Artur Queiroz*, Luanda
A maquineta resfolegava e fazia um barulho de cortar a respiração, os vizinhos podiam ouvir. Chamavam-lhe Gestetner e imprimia folhas de papel até acabar uma resma que valia 500 panfletos. Batíamos à máquina o stencil com o texto exigindo a libertação dos presos políticos que foram levados para o Tarrafal, quase todos estudantes. A Silvinha, quando redigíamos a lista, dizia sempre: Não se esqueçam do Hermínio Escórcio! Porque estava há anos preso na Foz do Cunene, para ninguém mais se lembrar dele.
O Zé Andrade, cronista e especialista na Grande Música Negra, tinha um FIAT 600 desconjuntado. Pela calada da noite metíamos dezenas de panfletos no lugar do pneu de socorro e ali ficavam pela hora da distribuição, sempre de madrugada, depois de uma passagem bem bebida pelos antros nocturnos da cidade. Quando estávamos mais preguiçosos deixávamos ficar montinhos à porta das igrejas: Praia do Bispo, Sagrada Família e São Paulo. Sóbrios e cheios de guzu, entrávamos nos prédios adormecidos e metíamos o material nas caixas do correio. Era assim que fazíamos a revolução, entre a anarquia e o perfume da madrugada.
Por mim nunca esquecia de pôr na lista o Aristófanes Couto Cabral, filho de um homem ligado ao Desportivo de Ambaca, que punha os miúdos de Camabatela a jogar futebol e nos ensinava pacientemente a perceber o jogo. Era um mestiço imponente, com bigode à Clark Gable. Explorava as bombas de combustível da vila. Camabatela tão linda! Outro Couto Cabral era defesa central da equipa da Escola Comercial Vicente Ferreira e depois tornou-se bancário de alta categoria no Banco Comercial de Angola.
O Hermínio Escórcio migrou do Lobito e ficou logo Luandense. Foi dirigente do Atlético, o nosso amado “Escola”, que juntou homens da dimensão de Demóstenes de Almeida, Domingos Van-Dúnem (dramaturgo), Fernando Vieira Dias e tantos outros. Jogou futebol com o Luandino e outros atletas que são os nossos heróis.
O 25 de Abril de 1974 não chegou a Angola naquela leda madrugada que viu os militares do Movimento das Forças Armadas derrubarem o regime fascista e colonialista de Lisboa, sob o comando do Marechal Otelo Saraiva de Carvalho. Hermínio Escórcio só foi libertado do presídio na Foz do Cunene na segunda semana de Maio. Quando chegou a casa entrevistei-o para o programa Luanda 74, preciosa joia fabricada, segundo a segundo, pelo inigualável Zé Maria. Ele, Artur Neves e João Canedo eram o trio maravilha da sonoplastia. Construíram edifícios sonoros grandiosos. Elevaram a fabulosa Rádio Angolana aos píncaros das melhores do mundo!
Sentado ao lado da Delfina, sua
esposa, com a voz profunda e pausada anunciou que o MPLA ia imediatamente
organizar-se
Os três líderes convocaram os militantes e resolveram as makas assim: MPLA é Neto. Quem não estiver de acordo pode sair. Pacavira foi a Brazzaville prestar contas à direcção, Aristides arregaçou as mangas e foi dirigir o movimento sindical. Escórcio ficou no terreno a dirigir as células de militantes. Sem esses três Heróis Nacionais não tínhamos chegado ao 11 de Novembro de 1975. Emergiram como líderes no momento certo. Quando ser do MPLA não dava acomodações principescamente pagas nem fortunas escandalosas.
A assinatura do cessar-fogo na chana do Luinhameje (foi assim que o Herói Nacional Jaquim Kapango me ensinou a escrever o nome do local) entre a guerrilha do MPLA e as forças armadas portuguesas teve a presença de Hermínio Escórcio, Manuel Pedro Pacavira e Aristides Van-Dúnem. Entre os jornalistas que cobriram o acontecimento destaco Roberto de Almeida (poeta Jofre Rocha). Éramos 12 profissionais.
Ante a admiração geral, o nosso colega, de boina preta, quando acabou a cerimónia ficou à conversa, animadamente, com Agostinho Neto. Só eu sabia que Roberto de Almeida é primo do nosso Kilamba. Viveu em casa da Mamã Maria no Bairro Operário, quando era estudante do Liceu Salvador Correia. Camarada, a Luísa Rogério já te entregou a Carteira Profissional?
O MPLA em 1974 tinha toda a comunicação social contra. Jornais, revistas e estações de rádio faziam a propaganda dos independentistas brancos ou da UNITA, apresentada como “o movimento dos brancos”. Era verdade. Lutou contra a Independência Nacional nas fileiras dos Flechas da PIDE ou como reforço das unidades militares portuguesas. Hermínio Escórcio, António Cardoso, Manuel Rodrigues Vaz e Artur Queiroz colocaram a Emissora Oficial de Angola (RNA) ao serviço das forças que lutavam pela Independência Nacional. Com assinalável sucesso.
Anos mais tarde Hermínio Escórcio deu uma entrevista e quando recordou o dia 11 de Novembro de 1975 disse isto: “Minutos depois de termos proclamado a Independência, começavam a aterrar em Luanda aviões que estavam em Brazzaville e Ponta Negra. Traziam o apoio militar soviético.” Hermínio Escórcio não se esqueceu de referir o apoio militar que nos chegou às costas do Lloyd Austin. O nosso Mobutu é que já esqueceu quem nos ajudou.
Hermínio Escórcio, com o coração ferido e cansado de tanto sofrimento, vê hoje “um povo que tanto lutou para ser livre e ter um pedaço de pão à mesa, passar por tanta miséria farejando nos contentores à cata de migalhas para se sustentar”. Morreu hoje com a certeza de que a luta valeu a pena! Eu vivo com essa certeza. Triste e amargurado por termos perdido Hermínio Escórcio. A luta continua mas a vitória é certa? O nosso Mobutu garante que não.
* Jornalista
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