afinal, as suspeitas contra o 45º presidente americano?

Segundo o New York Times, a equipa liderada por Bragg estará prestes a concluir uma investigação por falsificação de documentos e violação da lei eleitoral que tem como principal suspeito Donald Trump. E acredita ter indícios suficientes para acusar criminalmente o ex-presidente. É a primeira vez na história americana que isso acontece.

A história começou em outubro de 2016 quando Stephanie Clifford, o nome de batismo da atriz de filmes para adultos, recebeu dinheiro para negar ter tido um caso com o então candidato dez anos antes do ato eleitoral. As autoridades suspeitam que Trump terá pagado o silêncio de Stormy com 130 mil dólares pagos através do ex-advogado do político, Michael Cohen. O advogado começou por negar o pagamento, mas deu-se como culpado e confessou os pagamentos a mando de Trump. Na altura, não houve qualquer acusação.

O candidato venceu mesmo as eleições. E neste momento é investigado em quatro processos diferentes. Mas será sua autoanunciada prisão mais uma fake-news lançada para condicionar a justiça? Essa é a pergunta de um milhão de dólares a que a imprensa americana desta madrugada ainda não sabe responder. Pelo sim, pelo não, um responsável da NYPD garantiu ao NY Times que a polícia “está pronta” para manter a segurança dos nova-iorquinos. E Trump assegurou através de um porta-voz que se entregará se for intimado.

Na obra de Márquez, Nasar é mesmo assassinado à facada pelos irmãos Vicario sem que a cidade, que sabia do plano para o matar, levante um dedo para o salvar.

A esta hora que recebe o Curto – são quatro e meia da manhã em Nova Iorque – Trump é um homem livre.

OUTRAS NOTÍCIAS

O corpo de Rui Nabeiro desce à terra hoje ao meio dia. O homem unânime, que nasceu pobre, foi contrabandista e criou uma multinacional do nada, é enterrado no Cemitério Municipal de Campo Maior, vila do interior alentejano onde ergueu o império dos Cafés Delta e que decretou cinco dias de luto. Partiu aos 91 anos, de insuficiência respiratória, e em 2021 já tinha entregado a liderança do grupo a um dos netos, Rui Miguel Nabeiro. O empresário foi elogiado pelo primeiro-ministro, António Costa, que o considerou “inspirador” e pelo presidente Marcelo que destacou a sua "preocupação social e participação cívica". Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, prevê que “permanecerá na memória de todos”. O futuro do grupo continuará nas mãos da família.

A TAP está no ar: a companhia aérea portuguesa, mergulhada em mais uma crise politica, voltou aos lucros dois anos antes do previsto e registou mais de 65 milhões de lucros, o primeiro resultado positivo em cinco anos. A empresa ainda presidida por Christine Ourmières-Widener (despedida na sequência do caso Alexandra Reis) reportou também um crescimento do número de passageiros transportados, de 5,8 milhões em 2021 para 13,7 milhões em 2022.

O Ministério Público decidiu adensar o drama à volta do motim no NPR Mondego e adiou sem grandes explicações o interrogatório dos 13 marinheiros que recusaram a ordem do comandante para seguir um navio russo suspeito de espionagem alegando falta de condições de navegabilidade da embarcação. O caso provocou a fúria pública do CEMA, almirante Gouveia e Melo, que acusou os homens de “insubordinação” e, pior, “ingenuidade”.

O presidente da Câmara de Lisboa inaugurou com alguma pompa e até uma certa circunstância uma residência oficial para estudantes no Campo Pequeno. “Trabalhamos diariamente para aumentar a oferta de habitação: através do setor público e do privado, do setor social e cooperativo", elogiou-(se) Carlos Moedas na cerimónia em que descerrou uma placa alusiva à ocasião. Detalhe: segundo o Polígrafo/SIC, os quartos mais pequenos da Nido (é o nome do empreendimento), com 12 metros quadrados, custam €695 por mês. Os mais caros custam 1096 euros mensais e a área não aumenta por aí além: 16 metros de área. Ainda assim, estão quase todos esgotados.

O Governo francês nomeado por Emmanuel Macron sobreviveu a duas moções de censura e o aumento da idade de reforma dos 62 para os 64 anos vai mesmo avançar. Para hoje, estão previstos mais protestos que têm descambado em confrontos violentos com a polícia. Lembrete: em Portugal, a reforma começa aos 66,4 anos e não houve grande agitação social por causa disso.

Xi Jinping e Vladimir Putin estão numa relação. O presidente chinês precisa de amigos e cumpre hoje o segundo dia de visita a Moscovo.

Hoje é Dia Mundial da Síndrome de Down. Para assinalar a data, o Café Joyeux, que emprega pessoas com deficiência, lança uma campanha em que desafia todos os portugueses a usar uma meia diferente em cada pé.

FRASES

"Aproximando-me do fim e a minha saudade era de poder viver mais tempo"

Rui Nabeiro, na hora do adeus

“O pacote da habitação é inoperacional”

Marcelo Rebelo de Sousa amuniciando a morte do programa do Governo para resolver a crise da habitação.

“A humanidade caminha sobre gelo fino e este gelo está a derreter-se rapidamente”

António Guterres, secretário-geral da ONU, dando mais um aviso sobre a morte anunciada do planeta.

"É absolutamente inédito e inaceitável que um comandante militar, perante um caso de insubordinação, faça uma espécie de comício e num barco, numa cerimónia militar, convidando a televisão, a rádio e os jornais."

Pacheco Pereira, sobre o almirante Gouveia e Melo e a forma como o militar popularizado pela campanha de vacinação viu no motim do NRP Mondego uma sabotagem às suas aspirações políticas.

“Quando a autoridade de recurso, em termos disciplinares, toma publicamente uma posição, evidentemente (…) esse processo disciplinar está ferido de morte porque nenhum oficial da Marinha se vai atrever a contrariar, nas suas conclusões desse processo disciplinar, as conclusões que o senhor almirante já avançou.”

Garcia Pereira, advogado de defesa dos amotinados.

“Alguém me perguntou uma vez se quando estou em casa sou igual à pessoa que o público vê em palco. Só respondi: se em casa fosse a mesma pessoa que sou em palco, a minha mulher deixava-me. Algumas já o fizeram.”

David Gahan, vocalista dos Depeche Mode, num momento “People are People”.

“De acordo com o Direito Internacional, um povo define-se pela História, cultura, língua, moeda e liderança. Quem foi o primeiro rei palestiniano? Qual é a língua palestiniana? Houve alguma vez uma moeda palestiniana? Existe História ou cultura palestinianas?”
Bezalel Smotrich, ministro das Finanças israelita, defendendo a tese de que o povo palestiniano “não existe”. Este original pacifista é líder do Partido Sionismo Religioso.

O que eu ando a ler

“Mais receitas do que barriga”

Matthew Schneier

“O Milagre das Canetas Para Emagrecer”

Luís Pedro Nunes

Estes artigos da revista do Expresso foram publicados nas duas últimas semanas e o tema é o mesmo: o Semaglutido. Um milagre em forma de caneta / seringa que, apesar de ter sido criado para tratar a diabetes, está a ser usado no mundo ocidental para conseguir o que todo o homem e mulher modernos perseguem: a magreza, o ventre plano, o corpo instagramico. São cinco quilos a menos sem qualquer esforço, garante o artigo publicado há duas semanas que descreve a feira das vaidades americanas povoada por gente magra e feliz por ser magra. Nem sempre funciona, avisa o cronista da E que inchou como um dirigível até desistir da nova panaceia. O perverso deste método – além dos afeitos secundários que vão da diarreia à obstipação, passando pelos enjoos e as erupções cutâneas – é que o uso paralelo está a esgotar o medicamento para quem realmente precisa: os diabéticos.

Por hoje – dia da poesia, relembro – é quase tudo. Despeço-me com “Arte Poética”, de Adília Lopes:

Escrever um poema

é como apanhar um peixe

com as mãos

nunca pesquei assim um peixe

mas posso falar assim

sei que nem tudo o que vem às mãos

é peixe

o peixe debate-se

tenta escapar-se

escapa-se

eu persisto

luto corpo a corpo

com o peixe

ou morremos os dois

ou nos salvamos os dois

tenho de estar atenta

tenho medo de não chegar ao fim

é uma questão de vida ou de morte

quando chego ao fim

descubro que precisei de apanhar o peixe

para me livrar do peixe

livro-me do peixe com o alívio

que não sei dizer

Ah: as sempre avisadas sugestões da equipa multimédia do Expresso:

PODCASTS A NÃO PERDER

Mistérios que o capital tece: "o aventureirismo" sem limites dos banqueiros e a "pior geração de políticos europeus" em cem anos. O fantasma da crise na banca voltou e deixou à vista perigos que se julgava estarem ultrapassados. O tema está em destaque em Miguel Sousa Tavares de Viva Voz. Não faltam críticas aos gestores bancários, aos supervisores e aos Governos, "sempre dois passos atrás da banca". O cronista diz que os problemas se agravam numa Europa de más lideranças que "só tem olhos para a guerra"

https://expresso.pt/podcasts/miguel-sousa-tavares-de-viva-voz/2023-03-17-Misterios-que-o-capital-tece-o-aventureirismo-sem-limites-dos-banqueiros-e-a-pior-geracao-de-politicos-europeus-em-cem-anos-57c5f2f7

Com ou sem crise mundial, seguimos por caminhos apertados? No Economia Dia a Dia, novo podcast diário do Expresso, Teresa Amaro Ribeiro conversa com Isabel Vicente, jornalista do Expresso, sobre uma possível crise mundial, depois da queda de três bancos americanos e do tremer de um suíço. Quais foram as razões, o que nos espera o futuro e o impacto da crise do Credit Suisse

https://expresso.pt/podcasts/economia-dia-a-dia/2023-03-18-Com-ou-sem-crise-mundial-seguimos-por-caminhos-apertados--b1272b71

O que é feito da Síria? Em guerra há 12 anos, o ordenado médio dá para dois dias e o terrorismo continua a fazer vítimas. O conflito está relativamente congelado, mas a vida de quem ficou no país é ainda pior hoje do que era nos piores dias da guerra: falha a água corrente, proliferam doenças que já não são deste tempo, a luz vem e vai, a comida tem preços incomportáveis para 80% da população. Em O Mundo a Seus Pés, Ana França recebe Ghalia Taki, síria residente em Portugal, e Cátia Moreira de Carvalho, especialista em movimentos extremistas

https://expresso.pt/podcasts/o-mundo-a-seus-pes/2023-03-20-O-que-e-feito-da-Siria--Em-guerra-ha-12-anos-o-ordenado-medio-da-para-dois-dias-e-o-terrorismo-continua-a-fazer-vitimas-2d4b3cbc

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