Teóricos da “independência” situam o Banco Central num posto ideal, acima da sociedade, e lhe atribuem o dever de “atar as mãos” da autoridade política. Como se seus dirigentes não tivessem vínculos sociais e seguissem leis autoevidentes
Arnaldo Provazi Lanzara | Outras Palavras | Imagem: Victor Juhasz | # Publicado em português do Brasil
A lógica de delegação da política monetária a um banco central independente tem sido fortemente teorizada pela literatura econômica, suscitando controversos debates. Mas na economia, como de costume, a discussão sobre a delegação de responsabilidades para autoridades monetárias independentes parece se revestir de uma máscara de complexidades, de modelos econométricos parcimoniosos e “elegantes”, produzindo corolários de caráter prescritivo e moral.
Diversos estudos realizados entre as décadas de 1970 e 1980, período que antecedeu a difusão de modelos de governança econômica baseados em agências independentes, descobriram que limitar o campo das decisões políticas seria o modo mais racional de gerir a política monetária das economias nacionais. A margem de discricionariedade dos governos deveria ser circunscrita para se preservar os fundamentos da política monetária centrada no ajuste fiscal. Portanto, seria perfeitamente racional restringir os graus de liberdade dos governos, evitando-se decisões circunstanciais, vinculadas, por exemplo, aos ciclos eleitorais.
Em trabalho publicado em 1977, os laureados com o Nobel de Economia, Finn Kydland e Edward Prescott, enfatizaram que os governos sujeitos aos ciclos político-eleitorais possuem uma natural tentação para gerar políticas monetárias inflacionárias. Segundo os laureados, uma maneira possível de remover o viés inflacionário associado à “inerente inconsistência temporal da política monetária” é conter os apetites perdulários dos governos, delegando essa política a um banco central independente.
Na empreitada de dissuadir o controle das políticas monetárias pelos governos, coube a outro laureado, o economista estadunidense Douglass North, o mérito de ter “redescoberto” as instituições para conferir historicidade aos abstratos argumentos da teoria neoclássica. Partindo de generalizações teóricas dos eventos que marcaram a revolução fiscal inglesa do século XVII, North afirma que as instituições econômicas criadas após a Revolução Gloriosa revelaram ser superiores a outros arranjos institucionais existentes porque se mostraram eficazes para controlar as tentativas da coroa de regular casuisticamente o comércio, tornando-se auto-executáveis (self-enforcing). Ao “atar as mãos do soberano”, a revolução fiscal inglesa teria produzido efeitos econômicos sem precedentes, diminuindo a percepção do risco associada ao comportamento oportunista do governo.
Análises mais recentes sugerem que as “instituições hierárquicas” e os sistemas eleitorais majoritários são mais eficazes para executar o ajuste fiscal. Procedimentos decisórios mais hierárquicos e insulados das pressões políticas conferem aos ministros das finanças um forte poder de ascendência sobre os ministérios comprometidos em expandir o gasto social. Contrariamente, governos de coalizão multipartidários baseados em sistemas eleitorais proporcionais impediriam o equilíbrio fiscal, pois suas decisões sobre política econômica são mais colegiadas e sujeitas ao conflito distributivo.
Em suma, a ampla difusão dessas ideias culminou num conjunto de prescrições para proteger os mercados dos “riscos” das contingências políticas. Assim, bancos centrais autônomos, políticas fiscais imunes aos resultados eleitorais e limites constitucionais ao endividamento público despontaram como corretivos institucionais que os governos deveriam adotar para disciplinar o conflito distributivo das democracias; e tal disciplinamento somente seria logrado por meio da imposição de regras fixas e agentes “imparciais”. Foi a partir dessas narrativas estilizadas que os dirigentes dos bancos centrais passaram a encarnar o mito da neutralidade das decisões sobre política monetária, desconsiderando ou minimizando suas consequências distributivas.
Num instigante ensaio sobre a crise das democracias liberais, a politóloga italiana Nadia Urbinati afirma que o mito das decisões técnicas e neutras sobre política econômica é um eloquente exemplo de uma “metamorfose epistêmica da democracia”. Não por acaso, a autora utiliza a expressão “platonismo democrático” para nomear a atual tendência de hipercorreção dos resultados da democracia e das políticas governamentais a partir de prescrições idealistas, denunciando o caráter insulado em que os experts em finanças tomam suas decisões em relação ao mundo dos mortais, sujeitos ao ilusionismo.
É preciso enfatizar que o excesso de insulamento burocrático pode eludir o compromisso dos governos com a democracia. Ademais, a independência legal dos agentes não garante sua autonomia. Burocratas vinculados às agências independentes podem responder a um conjunto de pressões e induções alheias aos canais formais de decisão, estabelecendo formas discretas ou ocultas de responsividade. De fato, uma das contribuições mais relevantes da recente literatura crítica sobre a autonomia dos bancos centrais foi a análise das trajetórias profissionais e as conexões externas dos seus dirigentes. Os achados dessa literatura revelam que o comportamento de tais dirigentes é o avesso da ilusão da sua imparcialidade.
Vale ressaltar que o debate regras versus discrição, quando aplicado ao caso específico dos bancos centrais autônomos, parece engendrar uma falsa contradição. Se as regras são criadas para prevenir o comportamento oportunista dos “agentes humanos”, por que a discrição é uma atribuição exclusiva dos dirigentes dos bancos centrais? Se esses dirigentes gozam de discrição, como então podemos assegurar que eles cumprem com os propósitos para os quais receberam mandato e autonomia?
O fato é que os bancos centrais não são mecanismos autômatos cujo funcionamento se assemelha a um piloto automático. Como não é possível prever todas as contingências que um banco central enfrentará, a gestão da política monetária por meio de objetivos fixos não é viável; tal como a crise financeira de 2007/2008 revelou ao colocar os bancos centrais diante de dilemas impensáveis em vista do seu tradicional conservadorismo.
Deve-se também destacar que as autoridades responsáveis pela condução da política monetária, a exemplo dos bancos centrais, não são “clássicas” instituições contramajoritárias. Diversos argumentos utilizados para explicar a decisão de delegar responsabilidades aos bancos centrais partem da falsa premissa que a política monetária é uma incumbência de instituições semelhantes aos tribunais constitucionais. Mas ao contrário das decisões dos juízes, que também devem prestar contas dos seus atos (ou pelo menos deveriam), as decisões das autoridades monetárias não são distributivamente neutras.
No limite, tais registros idealizados sobre o funcionamento dos bancos centrais não passam de velhas evocações de um liberalismo econômico utópico, fundado na suspeita da ação governamental. Tal forma de enquadrar o poder discricionário dos governos busca justificar a criação de regras fiscais e instituições “independentes”, visando muitas vezes objetivos inconfessos. Vale lembrar que a adoção de regras fixas de austeridade tem funcionado como um mecanismo de constrição da capacidade dos governos de produzir políticas. Hoje, o esforço governamental para equilibrar as finanças públicas não requer a adoção de simples ajustes, e sim a criação de “novos regimes fiscais”. Autoridades independentes, como bancos centrais, cortes constitucionais e agências reguladoras assumem funções de “guardiãs do orçamento”, a despeito das preferências dos eleitores, enquanto os programas sociais são cortados e forçados a competir por fundos cada vez mais escassos.
Ao mudar de um sistema discricionário para um sistema baseado em regras fixas de austeridade, a ação governamental passa a ser controlada por automatismos, transformando-se num artifício para conter expectativas democráticas, recusar demandas redistributivas e delegar responsabilidades, pois se as mãos dos executivos nacionais estão atadas pelas autoridades “imparciais”, que dão a última palavra em matéria de política monetária, o que esperar dos governos? Mais resignação ao conservadorismo fiscal, e as habituais escusas de que “não há alternativas”? Ou um retorno ao trágico espetáculo das distrações populistas autoritárias de políticos hábeis em explorar desencantamentos, que estão sempre à espreita de eventuais fracassos?
Por fim, se o crescimento desse
automatismo é proporcional ao recuo da discricionariedade dos governos para
produzir políticas, sobretudo políticas de geração de emprego e redistributivas,
o mesmo não pode ser dito em relação aos graus de liberdade conferidos aos
agentes ligados ao mercado financeiro, que estão cada vez mais sujeitos a
mecanismos frouxos de governança e autorregulação.
*Professor de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).
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