terça-feira, 4 de julho de 2023

O regime democrático “organizou o esquecimento” da violência colonial portuguesa

MIGUEL CARDINA entrevistado por João Biscaia para o Setenta e Quatro

O historiador crê ser necessária uma reflexão sobre a descolonização do espaço e dos discursos públicos para se combater os resultados perniciosos de um lusotropicalismo hegemónico que se vem reconfigurando há décadas.

Pouco depois da aprovação e promulgação da atual carta constitucional portuguesa, a 2 de abril de 1976, chegou às livrarias o tomo Massacres na guerra colonial — Tete, um exemplo. Escrito pelo jornalista José Amaro Dionísio e publicado pela editora Ulmeiro, o livro reuniu documentos secretos, à altura inéditos, sobre uma operação militar portuguesa na zona de Tete, em Moçambique, a 16 de dezembro de 1972.

Em suposta retaliação a um ataque contra um avião civil dos Transportes Aéreos de Tete, a tropa portuguesa bombardeou as aldeias de Wiriyamu e Juwau. De seguida, lê-se no livro, avançaram sobre as aldeias “4 grupos da 6.ª companhia de Comandos, grupos especiais de pára-quedistas, de pistoleiros profissionais e de agentes da PIDE/DGS” que se entregaram a uma “fúnebre orgia de matança”. Pelo menos 358 pessoas foram massacradas nessa “Operação Marosca”, hoje conhecida como o Massacre de Wiriyamu.

O livro depressa vendeu mais de dez mil exemplares. O Estado-Maior-General das Forças Armadas, encabeçado pelo General Ramalho Eanes, decidiu levar José Amaro Dionísio e José Antunes Ribeiro, editor da Ulmeiro, a tribunal pela divulgação de documentos secretos e por atentarem contra as forças armadas portuguesas. Nunca houve julgamento e ambos acabaram amnistiados, em 1983, quando o papa João Paulo II visitou Portugal.

Para o historiador Miguel Cardina, este é um dos principais exemplos de como “houve processos de organização do esquecimento da guerra”, findo o processo revolucionário. Um entre muitos outros descritos num livro que pretende traçar uma “história da memória” da guerra colonial e da hegemonia que o “feitiço imperial” tem sobre a sociedade portuguesa.

Investigador do colonialismo português tardio e das dinâmicas entre a História e a memória, Cardina considera que houve a coordenação de um silêncio em relação à Guerra Colonial, e aos seus massacres, que serviu para manter a ideia de que o colonialismo português foi brando e civilizador, secundarizando a violência da dominação portuguesa em África, sobretudo.

Desenterrar esse passado intencionalmente esquecido é, para o autor do livro O atrito da memória — Colonialismo, guerra e descolonização no Portugal contemporâneo, uma maneira de “reparar o nosso passado de desigualdades”, para combater “a manutenção dos efeitos claros de uma sociedade racista” e de uma persistente “afasia colonial” que ainda carregamos.

No livro, usa, do título ao epílogo, diversas imagens para ilustrar um processo de apagamento de partes da história de Portugal da nossa memória comum. Evoca o conceito de “memória fraca” de Enzo Traverso; o título fala em “atrito”; e no último capítulo refere um “passado enterrado vivo”. Se o “atrito” nos remete para um processo historiográfico relativamente natural, o “passado enterrado vivo” denota uma intenção. Esse apagamento foi mais intencional que natural?

Este é um livro sobre história, memória e poder. Interessou-me entender as dinâmicas de inscrição e não-inscrição do passado na memória, a partir das forças sociais e políticas que se manifestam nos diferentes presentes — porque também é um livro sobre a história da memória, da evolução das representações do colonialismo e da guerra [colonial]. 

Nessa medida, procurei usar expressões que revelem a atuação do poder, como "esquecimento organizado". Creio que torna explícita essa intenção, vinda de determinadas forças, de enterrar o passado.

Esse esquecimento não acontece, portanto, naturalmente. É certo que viveríamos num mundo distópico se achássemos que todo o passado deve ser recordado em todo o presente. Seríamos como o "Funes, o memorioso", personagem do conto de Jorge Luís Borges, que se recorda de todo o passado mas que não o consegue pensar e articular. Nós, seja como indivíduos ou sociedade, selecionamos o que recordar.

O que procurei entender não foi tanto esse facto natural, mas a razão de escolhermos determinados acontecimentos e não outros, que forças contribuem para essa seleção e o que essa seleção nos indica. Daí utilizar essas expressões — o "atrito", a dicotomia de Traverso entre "memórias fracas" e "memórias fortes", ou o "esquecimento organizado" — e não um "silêncio social", como se fosse algo vago e naturalizado. Não: o silêncio organiza-se.

Parte do livro é uma análise sobre a memória da guerra colonial no pós-25 de Abril, servindo-se de fenómenos pouco lembrados, como a deserção. A organização deste esquecimento — da guerra e de fenómenos adjacentes —, depois do período revolucionário, serviu para quê?

Se falamos da guerra, as razões para a sua falta de relevância social são complexas. Obviamente, a guerra foi extremamente relevante enquanto acontecimento histórico. Foi o que determinou a mudança de regime em Portugal e cinco independências africanas com a vitória dos movimentos de libertação. 

Para não falar dos impactos sociais: 40% do Orçamento do Estado ia para a guerra, nos seus anos finais; 800 mil portugueses foram mobilizados para combater, junto com 500 mil africanos incorporados na tropa portuguesa. Os impactos políticos, sociais e económicos são mais que relevantes. 

Por um conjunto de razões, a guerra, depois da revolução, tenderá a fazer parte de um passado que custa lembrar. Desde logo por ainda estar tão próxima. Depois, o modo como as oposições políticas lidaram com o anticolonialismo. Não foi um tema unânime. Procurei traçar a evolução da articulação entre o antifascismo e o anticolonialismo, e é uma questão complexa. 

Há ainda o facto de a mudança política ter sido feita pelos militares. Uma guerra é, por definição, violenta, mas os aspetos ligados aos massacres das populações foram, por exemplo, tendencialmente esquecidos. 

Não é que não se falasse [dos massacres]. Foram divulgados e usados como parte da denúncia do colonialismo português, não só pelos movimentos de libertação como pelas oposições portugueses, sobretudo na fase final do regime. O massacre de Wiriyamu foi o que mais incomodou o regime, devido ao facto de Marcello Caetano ser confrontado com isso na visita a Londres.

Logo a seguir, em 1974, "Wiriyamu" torna-se uma palavra-código para designar os massacres. Há um padre que denuncia massacres em Moçambique dizendo que "houve vários Wiriyamus". Um ano e tal depois, é um símbolo da violência colonial.

Recuperando a "organização do esquecimento", depois de 1976 vamos ter, da parte dos poderes políticos, mediáticos, religiosos e militares muito pouca vontade de recordar esse passado, e até uma vontade ativa de o silenciar. No livro, noto vários momentos em que isso é evidente.

Há a interrupção do programa de televisão "A guerra inútil", no quadro de uma série documental que a RTP estava a emitir, suspenso após um episódio sobre a cumplicidade da Igreja Católica com o colonialismo. Temos a suspensão de um outro programa televisivo, o "Fila T", depois de passar excertos de uma peça de teatro de Luís de Sttau Monteiro ["2 peças em um acto: A Guerra Santa — A estátua"]. 

E há ainda a retirada do mercado do livro Massacres na guerra colonial - O caso Tete, onde se enquadra Wiriyamu, e a ida a tribunal do seu autor e do editor da Ulmeiro, que publicou o livro. Curiosamente, foram ambos amnistiados em 1983, por ocasião da visita do papa João Paulo II a Portugal.

Estes exemplos mostram que houve processos de organização do esquecimento da guerra. Além de outros processos mais naturais: falta de disponibilidade pública para ouvir uma história com sabor a derrota ou o facto de ter acontecido há pouco tempo. Mas também há a vontade de esquecer esse passado e, sobretudo, a sua dimensão violenta.

Por exemplo, se pensarmos nas histórias dos desertores ou dos ex-combatentes, que até há pouco tempo pareciam estar na penumbra, houve uma recusa do poder em ouvi-las?

Essa memória vai evoluindo ao longo do tempo. O [historiador] Manuel Loff estudou isso e eu procurei aprofundar, porque concordo com a sua posição: há uma reconfiguração dessa memória na década de 1990, relacionada com mudanças na memória mais vasta da ditadura e da revolução. 

Carlos Maurício, também historiador, trabalhou a recuperação da memória da direita política a partir dessa década, a memória do ressentimento em relação à perda das colónias, que vai repescar alguns tópicos e inscrevê-los no espaço público (até na nomenclatura), como é o caso do monumento aos "combatentes do ultramar" em Belém.

A utilização, na historiografia ou no jornalismo, da expressão "guerra do ultramar", em vez de "guerra colonial", é exemplo de uma reafirmação pública de uma narrativa da perda, por um lado, e de justificação do esforço de guerra, por outro.

Tenho de sublinhar duas coisas. Em primeiro lugar, a memória dos combatentes é plural. Tendemos a olhar os veteranos da guerra como grupo uniforme, mas todos diferem entre si. As suas experiências eram determinadas por fatores muito diversos. Era diferente combater em Angola, em Moçambique ou na Guiné, combater nos inícios da década de 1960 ou já na década de 1970.

Uns vinham do Portugal rural, sem experiências do contacto com o mundo urbano, vindos de contextos muito pobres — como a maioria dos portugueses —, outros vinham de meios urbanos, já haviam viajado e tido outras experiências. Uns confrontaram-se com a possibilidade de morrer e cometer violências, outros não.

Também difere a maneira como as pessoas foram levadas a recordar a guerra nas décadas seguintes. A Liga dos Combatentes tem um papel relevante na maneira como, nas últimas duas décadas, se foi reafirmando uma certa narrativa em relação à memória da guerra. Por exemplo, temos assistido à proliferação de monumentos à guerra colonial. 

Neste momento, são mais de 400 — segundo um estudo do investigador André Caiado, no âmbito do projeto CROME — e não há grande noção disso porque estão dispersos por freguesias do interior do país. A grande maioria não está nos centros urbanos. No essencial, são resultado de uma articulação entre a Liga dos Combatentes e a administração local.

E em relação à deserção?

Há uma memória dos desertores que muda a partir do momento em que há um conjunto de pessoas, em 2015, que reconhece essa memória subalterna, circunscrita a quem a vivenciou e alguma, pouca, academia, e que decide criar a Associação de Exilados Portugueses. Passa a haver uma articulação com historiadores que trabalham esse assunto, criaram-se sinergias com pessoas que organizam conferências, coordenam livros, realizam documentários, e isso ajudou a dar visibilidade à memória da deserção.

Apesar de haver quem tenha afirmado essa memória no espaço público desde então, ela foi sempre uma "memória fraca", para usar o termo de Enzo Traverso. Ainda há muito por saber sobre a experiência da deserção. Trabalhando esse tema, a Susana Martins e eu descobrimos, fazendo uma análise quantitativa, que o grosso dessas pessoas não tinha experiência política direta, tornando a deserção um fenómeno que extravasa o envolvimento político em estruturas da esquerda política.

Nenhuma grande estrutura política de esquerda transformou a deserção numa experiência importante de tornar visível no espaço público. O Partido Socialista nunca teve como marca a deserção e o Partido Comunista Português, que não se opunha às deserções, aconselhava os seus militantes a não desertar. Portanto, no pós-25 de Abril, não vamos ter estruturas políticas a tornar a deserção em algo importante de memorializar.

Falando sobre a memorialização, o terceiro capítulo debruça-se sobre o corrente movimento global de remoção de estátuas e ressignificação de monumentos coloniais ou colonialistas. No nosso "centro imperial" tem havido um ímpeto na direção contrária — a estátua do Pe. António Vieira, os brasões coloniais em alvenaria, em Belém. Sofremos daquilo que Ann Laura Stoler chama, e o Miguel cita, "afasia colonial"? A colonialidade está a ser revitalizada?

Temos ambos os movimentos, mas há uma renovação da colonialidade bastante expressiva. Está presente nos exemplos que deu e, também, na proposta que ainda paira por aí sobre a criação de um "museu da descoberta", avançada por Fernando Medina e recuperada por Carlos Moedas. 

E também na recente censura de uma instalação artística d[os artistas brasileiros] Paulo Pinto e Dori Nigro, pela Santa Casa da Misericórdia do Porto, que denunciava a história escravocrata de Conde Ferreira. É um exemplo de como, ao contrário do que muitas vezes se afirma, não estamos num mundo em que o "vandalismo" antirracista tomou conta do espaço público. É exatamente o contrário. 

Há, a partir de 2017, um tempo novo, uma articulação trazida por um novo movimento antirracista que, além de questões como a violência policial, também quer debater a representação. A representação não é apenas um imaginário que paira sobre a realidade. Está ligada a dinâmicas de segregação, de racismo, de xenofobia. 

Conjugando essas manifestações dos movimentos antirracistas a uma academia crítica e a uma arte e uma cultura atentas a estas questões, cria-se, a partir desse ano, um campo alargado em que esses ímpetos de glorificação do passado colonial português têm como contraponto a crítica de um conjunto articulado de pessoas e instituições que dizem "já chega" à naturalização dos discursos coloniais.

O movimento político e social de revitalização da colonialidade não vai cessar. A censura da Misericórdia do Porto é exemplo disso. Mas, ao mesmo tempo, haverá sempre um contraponto. Veremos o que nos mostrarão os próximos tempos, até porque vivemos grandes contradições e a questão da guerra colonial está profundamente ligada a isso. 

Pensemos no caso de Wiriyamu ou de Amílcar Cabral. Há uma mudança que se projeta: pedidos de desculpa, a valorização de uma figura africana que lutou contra o Estado português e promoveu indiretamente a democracia portuguesa. Quando, ao mesmo tempo, o Estado português fez elogios oficiais a Marcelino da Mata depois da sua morte.

Se olharmos para Lisboa, a reafirmação da colonialidade também não é afastada de dinâmicas de turistificação. O caso do "museu da descoberta" é o mais óbvio. Quando o propôs, Fernando Medina estava determinado por um imaginário de glorificação do passado colonial, mas o que lhe ia na cabeça era: "como podemos usar isto para relançar uma imagem de um país multicultural, de encontros, que deu 'novos mundos ao mundo'?". No fundo, um remake daquilo que foi a construção desse imaginário no Estado Novo e a sua revitalização para a Expo'98.

No livro, fala de uma "ilusão retrospetiva da unidade da nação" sobre o facto de políticos como Fernando Medina ou António Costa compararem eventos como a WebSummit, em que Lisboa seria o centro de novos "descobrimentos" do capitalismo digital, aos empreendimentos expansionistas dos séculos XV e XVI. O que explica esta facilidade em ir buscar mitos coloniais, sustentados nessa tal ilusão, e adaptá-los aos empreendimentos do presente?

A tal "afasia colonial" de que falávamos há pouco. Importa, enquanto sociedade, afrontá-la — até porque tem efeitos perniciosos no presente. Em Portugal, tendemos a olhar esse passado secundarizando a violência e a dominação. É o triunfo do lusotropicalismo, que volta reconfigurado depois de nos anos 1950 cumprir uma função muito própria de legitimação da dominação colonial e da guerra num contexto global de descolonização.

Depois do processo revolucionário — um breve e conjuntural parênteses histórico — o lusotropicalismo cumpre a tarefa de recriar o imaginário de uma nação que teria um passado colonial não-colonial, resultado dessa desvalorização das violências e da dominação dos povos colonizados, e da ausência de um projeto político alternativo para lá da Europa. As elites políticas portuguesas entenderam que, para fechar o ciclo africano do império, seria necessário abrir o "ciclo europeu".

Esse "ciclo europeu", como tento mostrar no livro, é revestido de significados sobre a identidade nacional onde está profundamente presente o imaginário da expansão, do "contacto" com África, Brasil e Índia. 

Tento mostrá-lo a partir dos discursos do então presidente Aníbal Cavaco Silva, que procuram dotar Portugal de uma posição central, ao levar a "Europa ao encontro de outros povos", como disse o próprio [nas celebrações do Dia de Portugal, em 2007]. Portugal seria o fundador desse gesto europeu. Há uma reconfiguração da história nacional a partir da integração de Portugal na União Europeia.

É uma maneira de "refazer modos de dominação pós-colonial", como diz no livro, que Portugal não conseguiu fazer na prática? Ou está mais ligado a uma tentativa de reconfigurar a identidade nacional, uma que deixa de ser imperial à força?

As identidades nacionais são sempre discursos. Isso não significa que não existam, porque esses discursos produzem realidade. Produzem uma adesão emocional, ideologia e hegemonia. 

A história da construção do imaginário nacional e imperial não nasceu com o Estado Novo, precede-o. A ditadura procurou reforçá-la, com sucessos e insucessos, e foi ativamente construída. No pós-25 de Abril houve uma reconfiguração, sim, mas para outros propósitos.

Já não é uma ideologia que suporta um regime colonial, é um imaginário que sustenta outras funções políticas e sociais. Pensemos na "lusofonia", na manutenção da ideia de uma nação que teve colónias mas que não seria colonial. E no impacto que isso tem na negação do racismo, na ideia de um país aberto ao mundo onde a xenofobia não tem lugar, nas segregações invisíveis que nos devem obrigar a integrar a questão da raça nos debates sobre as questões de género e, sobretudo, de classe.

Há uma frase do Amílcar Cabral que é interessante recuperar para pensarmos que tipo de tarefas temos, enquanto cidadãos empenhados na luta pela igualdade, de levar a cabo. Para ascender socialmente, os indígenas africanos tinham de cumprir uma série de requisitos: viver "à europeia", cumprir o serviço militar, saber ler e escrever, pagar impostos. Cabral diz qualquer coisa como: "se a população portuguesa da metrópole tivesse de cumprir esses requisitos, mais de 50% não teria sequer o estatuto de assimilado ou civilizado". 

Por um lado, a clarividência de Cabral mostra-nos como a questão da raça teria de se articular com a questão da classe e, por outro, reforça a distinção entre o colonialismo português e o povo português. É uma nota que hoje nos ajuda a pensar como devemos e podemos construir maiorias sociais transformadoras. O combate antirracista deve articular-se com as lutas contra outras dimensões de segregação, opressão e dominação, como a de classe.

Refere que o estudo do colonialismo português é muitas vezes apelidado de "anti-patriótico". Como historiador, que tem a dizer sobre o seu trabalho ser visto dessa maneira?

A História não serve para alimentar os mitos da pátria; é uma reflexão, num dado presente, sobre o passado. Responde, naturalmente, às perguntas que nesse presente afloram sobre o passado e é feita com critérios e métodos. Não cabe ao historiador ou à historiadora ser dócil com os mitos do passado.

Sobre o colonialismo, temos uma mitologia em torno da boa colonização. Não é igual àquela de há 100 anos, mas sobreviveu. Quem diz que a História deve ser uma narrativa para a manutenção desses mitos não entende que o olhar do historiador é rigoroso e o seu dever é confrontar e interpelar o passado e o presente.

O esquecimento organizado de que fala coloca desafios a quem quer estudar o colonialismo português?

Sobre a guerra, surgiu há pouco tempo uma discussão sobre a desclassificação de documentos. É-nos dito que a maioria dos documentos está desclassificada. Se assim é, excelente. A questão deve ser colocada em termos da acessibilidade. Não interessa a sua desclassificação se chegamos aos arquivos e não sabemos que documentos existem. Deve haver um trabalho de inventariação, de catalogação e de classificação. 

Também é preciso ter em conta que esta história também é africana. Se formos mais atrás, é uma história brasileira e indiana. Importa que tenhamos políticas que tenham isso em conta. No âmbito do projeto CROME, contactei com muitos colegas africanos, com quem aprendi muito, e ouvi várias vezes a queixa de que não é simples fazer História a partir dos seus contextos, porque implica uma vinda a Portugal — partindo do princípio que chegados cá encontrariam nos arquivos aquilo que queriam.

Existem estruturas para essa articulação. A CPLP tem essa tarefa de aproximar Estados que tiveram essa relação colonial e que hoje devem ser "países irmãos". Deveria haver redes integradas de arquivos digitais, por exemplo. Esse caminho tem de ser feito, intensificando a acessibilidade aos arquivos.

Fora da história e da historiografia, o que deve ser feito, institucionalmente, para combater o "atrito da memória"?

Há muito a fazer. Em primeiro lugar, uma reflexão sobre a descolonização do espaço público. Ainda há dias ouvi a [vereadora municipal] Beatriz Gomes Dias dizer que discutimos Belém e os brasões, e muito bem, mas não discutimos que a praça onde eles estão se chama Praça do Império. Quantas praças do império há em Portugal? Quantas ruas dedicadas aos "heróis do ultramar"?

Carregamos muitos nomes, no nosso espaço público, que são uma prova concreta da manutenção da afasia colonial. Devemos pensar as práticas e as propostas de hoje — não estou a falar de coisas que aconteceram há um século — e debater que caminho devemos tomar para exprimir a nossa história colonial.

Depois, há outras tarefas que o Estado português terá de enfrentar. A restituição de artefatos e obras de arte é, naturalmente, um processo complexo. Mas é uma discussão que está a ser feita noutros contextos e que Portugal também terá de fazer.

Temos de perceber, também, como podemos reparar o nosso passado de desigualdades, tanto raciais como de classe. Isso leva-nos a problemas complexos, como a manutenção dos efeitos claros de uma sociedade racista, que empurrou para as periferias sobretudo pessoas negras, vítimas de um prolongamento evidente da nossa história colonial, o racismo. Isso deve levar-nos a tomar políticas afirmativas.

Há também que pensar no ensino dessa história para lá da questão dos manuais escolares. Perceber como a sociedade portuguesa ainda reproduz narrativas dominantes sobre esse passado colonial na comunicação social, na escola, nas caixas de comentários dos jornais.

Combater o feitiço imperial implica agirmos em múltiplas frentes. A censura da exposição de Pedro Pinto e de Dori Nigro é um exemplo acabado de como Portugal ainda não consegue lidar com estas questões. Aquela peça de arte fazia uma interpelação relevante: como é que a sociedade portuguesa lida com o enriquecimento à custa da escravização de pessoas? A sua censura mostra bem como ainda há muito caminho a percorrer.

*Miguel Cardina é historiador e coordenou o projeto CROME – Memórias cruzadas, políticas do silêncio: as guerras coloniais e de libertação em tempos pós-coloniais, entre 2017 e 2023

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