Artur Queiroz*, Luanda
Aos sábados há sempre sol mesmo quando o cacimbo desce lentamente das alturas do Pingano e aterra na Capopa. Não se via um palmo à frente do nariz. Mas Tata Tuma sempre dizia: Não há sábado sem sol nem domingo sem missa na aldeia da missão. Lá onde o guarda-fiscal tinha uma corrente de ferro que ia de um ao outro lado da picada para ninguém passar com os sacos de café sem pagar portagem.
O cacimbo levantava ao início da tarde e lá vinha o sol pletórico de claridade. Tenho saudades desses sábados, com mergulhos nas águas do Kanuangu onde havia caranguejos e camarões como se fosse o mar. O assustador mar que exercia grande fascínio no Rui de Matos (filho dilecto do grande Chico Matos, rei dos Coqueiros), o nosso poeta de maios e artista de todas as artes, também conhecido pelo Ideias Gerais.
Os sábados no Bairro Operário eram de cachupa no quintal do Belini e do Dideus. Depois mornas e koladeras de crucutir. Cesária da boca grande e nariz de clarinete! Ó teresinha dinheiro de Angola já acabou… Esta está muito actual. Quem trata da moeda ainda não leu o último livro (está em PDF se quiserem eu mando!) de José Cerqueira onde ele explica como se resolve o problema do dólar falso e fugitivo.
Nas nossas tardes de sábado, no quintal de aduelas, o Manecas rasgava um sorriso malandro (Pega esse malandro! Malandro está pegado!) e cantava:
Todo o boi é boi
Todo o vaca é boi
Boi inteiro é boi
La na achada é boi
Boi castrado é boi
Todo o vaca é boi
Nho Zé Costa é boi
E su fidjo é boi
Aé!
Eh nha mãe!
Todo o boi é boi
Eugénio Tavares sempre presente como os violões de Belini e Dideus. O Manecas exorcizava dores tão profundas que nasceram nas cavernas de nossos avós. Como ele gostava da vida! O nosso mundo tinha ao norte a casa do Brandão Lucas e sua belíssima mana Carminho. Na zona centro era a casa do Zé Cunha Velho e ao lado vivia o Hendrick Vaal Neto, seus irmãos mais o silencioso Virgílio Freitas Lima (Gírio). Partiste tão cedo desta vida ardente, meu irmão! Em frente o Mais Velho Mingas. Estávamos todos apaixonados pela Júlia mas ela só via o Hendrick. No fim da rua, lá onde começava o musseque era a Família Soares. O lar do Manecas.
Um dia ele partiu para Portugal. Foi tirar um curso de electrónica numa escola da Força Aérea. Quando voltou, arranjou trabalho no nosso Centro Emissor. Eu andava de jornalista. Estávamos lutando bravamente pela Liberdade. Ele ligava-me para a Redacção e combinávamos varrer uma cachupa caprichada pela Mamã. Nunca aconteceu. Um dia alguém me ligou do Centro Emissor. O Manecas partiu sozinho, com ele, sem pedir licença aos deuses. Marcou a hora da partida. O momento. Sem padre nem confissão. Gostava tanto da vida e deixou de gostar.
Nunca mais as mornas no quintal de aduelas no Bairro Operário. Ali onde tive a certeza de que a poesia nasceu muito antes da música. Sem o poema de que vale a morna? De que serve a nona sinfonia de Beethoven sem o Adeus à Hora da Largada? Que ouvidos se abrem a Prokofiev sem o Cântico Negro? Que Vivaldi existe sem Descalça Vai para a Fonte Leanor pela Verdura?
Porque hoje é sábado e tenho
saudades de Vinícius de Moraes vou deixar-vos este poema de Eugénio Tavares,
aquele que um dia escreveu Se Deus É Grande o Amor é ainda Maior. O título
desta peça que vos deixo é Quel Pessoa (quem será a amada?) e está escrito
Note tem treba,
Ca mas sucuro que sé ojo.
Junho tem neba,
El ca mas albo que sé corpo.
Maior zimola
Ca chega graça de sé boca;
Se Des da’n el
Mi’n dal nha bida, ami’n ganha na troca…
Quando el arri,
Nhor Des ta abri
Porta de Ceu; sol ta escobri,
Mar ta cantâ
Flor ta esdrobrâ.
Mas se el bachâ,
Bachâ sê ojo
Razoado de ago, Nhor Des ta mandâ
Tristeza, nojo,
Tromenta, guerra,
De ceus a terra.
Porque hoje é sábado, vamos ao Marítimo onde a quizomba é eternidade. Depois colocamos uma vela à Nossa Senhora da Ilha. A Canducha jurava sangue de Cristo que a santa dá sorte ao amor. Oxalá!
*Jornalista
Imagem: Encravado na malha urbana da cidade, o Bairro Operário é um dos bairros mais característicos de Luanda © Ampe Rogério/RA
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