domingo, 1 de outubro de 2023

Angola | La Barba e as Estrelas Roubadas – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Vernon Sullivan escreveu obras que me acompanharam até ao dia em que um senhorio cruel me ficou com tudo, livros, discos e uma máquina de escrever portátil que já sabia escrever sozinha. Nesse período das rendas mensais a atrasadas meio ano lia todas as madrugadas “Vou cuspir nos Vossos Túmulos” e “Todos os Mortos têm a Mesma Pele”. Só chegámos ao escritor porque Boris Vian traduziu os seus monumentos do “amaricano” para francês.  

Luanda era sede, todos os anos no Cacimbo, de ferozes combates de luta livre “amaricana”. O Lobo da Costa era perito no golpe de tesoura. Quando ficou enferrujado tornou-se organizador. Montava no centro do campo de futebol dos Coqueiros um ringue, contratava uns lutadores corpulentos e era porrada de três em pipa. 

Nos anos 50 os combates eram só com a prata da casa. Mas a partir der 1962 Lobo da Costa contratava lutadores estrangeiros, como o traiçoeiro La Barba, Carlos Rocha, o rei das cabeçadas, e Tarzan Taborda campeão do mundo e arredores. No final dos anos 60 entravam os lutadores da casa: Taúta, o sofredor, El Índio, um alfaiate do Bairro Popular, Milano, cobrador da Casa Americana, Adriano e Ninito, reis do eixo São Paulo-Bairro Operário. 

Os bilhetes para os espectáculos eram caríssimos. Meu Mano Amado engendrou um esquema para entrarmos de borla. Eu trepava nos seus ombros e depois, à força dos braços, içava-me até passar o muro do estádio dos Coqueiros. Já lá dentro amarrava uma corda à cintura, atirava-a ao meu parceiro e ele subia a vida a pulso até escalar aquela muralha altíssima. Lobo da Costa tinha uns guardas façanhudos que nos punham ao longe. Não podíamos aproximar-nos do ringue, cercado de cadeiras. Mas dava para ver bem as cenas de pancadaria.

O meu Mano Amado era fã do Tarzan Taborda e ficava furioso quando o traiçoeiro La Barba lhe batia pelas costas. Um dia ele passou das marcas e deixou o campeão do mundo fora de combate. Nós sabíamos que o traidor ia ao Copacabana depois dos combates. É hoje que lhe vamos dar uma carga de porrada. Logo à noite estamos no Copa! E eu: Não te metas nisso. Eles são brancos, que se entendam. Mas estava escrito nas estrelas que nessa noite íamos ao cabaré vingar o KO infringido pelo La Barba no Tarzan Taborda.

Entrámos decididos, meu Mano Amado à frente. Numa mesa perto do balcão lá estava o La Barba, com uma menina da vida desprevenida de cada lado. Uma beijava-o e outra chegava-lhe o copo de uísque à boca. O fã do Tarzan Taborda avançou para a mesa do traiçoeiro e ele levantou-se, estendeu-lhe a mão e o meu irmão apertou-a calorosamente. Pensava que o agressor ia pedir-lhe um autógrafo! 

Aquilo acabou mal. Para não fazemos má figura fomos ao balcão e pedimos à patroa duas cervejas que custaram 20 vezes mais do que na esplanada do Majestic. O meu Mano Amado só me metia em negócios ruinosos. Saímos do Copa e montámos na minha velha mota Matchless, muito manienta. Se não pegava à terceira pedalada ficava afogada em gasolina e já não roncava. Naquela noite pegou à primeira e lá fomos em direcção â Casa Branca para depois rumarmos à Terra Nova. A meio do caminho tinha aberto o bordel de Dona Maria das Pressas, expulsa dos arredores da Mutamba em nome da moral pública.

A madrugada pingava dos cajueiros e o ar estava pegajoso. Chegados ao antro do vício e do pecado meu Mano Amado sacou a ngaeta de beiços e começou a tocar Marina Marina do Marino Marini. Passou para Nel Blu Dipinto Di Blu e fechou com Basta Un Poco Di Música. Sem se deter arrancou com A Casa de Irene do Nico Fidenco e rematou com O Homem que Não Sabia Amar. Eu acompanhava-o chocalhando dois sacos de açúcar para dar o ritimo. Mal acabou a entrada foi aplaudido pelos bêbados pecadores e pelas meninas da vida desprevenida, quase todas madeirenses, exportadas para Angola pelo Salazar.

Mano Amado, o Bafo D’Onça, inspiradíssimo tocou Carmencita e outros tangos envolvidos em ondas de amor desgraçado (o amor é sempre esquivo ou doloroso). Os aplausos subiram de tom. Meninas encomendavam-lhe a sua canção favorita. E ele tocava. Uma menina cantou o Pomba Branca do Max. A ngaeta e os saquinhos de açúcar acompanharam-na. As bebidas para os músicos eram por conta da casa. Amanhecia quando Dona Maria das Pressas nos despejou. O sol batia forte nos cajueiros. Montámos na Matchless e partimos. Devagarinho, para o álcool não subir ainda mais à cabeça.

Meu Mano Amado morreu sem nunca saber que aquele aperto de mão do La Barba foi a maior frustração da minha vida. Eu já estava de ladex pronto a atacar o traiçoeiro La Barba com uma cabeçada no bandulho, quando o meu parceiro lhe desferisse o primeiro borno. 

Hoje estiou mais frustrado do que naquela madrugada líquida. Nada bate certo. O nosso Lumumba morreu de doença. O nosso Mobutu não precisou dos matadores belgas às ordens dos EUA para tomar o poder. Está no Palácio com os nossos votos. O chefe Austin regressou a casa mas levou no bolso as estrelas do General Furtado. Porque as dele foram recompensa de invasões e assassinatos de milhões de civis inocentes. O nosso lutou pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial. Levou uma lista da sua criadagem em Angola. Logo a abrir está a Presidente da Casa da Democracia e a Presidente do Tribunal Constitucional. 

Para piorar tudo, hoje o Jaime Azulay cometeu um erro de palmatória. Diz que a Constituição da República não permite bases militares estrangeiras em Angola. Meu querido camarada, o estado terrorista mais perigoso do mundo não precisa de instalar basses em Angola. Serve-se das nossas! E se vai garantir a “segurança marítima” é evidente que os seus navios de guerra ficam nas nossas bases navais. As que existem ou as que seja necessário construir para receber submarinos atómicos.

O chefe Austin tratou Angola e os angolanos como o Djibouti. E ninguém o deixou a falar sozinho ou lhe atirou um tijolo aos cornos. Para quem não sabe, o país do qual tanto falou na sua “conferência” no Arquivo Histórico tem 600.000 habitantes (como Cacuaco) e grandes bases militares francesas e norte-americanas. Quando o seu avião entrou no nosso espaço aéreo vindo do Quénia, o general que tem às costas milhões de mortos civis inocentes comentou: Angola é mais alta do que o Djibiuti! Ninguém teve coragem para lhe dizer que o Povo Angolano derrotou os EUA mais os seus lacaios do Zaire e África do Sul. Digo eu. 

Estou frustrado. Muito frustrado. O Boas Fernando, herói do chefe Austin, perito em negócios de milho à americana, afinal só sabe que o cereal dá para fazer funje e fabricar rações de animais. Sei um nadinha mais que ele e não etudei nos EUA. Nas férias grandes a minha tarefa diária, antes de ir capinar, era pôr milho às galinhas. Eu pensava que o Fernando me ia ensinar a facturar biliões sem fazer a ponta de um corno!

Os noticiários da Rádio Nacional bateram no fundo da Tundavala. A Kieza Silvestre, na abertura do noticiário das 20 horas, com tiques de rainha de beleza começou assim: “Vai começar o desfile das notícias”. Credibilidade zero. Profissionalismo menos zero. Hoje estou frustrado mas muito caritativo. Informo o nosso Mobutu e os restos do MPLA que o ministério da Tutela só vos suga dinheiro. Os Media públicos só vos prejudicam. Entreguem-nos ao embaixador dos EUA em Luanda. 

Por falar nisso. Entre 1998 e 2014, por razões profissionais, acompanhava todas as noites o jornal das 20 da TPA. Que me lembre, só uma vez o embaixador da Federação Russa teve tempo de antena. O embaixador do estado terrorista mais perigoso dom mundo está todos os dias nas notícias! Quem paga? Juro que eu não sou.

Os Media do nosso Mobutu arranjaram “comentadores” e “especialistas” em relações internacionais que colocam a política externa de Angola nestes termos: A Rússia perde terreno em Angola e os EUA apostam em África. Comparar as relações de Angola com a União Soviética ou a Federação Russa com as que foram criadas pelo nosso Mobutu com os EUA é uma falta de respeito gravíssima para com os amigos.

Os EUA apoiaram o regime fascista e colonialista português enquanto ele durou. Portugal é um país da OTAN (ou NATOI) apesar da aliança militar ter nascido para “defender a democracia”. O regime de Lisboa era herdeiro de Hitler e Mussolini.

A União Soviética apoiou a Luta Armada de Libertação Nacional durante 13 anos. Os EUA apoiaram os colonialistas e seus aliados internos ou agentes mobutistas. A URSS/Federação Russa apoiou sem hesitações a Guerra pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial. 

Os EUA apoiaram as invasões e agressões de Mobutu e do regime racista de Pretória. Vetaram a entrada da República Popular de Angola na ONU. Votaram contra, quando a ONU exigiu aos racistas de Pretória que libertassem Nelson Mandela. Ajudaram os serviços secretos do apartheid a esconder 20.000 homens da UNITA fortemente armados nas bases secretas do Cuando Cubango, em Junho de 1991. Washington sabia, pelo Acordo de Bicesse, que Savimbi tinha de desarmar e acantonar os seus militares.

Os EUA fizeram tudo para que Angola continuasse a ser uma colónia ou um satélite da África do Sul. A URSS/Federação Russa fez tudo para o Povo Angolano se libertar. Sem o seu apoio hoje éramos um bantustão sul-africano. Sejam corruptos e traidores mas não insultem os amigos. Porque eles são o último reduto da nossa Liberdade, Honra e Dignidade.

* Jornalista

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