terça-feira, 7 de março de 2023

EUA | O preço da greve que podia ter sido e do desastre que foi – António Santos

António Santos*

Nos EUA, que se arrogam o direito de impor a sua “democracia” ao mundo, os meios de luta dos trabalhadores são precários ou inexistentes e, se a classe dominante achar necessário, são proibidos e reprimidos. Os trabalhadores ferroviários decidiram fazer greve em defesa não só dos seus direitos e condições de trabalho mas também reclamando medidas de salvaguarda da segurança de uma infraestrutura em acelerada degradação. O Congresso proibiu a greve. Passados dois meses, a vida mostrou a razão dos trabalhadores: o descarrilamento de um comboio de mercadorias carregado de matérias tóxicos provocou uma autêntica catástrofe ambiental. E depois desse já sucederam outros.

Vinte dias volvidos desde o descarrilamento de um comboio carregado de materiais perigosos em East Palestine, no Ohio, EUA, começamos a saber quanto custou evitar uma greve.

No início de Dezembro, os trabalhadores ferroviários estado-unidenses decidiram fazer greve. Denunciavam uma perigosa falta de trabalhadores, horários desumanos, desinvestimento público na infra-estrutura e na segurança. A paralisação não chegou a acontecer: numa didáctica demonstração de consciência de classe, o Congresso esqueceu diferenças partidárias e proibiu a greve. Exactamente dois meses depois, descarrilava um comboio de 150 carruagens derramando no solo do Midwest mais de 18 000 toneladas de químicos perigosos, um cocktail de cloreto de vinil, acrilato de butilo, 2-etoxietanol; butoxietanol; benzeno e isobutileno.

Durante dois dias, estas substâncias arderam descontroladamente. Durante outros dois, foram deliberadamente queimadas num incêndio controlado pelas autoridades estaduais. Sob a nuvem tóxica que se formou, centenas de moradores na pequena cidade de East Palestine acusaram tonturas, irritação na pele e nos olhos bem como uma tosse dolorosa, sintomas que as autoridades desvalorizam: a empresa ferroviária responsável pelo transporte, a Norfolk Southern Railway, explicou peremptoriamente que o desastre não terá quaisquer consequências para a saúde humana; o governador do Ohio, Mike DeWine, disse que é seguro beber a água da cidade e deu o exemplo; o Secretário dos Transportes da Casa Branca, Pete Buttigieg, disse não compreender o alarido, explicando aliás que todos os anos há mais de 1000 descarrilamentos nos EUA. Tinha razão: só no dia seguinte, houve mais dois descarrilamentos graves noutros Estados.

A verdade é que ninguém sabe qual é o nível real de exposição das populações aos químicos vertidos nem qual é o efeito desta combinação de substâncias na saúde humana. O que se sabe é que, segundo o próprio Pete Buttigieg, o desastre poderia ter sido evitado com mais trabalhadores, mais investimento na infra-estrutura e tecnologia mais avançada, de que é exemplo o sistema de travões pneumáticos electrónicos, que custaria cerca de 400 milhões a nível federal. O que também se sabe é que a Norfolk Southern Railway não só não quis fazer qualquer investimento em travões, segurança ou trabalhadores como, só nos últimos três anos, cortou 20 por cento do pessoal. Sabe-se também que a Norfolk Southern se gaba de, em 2022, ter alcançado lucros de 3.2 mil milhões de dólares e de, nos últimos cinco anos, ter entregado 18 mil milhões de dólares aos accionistas. Sabe-se igualmente que uma semana de greve ferroviária por mais investimento, direitos, trabalhadores e segurança teria custado ao capital mais de mil milhões de dólares. Mas, principalmente, sabe-se que os únicos que tentaram evitar o desastre foram os trabalhadores, mas foram impedidos de fazer greve. Porque as greves são chatas e os desastres dão lucro.

* Publicado em O Diário.info

Fonte: https://www.avante.pt/pt/2569/internacional/170682/O-pre%C3%A7o-da-greve-que-podia-ter-sido-e-do-desastre-que-foi.htm?tpl=179

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