quarta-feira, 7 de junho de 2023

A PAZ JUSTA NA UCRÂNIA

– A obtenção de uma paz justa para o conflito na Ucrânia surgiu recentemente no léxico de alguns spin doctors.

Major-General Carlos Branco [*]

A palavra “paz” transporta uma noção de compreensão, harmonia. Ornamenta a dialética. O súbito “abandono” seletivo do discurso belicista precisa, no entanto, de ser dissecado. Estes seres não passaram de falcões a pombas do dia para a noite. Não vêm propor uma solução de soma positiva. Para eles, paz justa é a paz nos termos de Kiev, i.e., a vitória de Kiev em toda a linha, em particular, a adesão da Ucrânia à NATO, e a retirada completa e total das tropas russas de todo o território ucraniano.

Por ser subjetivo, o conceito de “paz justa” é de pouca utilidade. Não nos ajuda a compreender os acontecimentos. A sua apreciação depende do lado da barricada onde se está entrincheirado, é preconceituoso.

Uma paz justa para Kiev não será seguramente uma paz justa para Moscovo; do mesmo modo que uma paz justa para Israel não o será para Damasco, quando falamos da ocupação dos Montes Golã por Israel; ou uma paz justa para Ancara não o será para Atenas, quando se trata da invasão de Chipre pela Turquia. E por aí adiante.

Colar a ideia de “paz justa” ao respeito pelo Direito Internacional, esquecendo problemas existenciais e geopolíticos prevalecentes, ou a julgamentos de ordem moral, é um exercício de imaturidade política. O mesmo sucede quando se politiza a justiça penal internacional. Dificulta em vez de facilitar o caminho para a paz.

Para produzir efeitos benignos, a justiça de transição deve ser feita após a obtenção da paz, e não antes. Tem um momento próprio para funcionar e facilitar a reconciliação. Caso contrário, corre o risco de não passar de uma mera revanche. Não será, por isso, de estranhar que os falcões travestidos de pombas aplaudam as decisões do TPI, quando estas visam convenientemente os outros, o que parece ser a sua missão. A estas inutilidades, juntam-se as incursões teóricas no domínio da paz justa, feitas por alguns académicos.

A não existir uma vitória militar decisiva de uma das partes, a solução de paz a encontrar deverá contemplar os interesses dos litigantes, incluindo compromissos e cedências. Só uma visão alienígena da realidade é que pode acreditar ser a Ucrânia capaz de infligir uma derrota militar decisiva à Rússia e conseguir a plenitude dos seus objetivos estratégicos, em particular, recuperar a península da Crimeia e ser admitida na NATO.

A paz não depende, portanto, da ação unilateral de um contendor, mas de movimentos coordenados de todos os envolvidos.

É aqui que entra a ação da mediação internacional, ajudar as partes a focarem-se numa abordagem de soma positiva: incentivar a comunicação, promover a discussão dos interesses das partes, destacar os interesses comuns, reduzir as tensões, ajudar as partes a salvar a face, sugerir concessões, alterar as expectativas dos litigantes, assumir responsabilidade pelas cedências, consciencializar os oponentes sobre o custo do não acordo, recompensá-los pelas as suas concessões, pressioná-los para mostrarem flexibilidade.

Goste-se ou não, não é à luz do Direito Internacional, da moral ou dos sentimentos de justiça ou injustiça que o resultado do conflito vai ser determinado. A paz que se vier a obter resultará principalmente, ou inteiramente, das relações de poder que prevalecerem entre os estados envolvidos, com os EUA à cabeça. Como noutros locais do planeta, a paz a que se chegar será a possível, e não a fantasiada paz justa.

26/Maio/2023

[*] Major-General (R)

O original encontra-se em Jornal Económico e em estatuadesal.com/2023/06/01/a-paz-justa-na-ucrania/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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