sexta-feira, 10 de março de 2023

O GOLPE DE ESTADO DOS STRAUSSIANOS EM ISRAEL

Foto: Elliott Abrams, um dos “straussianos” históricos, dirige a mudança de regime em Israel

Thierry Meyssan*

Ao mesmo tempo que os observadores prognosticavam uma guerra de Israel contra um dos seus vizinhos, o Estado hebreu não é atacado por ninguém. Ele tem adversários, mas não tem inimigo, a não ser ele próprio. Uma vez que a sua organização política não é definida por uma Constituição fica mais fácil alterá-la. Os “straussianos”, que chegaram ao Poder no Departamento de Estado e na Casa Branca, dirigem hoje em dia a mudança do seu regime. Sucedem-se as manifestações em todo o país para o impedir de se tornar, segundo as palavras de um antigo director da Mossad : « um Estado racista e violento que não poderá sobreviver ». Mas provavelmente já é muito tarde.

Durante dois anos, os israelitas (israelenses-br) estiveram divididos e não conseguiram escolher um governo. Depois de cinco eleições gerais, decidiram prescindir da equipe Lapid/Gantz e colocar no Poder a nova coligação (coalizão-br) de Benjamin Netanyahu. No entanto, dois meses após a formação do novíssimo governo, mudaram outra vez de opiniã. Uma maioria de Israelitas já não quer mais aqueles que escolheu.

Com efeito, para surpresa geral, Benjamin Netanyahu constituiu uma coligação com pequenos Partidos supremacistas judaicos. Ele prometeu-lhes :

– retirar da lei fundamental a cláusula 7ª que interdita aos Partidos abertamente racistas a possibilidade de se apresentar às eleições.
– emendar a lei anti-discriminação, a fim de poder financiar eventos ou estruturas que praticam a separação de sexos, e autorizar a recusa de serviços devido às suas crenças.
– forçar as autoridades locais a financiar as escolas ultra-ortodoxas, mesmo que elas não estejam sob o controlo da administração central, não sigam os seus programas e recusem ensinar as matérias laicas de base, tais como matemáticas e o inglês.
– retirar a atribuição de bónus alimentares ao Ministério de Assistência Social e confiá-la ao do Interior. Para os distribuir este terá como critério o facto de não se pagar impostos, sabendo que os ultra-ortodoxos estão dispensados disso quaisquer que sejam os seus recursos.

No entanto, o Primeiro-Ministro quis demarcar-se dos seus aliados. Assim, ele declarou que nunca permitiria que se possa invocar a fé para recusar serviços a um cidadão israelita. « Haverá eletricidade no Shabat. Haverá praias [mistas] para banhos. Manteremos o status quo. Não haverá país [governado] pela halakha [a lei judaica] ». « Não haverá emenda à lei do retorno » (os aliados do Primeiro-Ministro exigem que qualquer candidato ao retorno faça a prova que tem um pai judeu no sentido estrito do termo). Ele desaprovou o seu filho, Yair Netanyahu, para quem os juízes que o indiciaram, quando ele ainda era Primeiro-Ministro, são traidores e devem ser punidos como tal. Por fim, fez eleger o único deputado abertamente gay, Amir Ohana, Presidente do Knesset.

Por mais chocante que este programa seja, isto não é o que importa. Benjamin Netanyahu anunciou uma reforma do sistema judicial que põe em causa o equilíbrio de poderes em que repousava até agora este país sem Constituição, a tal ponto que os seus opositores falam de um « Golpe de Estado ».

As manifestações multiplicam-se e amplificam-se. No início, eram feitas apenas a partir do centro e da esquerda. Depois, antigos aliados de Benjamin Netanyahu juntaram-se e, agora, até grupos de direita. Por fim, também alguns árabes.

Estabelecendo um paralelo entre o actual governo Netanyahu e o regime nazi, um antigo Chefe de Estado-Maior, o General Moshe Ya’alon, declarou : « O povo judeu pagou um pesado tributo pelo facto de, durante eleições democráticas na Alemanha, ter chegado ao Poder um governo que eliminou a democracia, sendo que a primeira coisa que ele eliminou foi o princípio democrático fundamental da independência Poder judicial ».

« (Foto: Avi Moaz, Ministro adjunto da Identidade judaica, mandou fazer uma lista de gays a trabalhar nos média (mídia-br) e uma outra de funcionários do Ministério da Justiça que seguiram formações com associações defendendo a integração dos israelitas árabes)

Moshe Ya’alon é um adversário de longa data de Benjamin Netanyahu, mas em poucas semanas foram os antigos aliados do Primeiro-Ministro que argumentaram de forma esmagadora no mesmo sentido.

• O antigo Ministro da Justiça do Likud e Vice Primeiro-Ministro de Netanyahu, Dan Meridor, tomou a palavra durante a principal manifestação diante do Knesset, em 20 de Fevereiro. Ele declarou : « Quem iria pensar que precisaríamos de defender a democracia em Israel, mas o facto é que ela está a ser atacada! ».
• O antigo Director da Mossad, escolhido à época por Benjamin Netanyahu, Tamir Pardo, é hoje um dos coordenadores das manifestações. Numa entrevista à rádio pública Kan, ele acusou o Primeiro-Ministro de reformar a Justiça unicamente para poder escapar pessoalmente dela. Além disso, acusou elementos da Coligação governamental de querer edificar « um Estado racista e violento que não poderá sobreviver ».
• O antigo Director do Shin Bet, Yoram Cohen, igualmente escolhido à época por Benjamin Netanyahu, declarou numa manifestação de direita : « A reforma proposta mudará a estrutura governamental em Israel, uma vez que o Poder executivo —e à cabeça o Primeiro-Ministro— terá um poder ilimitado. Os freios e contrapesos necessários para uma sociedade democrática desaparecerão. Todos os cidadãos serão atingidos por uma tal situação, independentemente da sua filiação política. A reforma no seu estado actual, [imposta] com brutalidade e [elaborada] sem diálogo com os componentes da nação, poderá conduzir ao desastre ».

Várias petições de economistas e empresários de alta tecnologia soaram o alarme : as reformas anunciadas afugentariam os investidores estrangeiros. Cerca de 56 economistas de renome mundial, entre os quais 11 vencedores do Prémio Nobel, publicaram uma carta aberta. Nele escreveram: « A coligação no Poder em Israel encara uma série de actos legislativos que enfraqueceriam a independência do poder judicial e o seu poder de constranger as acções governamentais. Muitos economistas israelitas, numa carta aberta à qual alguns de nós nos juntamos, exprimiram a sua inquietação quanto ao facto de que tal reforma prejudicaria a economia israelita ao enfraquecer o Estado de direito e, deslocaria assim Israel nos sentido da Hungria e da Polónia ».

O plano de reforma da Justiça irá desenrolar-se em quatro fases, das quais, de momento, só a primeira foi apresentada ao público.

• Esta (fase I) inclui
 (1) legislar quanto a uma disposição de derrogação que permitiria ao Knesset adoptar uma segunda vez por maioria simples uma legislação que tivesse sido invalidada pelo Supremo Tribunal ;
 (2) eliminar a norma de razoabilidade das decisões judiciais ;
 (3) reforçar o poder da coligação governamental no seio do Comité de nomeações judiciais ;
 e (4) enfraquecer o estatuto dos conselheiros jurídicos no seio dos ministérios.
• A fase II fará da Lei fundamental sobre a Dignidade humana e a Liberdade um simples texto sem qualquer outro valor acima de qualquer outra vulgar lei. Ela poderia pois ser facilmente substituída.
• A fase III limitará o direito de recurso ao Supremo Tribunal.
• A fase IV dividirá os poderes actuais do Procurador Geral. Uma segunda instância, um « procurador-em-chefe », seria a única autoridade capaz de levar os políticos perante a Justiça.

Esta reforma mudará totalmente a natureza de Israel. Ela é abertamente apoiada por dois “think-thanks”, o Kohelet Policy Forum e o Law and Liberty Forum. Este último é inspirado por um dos grupos que compõem a Federalist Society nos Estados Unidos; a associação que redigiu secretamente o USA Patriot Act (a “Lei Patriota”-ndT) e a impôs por ocasião dos atentados do 11-de-Setembro [1]. O Law and Liberty Forum é financiado pelo Tikvah Fund, que é presidido pelo neo-conservador americano-israelita Elliott Abrams (conhecido pelo seu papel no escândalo Irão-Contras e em muitos Golpes de Estado na América Latina) [2].

A Federalist Society e o Law and Liberty Forum têm por estratégia modificar a jurisprudência mudando os juízes [3]. Em cerca de uns trinta anos, a Federalist Society conseguiu justificar legalmente o neo-liberalismo, em limitar as possibilidades de recurso face as grandes empresas, em desconstruir o modo como o Partido Democrata tinha idealizado a luta contra as discriminações e pelo direito ao aborto, em impedir os EUA de aderir a inúmeros tratados internacionais e, por fim, em transformar o equilibrio de poderes nos EUA de maneira a que o Presidente possa fazer as guerras que deseje e praticar a tortura [4].

A originalidade do método da Federalist Society foi o de reinterpretar os princípios do direito anglo-saxónico. Baseando-se nos escritos do filósofo Leo Strauss, ela substituiu o « Direito natural » pelo « Direito positivo ». Por exemplo, durante os anos 80, o Presidente Ronald Reagan desejava desregulamentar a economia, mas era constrangido pela Lei e não podia. Um teórico da Federalist Society, o Professor Richard Epstein, postulou então que a propriedade não era uma questão de Direito positivo, ou seja, de convenções elaboradas pelos legisladores, mas sim de Direito natural, ou seja, que fora instituída por Deus. Ora, qualquer regulação de uma actividade económica consiste em limitar a forma como agem certos proprietários. Logo, qualquer regulamentação seria uma expropriação que requeria uma compensação.

Assim, se uma lei, no interesse da comunidade, impõe aos industriais que fabriquem apenas produtos de uma certa qualidade, ela limita o seu direito de propriedade, então eles devem ser indemnizados (indenizados-br). Esta interpretação da lei permitiu ao Presidente Ronald Reagan desconstruir todas as regulamentações económicas pré-existentes.

A maior parte dos adeptos da Federalist Society são precisamente juristas conservadores ou libertários. Eles só se preocupavam com Direito da família e o da economia. No entanto, no seio desta associação, um pequeno grupo envolveu-se na política internacional. É este o grupo que influencia hoje em dia Israel. Primeiro, nos Estados Unidos ele conseguiu fazer triunfar o «excepcionalismo americano» [5].

Esta escola de pensamento se recusa aplicar os tratados internacionais no Direito interno; julga o comportamento dos outros com severidade, mas absolve por princípio os Norte-Americanos que agem da mesma forma; e recusa que qualquer jurisdição internacional interfira nos seus assuntos internos. Numa palavra, ela pensa que, por razões religiosas, os Estados Unidos não são comparáveis aos outros Estados e não devem se submeter a nenhuma lei internacional. Esta ideologia norte-americana é perfeitamente compatível com a interpretação política da teoria teológica do « povo eleito ». Se de um ponto de vista religioso, se afirmar que os homens que se voltam para Deus foram por ele escolhidos, então entendida literalmente, isso significará que os homens são desiguais, estando os judeus acima dos “gentios” (em hebreu, os « goyim »).

O outro grande combate deste grupo da Federalist Society foi o de derrubar a « doutrina da não-delegação ». Os juristas norte-americanos consideravam que a separação dos poderes constitucionais não permitia ao Executivo usurpar os privilégios do Legislativo e definir ele mesmo os critérios de aplicação de uma lei. Agora, é o inverso : a separação de poderes proíbe ao Legislativo interferir nas actividades do Executivo. O Congresso perde, portanto, o seu poder de controle sobre a Casa Branca. Foi com base neste truque que o Presidente George W. Bush pode lançar uma série de guerras e generalizar o uso da tortura.

Os laços entre este grupo da Federalist Society e o Likud israelita não são novos. Em 2003, Elliott Abrams organizou a Cimeira de Jerusalém com a participação de quase todos os grupos políticos israelitas. Ele afirmou que não haveria paz no mundo enquanto Israel não tivesse esmagado as reivindicações dos Palestinianos [6].

Dentro desta lógica, logo que o actual governo de Netanyahu se formou, o General Avi Bluth, Comandante das forças israelitas na Cisjordânia ocupada, distribuiu um livro aos seus oficiais: Ours in Tabu: The Secrets of Land Redeemers From Our Father Abraham to the Young Settlements. Ele apresenta como sendo uma vontade divina a ocupação pelos judeus da Palestina, quer seja pela compra de terras ou pela violência, desde Abraão até aos colonatos ilegais.

A primeira consequência visível desta viragem e desta propaganda sobreveio na Cisjordânia quando 400 colonos de Har Bracha atacaram a cidade de Huwara. Pretendiam vingar-se do assassinato de dois deles, supostamente por Palestinianos desta localidade. Durante cinco horas, eles apedrejaram os habitantes, queimaram várias centenas de viaturas e 36 casas. Sob o olhar do Exército israelita, que bloqueou a aldeia para impedir os seus habitantes de fugir, encarniçaram-se contra eles, provocando mais de 400 feridos e um morto. Longe de condenar a violência, o Ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, lamentou que particulares tenham feito aquilo que, segundo ele, implica a responsabilidade do Estado: a saber, «aniquilar» essa localidade.

Nas declarações dos seus líderes, a coligação no Poder, já cúmplice destes crimes, anuncia que vai utilizar os meios do Estado para os aplicar a toda a população árabe, não somente palestiniana, mas também aos árabes israelitas.

Sucedem-se as manifestações em massa em Israel, enquanto políticos estrangeiros favoráveis a Israel multiplicam as advertências. Nada feito. O processo está em marcha. Bezalel Smotrich considera os árabes como animais selvagens que é preciso domar pela força. Mas o Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, aborda a questão de um outro ponto de vista. Para ele, Deus deu a terra aos judeus que dela devem expulsar os ocupantes árabes. Pouco importam os pontos de vista, todos os membros da coligação concordam num ponto: o governo é soberano e não deve ser limitado na sua acção pelas leis. Isto serve claramente ao Primeiro-Ministro, Benjamin Netanyahu, sob a alçada de várias investigações judiciais.

Aquilo que se joga em Israel não diz respeito apenas aos Israelitas e aos Palestinianos. Elliott Abrams é um straussiano histórico, ainda mais que o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e a sua adjunta, Victoria Nuland. É, pois, previsível que se a «reforma» da Justiça israelita prosseguir, o novo regime se alinhará totalmente com as posições dos straussianos. De momento, Israel recusa enviar armas para a Ucrânia de acordo com o princípio do General Benny Gantz: « Nenhuma arma israelita deve chegar aos genocidas de judeus ». O risco de aliança entre os « nacionalistas integralistas » ucranianos, os «straussianos» norte-americanos e os « sionistas revisionistas » israelitas nunca foi tão grande [7]. É certo que os Estados Unidos acabam de proibir o Ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, de entrar no seu território. Eles sancionam também os seus comentários racistas, mas por quanto tempo?

Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva

* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II.
Manipulación y desinformación en los medios de comunicación
 (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas: 

[1] «The U.S. Right-wing Group Behind a Conservative Legal Revolution in Israel», Nettanel Slyomovics, Ha’arets, January 30, 2023.

[2] «Elliott Abrams, el «gladiador» convertido a la «política de Dios»», por Thierry Meyssan, Red Voltaire , 24 de mayo de 2005.

[3] «La Federalist Society al asalto de la Corte Suprema de Estados Unidos», Red Voltaire , 6 de febrero de 2006.

[4] The Federalist Society: How Conservatives Took the Law Back From Liberals, Michael Avery & Danielle McLaughli, Vanderbilt University Press

[5] Actas do colóquio organizado pelo Carr Center for Human Rights Policy : American Exceptionalism and Human Rights, Michael Ignatieff, Princeton University Press (2005).

[6] «Sommet historique pour sceller l’Alliance des guerriers de Dieu», Réseau Voltaire, 17 octobre 2003.

[7] “Capazes do pior, a união de certos governantes torna a Guerra mundial possível”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 6 de Dezembro de 2022.

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