domingo, 16 de julho de 2023

Angola | CAMINHO-DE-FERRO DE BENGUELA -- Artur Queiroz

A Mais Valiosa Joia de Angola Oferecida ao Desbarato

Artur Queiroz*, Luanda

O Caminho-de-Ferro de Benguela (CFB) é a estrada mais curta entre o Oceano Atlântico e a África Central profunda, sem frente de mar. Uma brochura belíssima da empresa, profusamente ilustrada com aguarelas do artista angolano Neves de Sousa, faz a apresentação da maior obra pública alguma vez foi realizada no nosso país, citando um relatório assinado pelos administradores Robert Williams e General Joaquim José Machado (delegado do Estado Português junto da empresa), engenheiro militar e que foi director do Serviço de Obras Públicas de Angola. Uma estação no Bié (Camacupa) foi baptizada com o seu nome, a Vila General Machado.

O relatório afirma que “graças ao caminho-de-ferro, Lourenço Marques (Maputo) e Durban forneceram uma saída para as minas do Rand; Os campos da Rodésia (Zimbabwe) exportam os seus produtos pelo porto da Beira. Dentro de meses Katanga pode exportar o seu cobre, aos milhares de toneladas, pela Baía do Lobito, graças ao Caminho-de-Ferro de Benguela”.

O outro autor do relatório é assim apresentado: “A concepção do Caminho-de-Ferro de Benguela e o desenvolvimento da Baía do Lobito são devidas a um escocês. Sir Robert Williams, a quem foi conferido o título de “Varonet” em 1928, pela sua acção no desenvolvimento de África durante 50 anos. Foi Williams quem descobriu os jazigos de cobre na Katanga e quem prolongou a secção do Caminho-de-Ferro do Cabo ao Cairo, desde Broken Hill até ao Congo Belga, alcançando por conseguinte para os produtos da Rodésia o valioso mercado da Katanga e criando tráfego para os mesmos Caminhos de Ferro”.

Robert Williams embarcou a primeira vez em Aberdeen com destino a África em 1881 e durante alguns anos foi sócio Cecil Rhodes em diferentes empresas mineiras em Kimberley e no Rand. Desta sociedade nasceu o projecto Caminho-de-Ferro do Cairo ao Cabo. A ideia era escoar todos os minérios saqueados entre os grandes rios Zambeze e Congo (Zaire). Angola estava no trajecto. Mas isso só era possível transferindo o eixo do Lago Tanganica para Angola/Congo Belga. Neste ponto entra o Almirante Gago Coutinho que se empenhou em integrar o rio Zambeze na colónia de Angola.

O almirante pioneiro nos voos transatlânticos (a Marinha também voava!) fez o desenho da fronteira Leste de Angola, entre o bico da Luiana e o início do saliente do Cazombo. O trabalho do traçado devia ter igualmente um técnico britânico mas Londres confiou no trabalho de Gago Coutinho. Os sobas locais levaram-no ao território do Alto Zambeze e mostraram-lhe a “flor do cobre”, pedras verdes belíssimas. Aquelas flores mostravam fortes indícios do metal, na época muito valioso. 

Quando Portugal negociou com a Bélgica a permuta do Vale do Mpozo com o território da Lunda (Tratado de Loanda), o almirante deu instruções para que os negociadores exigissem todo o território que corresponde hoje ao saliente do Cazombo, porque assim o rio Zambeze passava a correr em Angola e a colónia ficava com grandes reservas de cobre. Juntou uma carta dos solos que ele elaborou secretamente. Até hoje aquela riqueza continua inerte. 

Pode ser que o Grupo Carrinho ou a Construtora Omatapalo, dando expressão à sua filantropia, estejam interessados em aumentar o PIB de Angola para o dobro. Apenas os artesãos usam a “flor do cobre” para fazer colares e outros adornos. Nos anos 60 fiz uma reportagem sobre as populações ribeirinhas do Zambeze em Angola. Conheço bem a terra das flores do cobre!

O SONHO DESVIADO

A Ferrovia Cabo-Cairo foi pensada para perpetuar o colonialismo britânico na África Central. O sonho de Cecil Rhodes não se concretizou na totalidade mas ainda hoje estão operacionais várias linhas. O trecho sul-ocidental nasce na Cidade do Cabo e passa por Kimberley e Mahikeng, na África do Sul. Gabarone e Francistown no Botsuana. Términus em Bulawayo no Zimbabwe. Trecho sul-oriental parte de Porto Elisabete passa por Bloemfontein, Joanesburgo, Pretória e Musina, na África do Sul. Términus em Bulawayo.

 No Zimbabwe funciona o troço central-sul, que liga Bulawayo às Cataratas Vitória (rio Zambeze) e daí para Livingstone, Lusaka e Ndola na Zâmbia. Esta via-férrea avança para Sacania, Lubumbashi, Tenque, Bucama, Camina, Cabalo e Kindu na República Democrática do Congo.  Neste país a via que liga ao Burundi, Ruanda e Uganda ficou incompleta. Porque o “sonho” de Rhodes foi desviado para a rapina dos recursos naturais de Katanga.  

A via central-norte está operacional e liga Kampala, Njeru, Busembatia, Tororo no Uganda. O trecho que liga Gulu no Uganda a Juba e Vau no Sudão do Sul também ficou incompleto, até hoje, devido ao “sonho” do Katanga. A via Norte-Alto Nilo liga Babanuza a Senar, Cartum e Wadi Halfa, no Sudão. Entre esta cidade e Assuão, no Egipto, também está incompleto. 

A via Norte-Baixo Nilo liga Assuão a Luxor, Assiute, Cairo e Banha, no Egipto. Via Norte-Ocidental liga Banha a Alexandria. Via Norte-Central liga Banha a Damieta. O trecho Norte-Oriental  liga Banha a Port Said.  Todos no Egipto.

Com o fim de desviar o sonho para as riquezas do Katanga, Cecil Rhodes fez um contrato com o rei Leopoldo da Bélgica, dono do Estado Livre do Congo (colónia conhecida como Congo Belga) e adquiriu uma concessão para “pesquisas mineiras” numa área de 50.000 mil milhas quadradas na região de Katanga. A troco de oito mil libras anuais, durante cinco anos, a contar de 8 de Dezembro de 1900. Quando os minérios eram “descobertos” a concessão passava a 30 anos.

A SOCIEDADE COM WILLIAMS

Para esta empreitada, Rhodes fez uma sociedade com Robert Williams. E este decidiu que o desvio da Ferrovia Cairo-Cabo devia passar pelo Congo Belga e a Baía do Lobito seria o Porto exportador. O projecto visava unir o Oceano Atlântico a Katanga, numa distância de 2.470 milhas. A cidade do Cabo lá longe, longínqua e o Lobito ali à mão! Foi assim que nasceu a Empresa do Caminho-de-Ferro de Benguela (CFB).

Os estatutos do CFB foram aprovados por Decreto do Governo Português, em 25 de Maio de 1903. Foram registados no Tribunal do Comércio em 28 de Maio de 1903, por escritura pública de 25 de Maio de 1903, há 120 anos. Os donos da empresa Lobito Atlantic Railway (LAR) nem sequer eram projectos de vida. A Mota Engil Angola ainda não facturava por obras nunca feitas.

O projecto era claro neste ponto: A bitola do CFB tinha de ser igual à da Ferrovia Cairo Cabo. O canal ferroviário atravessa Angola numa distância de 1347 quilómetros, do mar ao rio Luau no Leste. Mas é vizinho da divisória dos rios Congo e Zambeze. A obra começou em força no dia 1 de Março de 1903. Milhares de “indígenas” garantiam os trabalhos forçados. Muitos morreram dizimados pela doença e os maus tratos. O primeiro troço foi do Lobito à Catumbela “e eventualmente até Benguela”. As obras ficaram a cargo dos empreiteiros Pauling & Co. O primeiro grande obstáculo era o rio Catumbela. A ponte ferroviária foi inaugurada em Maio de 1905. Dois anos depois do início dos trabalhos forçados e em alta velocidade.

CIDADE DAS FLORES RUBRAS

Na época Benguela tinha uma fortaleza, um Hospital Militar e um Tribunal. Augusto Bastos, o angolano prodigioso, foi presidente da Câmara Municipal nesta época. Transformou São Filipe na Cidade das Acácias Rubras. Mandou arborizar todo o casco urbano com essas árvores. Além do Morro do Sombreiro, da Praia Morena, da Escola Kuribeka e do canto do martrindinde Benguela passou a ter comboio que até apitava. Em 1908 foi entregue a empreitada de Benguela ao Cubal. (Quilómetro 197). Paralelamente foi adjudicada a empreitada até ao Cuma (Km. 322) na época “um importante centro comercial”. Outro empreiteiro fez a obra até ao Monte Lepi (Km360). Os trabalhos começaram em 31 de Julho de 1911.

Em 19 de Dezembro de 1911 novo contrato para a construção da via-férrea até ao Huambo (km 426). Simultaneamente avançou a empreitada entre Huambo, na época um acampamento ferroviário, e Chinguar (km. 519). Nesta altura foi tomada a decisão de transferir a sede do CFB do Lobito para o Huambo, “logo que estejam concluídas as necessárias acomodações” como consta do relatório de Robert Williams e General Machado.

A CAPITAL DE ANGOLA

O Governo-Geral de Angola, no mandato do General Norton de Matos, anunciou em cima do acontecimento que também ia transferir a sua sede para aquela que é hoje a capital do Planalto Central. Foi ele o fundador da cidade que baptizou de Nova Lisboa. Na época o governador usou um argumento curioso para justificar a transferência da capital de Angola de Luanda para o Planalto Central: “O clima é melhor do que na Europa, podemos usar gravata o ano inteiro”. Mas também usou um argumento de peso: “Se a capital de Angola mudar para o Planalto Central, todo o território, de Norte a Sul, se desenvolverá rapidamente com as estradas que vão ser construídas”. 

O Planalto Central tem 600 quilómetros de extensão e uma altitude de 1.400 metros. O milho dominava a agricultura na época da construção do canal ferroviário. E ainda domina. A colheita de 1927 foi de 50.000 toneladas. A de 1928 atingiu as  80.000 toneladas.  Muito ou pouco? A Reserva Estratégica Alimentar (REA) comprou em 2022, através da empresa Carrinho Agri, 10 mil toneladas de milho a 38 mil produtores. Um feito apontado como notável. 

Nesta época também havia muito trigo sobretudo no Bié e Norte da província de Benguela. A sul do rio Cuanza eram produzidas grandes quantidades de arroz. O açúcar era no litoral, faixa entre a Catumbela e Benguela. Estava a nascer o sisal. Ganda e Cubal tomaram a dianteira. Os pioneiros desta cultura foram Francisco Severino de Lima, Sebastião das Neves mais os irmãos alemães Luís e Hanse Spits. Naquele tempo o sisal era mais valioso do que o café. Nos anos 60 Trancoso Vaz lançou a produção de abacaxi com fábrica de sumos naturais. 

Num documento da época o CFB informava que “a construção de casas para empregados, acomodações para indígenas e as necessárias instalações sanitárias estão já muito adiantadas. A altitude do Huambo dá à cidade excelentes condições de clima e a sua situação assegura-lhe um futuro importante como centro comercial facilmente acessível aos distritos agrícolas que a rodeia. Nela se encontra também uma Estação de Telegrafia sem Fios, um aeródromo e boas estradas em todas as direcções”. A via-férrea chegou ao Chinguar em 1913. E aqui parou. 

A guerra de 1914-1918 paralisou os trabalhos. Um navio carregado com carris de ferro teve de fugir para um porto brasileiro porque foi atacado pelos alemães. Só em 1920 a construção da linha continuou. Os milhares de “indígenas” ficaram sem trabalho nem protecção social. Uma tragédia. Terminada a guerra as obras recomeçaram e o canal ferroviário chegou ao Cuito (Silva Porto) em finais de 1923. Em 1935 a via chegou ao rio Cuanza (Km. 725).

PONTES FEITAS E DESTRUÍDAS

O grande obstáculo natural chamado rio Cuanza foi superado construindo uma ponte de ferro com 160 metros de comprimento. Serviu para o comboio, o tráfego automóvel e para peões. Dali para a frente a via-férrea seguiu o Vale do Cuiva na divisória dos rios Cuando e Cuanza. Atingiu a as terras do Zambeze seguindo até à fronteira na distância de 1.234 quilómetros e a uma altitude de 1.087 metros. Mas ainda não era o fim do caminho.

O relatório da administração do CFB refere estes factos: “A antiga fronteira entre Angola e o Congo Belga era o términus original do CFB; mas em virtude de um contrato feito e Loanda em Agosto de 1927 (tratado luso-belga), o governo da Bélgica cedeu a Portugal 3.000 quilómetros quadrados do seu território no Congo. Essa transferência de território fez recuar a fronteira Congo-Angolense para Leste 100 quilómetros e a Companhia CFB continuou a construção da sua linha até à nova fronteira, sendo proporcionalmente reduzida de 640 para 540 quilómetros a secção em território belga. A linha chegou à nova fronteira atravessada por uma ponte internacional sobre o rio Luau, em 28 de Agosto de 1928. A construção desse ponto para diante ficou a cargo da Compagnie du Chemin de Fer du Baz-Congo au Katanga a fim de completar a ligação entre a testa do CFB e a linha principal do Cabo ao Cairo, na estação de Tshilongo, em harmonia com os termos do acordo de cooperação entre os caminhos-de-ferro aprovado pelo rei Leopoldo.

A ferrovia entre a ponte do Cuanza e o Luau tem 527 quilómetros de extensão com 26 estações e 26 pontes. Uma delas, a do Kuiva, tem 80 metros de comprimento, todas as outras têm entre 20 e 40 metros. Entre elas, a ponte sobre o rio Kuelli (Km. 746) e a ponte sobre o rio Lumeji (Km.1.134).

 Jonas Savimbi e seus matadores, ao serviço da OTAN (ou NATO), do estado terrorista mais perigoso do mundo e dos chefes do regime racista de Pretória, partiram quase todas as pontes e pontecos. Alguns destruidores hoje são generais das FAA, deputados e dirigentes de topo da UNITA. Os prejuízos causados ao Estado Angolano pelos sicários do Galo Negro são mais do dobro daquilo que os novos donos do CFB vão pagar em 30 anos! O comboio apitou no Luau no dia 27 de Novembro de 1927. A via foi aberta à exploração em 1 de Março de 1928.

Tomem nota dos nomes das estações: Lobito, Catumbela, Benguela, Lengue, São Pedro (rio) Coroteva, Catengue, Solo, Caimbambo, Cubal, Chimboa, Ganda, Babaera, Quingenge, Cuma, Longonjo, Lepi, Calenga, Caála, Huambo, Cambuio, Boas Águas, Vila Nova, Bela Vista, Chinguar, Cutato, Capeio, Vouga, Silva Porto (Cuito), Chipeta, Catabola, General Machado (Camacupa), Cuanza, Cueli, Kuiva, Kohemba, Savingila, Munhango, Simoje, Cangonga, Cavingi, Sacanga, Caipoque, Salema, Luena, Vila Luso, Luculo, Santanda, Quifungo, Lumeje, Cassai, Chabaia, Chifu Maji, Caifuchi, Luacano, Macuesi e Teixeira de Sousa (Luau).

Ao longo do CFB o Governo-Geral de Angola dava concessões de 5.000 hectares para a agricultura e 50.00 para criação de gado. Bastava pedir. O proprietário só tinha que pagar o custo da demarcação da propriedade ao Agrimensor do Governo ou a um topógrafo particular devidamente credenciado.

A administração de Robert Williams e General Machado, num relatório enviado ao Governo-Geral de Angola gabava-se de tratar bem os “trabalhadores indígenas, muito inteligentes, até são capazes de assentar carris”. Um trabalhador indígena recebia 3 escudos por dia. Muito ou pouco? No hotel do Lobito (Términus) um pequeno-almoço valia seis descudos, dois dias de trabalho. O almoço custava 20 escudos, 20 dias de trabalho de um “indígena”.

O CFB é uma joia valiosíssima de Angola. Pelo texto que escrevi para homenagear os milhões de angolanos que trabalharam e morreram ao longo da linha durante a construção, é fácil concluir que essa riqueza incomensurável foi oferecida de mão beijada aos donos da Lobito Atlantic Railway (LAR). Tal como toda a nudez será castigada, as negociatas também serão. Um dia alguém vai ser capaz de combater a co0rrupçáo e a impunidade.

Os comboios do CFB também ofereciam “consultas médicas”. Médicos da empresa viajavam nas composições entre o Lobito e o Luau. Paravam nas estações e davam assistência às populações e aos funcionários. Um desses heróis é Manuel Balonas (Manecas), filho do Huambo e meu querido amigo. Grande futebolista da Associação Académica de Coimbra com Maló, Mário Torres ou o nosso Piscas. Era médico anestesista e foi preso pela PIDE em Coimbra. Regressou a Angola e arranjou trabalho viajando de estação em estação para socorrer os doentes ao longo do canal ferroviário. Em algumas estações ficava alguns dias.

 A Primeira-Dama de Angola, Ana Dias Lourenço, patrocinou o regresso dessas consultas médicas. Nem tudo esta podre no Reino da Dinamarca.

*Jornalista

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