(No dia 18 de Maio de 2010
publiquei no Jornal de Angola uma reportagem sobre o rei Mandume. Faleceu, faz
hoje 107 anos. As notícias dizem que tombou
Artur Queiroz*, Luanda
Mandume ya Ndemufayo foi o último rei kuanyama e morreu a 6 de Fevereiro de 1917. Chegou ao poder em 1911 e o seu reinado durou apenas seis anos. O padre Keiling, que com ele conviveu, relata desta forma a sua morte: “E virando-se para os sobrinhos (primos) os filhos do falecido soba Weyulu, lhes perguntou se queriam ser moleques de brancos. Como eles dissessem que antes queriam morrer, o soba, levando a espingarda à cara, prostrou-os com dois tiros, e virando em seguida a arma contra si mesmo, fez saltar os miolos”.
À volta da figura de Mandume circulam lendas e histórias mais ou menos fantasiosas. A tradição oral costuma acrescentar sempre “um ponto” a cada conto. Os alemães, com quem Mandume conviveu e de quem foi fiel aliado, pouco ou nada relatam sobre a sua figura. Os militares portugueses, sim, fazem muitas referências ao rei do Cuanhama. Mas curiosamente não descrevem grandes batalhas travadas contra ele. Só referem acções de guerrilha e as chamadas “razias” aos criadores de gado.
Quase todos os oficiais portugueses que combateram no Sul, Sudoeste e Sudeste de Angola publicaram as suas memórias da guerra. E nenhum, salvo o major Artur de Moraes, que trocou correspondência com Mandume, descreve sequer contactos com o rei. A pesquisa que fizemos sobre a época através de relatórios militares e livros de memórias permitiu-nos obter importantes subsídios para melhor compreendermos o breve reinado de Mandume.
Em primeiro lugar interessa reter que ele chegou ao poder em 1911, alguns meses depois do triunfo da revolução republicana em Portugal, que pôs fim à monarquia. O distrito da Huíla, que abrangia o território das actuais províncias do Cuando Cubango, Namibe e Huíla, estava em guerra permanente.
Depois do triunfo da República, os oficiais portugueses no terreno tentaram resolver a guerra através de negociações de paz com os sobas da vasta região. Mas os oficiais monárquicos sabotaram, de todas as formas, essas iniciativas. Eles apenas tinham um objectivo: a ocupação pela força. Queriam medalhas, condecorações, promoções por distinção, lugares bem pagos no regresso a Lisboa como “heróis”.
Os militares do Quadro do Ultramar, tratados depreciativamente por “oficiais mandioca”, queriam a paz a todo o custo porque já tinham poucos laços com a “metrópole” e em Angola casaram e lhes nasceram os filhos.
A situação dos colonos era dramática. O major Artur de Moraes escreve no seu livro de memórias que estavam “dispersos pelo interior de Angola e por falta de recursos e de auxílio do Estado se acham na maior miséria”.
As guerras no Sul consumiam largas somas de dinheiro e centenas de vidas humanas. “Angola está desguarnecida e é sobretudo a fronteira do Sul que está mais ameaçada”, diz ainda aquele oficial que viveu os últimos anos da sua vida, já como civil, na cidade do Cuito, onde faleceu.
Estudos dos alemães
Nesta época, a fronteira de Angola era praticamente o rio Cunene e o último posto português estava situado no Humbe, então sede de concelho que foi chefiado, entre outros, pelo capitão Gomes da Costa, que mais tarde foi o líder do golpe fascista em Portugal do 28 de Maio de 1926. Morreu no posto de marechal. Outro administrador foi o capitão Artur de Moraes, republicano militante e que após o 5 de Outubro de 1910 ganhou algum protagonismo na região. Foi ele que assinou um tratado de paz e amizade com o rei do Grande Cuamato, Nande, em 22 de Fevereiro de 1909.
Na realidade era um “auto de vassalagem”. Mas as condições no Cuanhama eram péssimas, devido a uma estiagem prolongada à qual se seguiram dois anos seguidos de inundações. Artur Moraes fretou três carros bóeres puxados por dez juntas de bois, carregou-os de mantimentos, atravessou o Cunene e foi até a cidadela real de Nande a quem entregou os mantimentos. Na sequência deste gesto de boa vontade, o rei assinou o tratado.
Artur Moraes refere nas suas memórias que ficou provada a abertura de espírito dos cuanhamas e que era possível ocupar todo o território sem sacrifícios de vidas humanas. Ele escreveu que “é inadiável fazer-se a delimitação da fronteira Sul o que servirá de barreira à cobiça de estranhos”. Ele sabia do que estava a falar.
Umas das testemunhas da assinatura do tratado foi o missionário alemão, Aray Woolfhorst, que imediatamente informou o alto comando germânico no Sudoeste Africano (Namíbia). Os alemães iniciaram acções que pusessem em causa o tratado. Eles tinham um plano ambicioso de ocupação do Sul de Angola cujo núcleo principal ficava no triângulo entre o Cuanhama, Humbe e Cassinga (Jamba Mineira).
O governo alemão queria um porto
de mar no Sul de Angola e colocou três hipóteses: Baía dos Tigres, a apenas
Hoje são conhecidos pormenores do traçado da linha que acabou por não ser construída, dado que os alemães foram derrotados em 1915, um ano depois do início da I Guerra Mundial. A via-férrea passava ao longo do rio Cunene até aos rápidos de Sacavala, contornava o Morro de Capupito, seguia para Ediva, passava ao longo do rio dos Elefantes, atravessava o território dos mucubais seguindo a margem esquerda do rio Curoca e terminava na Baía dos Tigres (Namibe ou Tombwa).
Rendição dos Alemães
Norton de Matos, que foi governador-geral de Angola entre 1912 e 1914, conhecedor dos planos dos alemães criou postos militares apetrechados com estações radiotelegráficas em toda a região, desde a Foz do Cunene até ao Tombwa.
Os alemães viram o seu sonho esfumar-se quando em Julho de 1915 foram obrigados a assinar a rendição ao general Botha. A I Grande Guerra começara um ano antes e as tropas da Alemanha na África Austral pouco aguentaram. Mandume ficou privado dos seus aliados e ainda viu apertar-se a vigilância na fronteira, o que dificultou as suas acções de guerrilha, que ele lançava desde o Sudoeste Africano, onde se refugiara quando o general Pereira de Eça (o Pêra de Aço) ocupou Ngiva (Ondjiva).
Só nesta altura foi definida a fronteira Sul de Angola, praticamente com o traçado que hoje tem. Portugueses e ingleses criaram uma zona neutra compreendida entre o Paralelo Ruacaná-Cubango, proposto pelos portugueses para fronteira e o Paralelo Cazambue-Cubango que havia sido proposto pelos alemães.
A zona atravessava a região de Otchimporo, para onde os cuanhamas levavam o gado no tempo da estiagem, já que era abundante em água e pastos. Só no dia 1 de Julho de 1926 foi ultimado o acordo assinado na Conferência do Cabo entre delegados portugueses e sul-africanos sobre a fronteira que ficou fixada em linha artificial da catarata do Ruacaná ao encontro do rio Cubango.
Mandume ficou com os movimentos limitados e perdeu os fornecedores de armas e munições. Um ano antes da derrota do “Kaiser”, o último rei dos Cuanhamas pôs fim à vida. Mas ao contrário das lendas que ainda hoje circulam, ele castigou os portugueses com mortíferas acções de guerrilha e não em grandes batalhas com de homens de cada lado.
Essa glória cabe inteira ao rei do Cuamato Grande que infringiu às tropas portuguesas a sua maior derrota de sempre. Há quem atribua a Mandume a batalha de Pembe, mas é uma falsidade histórica. Quando aconteceu esse combate, Mandume era um menino e ainda nem sequer sonhava ser rei.
A Batalha de Pembe
Os portugueses tentavam desesperadamente ocupar os vastos territórios a Sul do rio Cunene, mas sucessivas colunas militares foram derrotadas e tiveram de recuar para o Humbe, a praça-forte das tropas de ocupação. O jovem conde de Almoster partiu para Angola à frente de uma unidade militar que depois de desembarcar em Luanda seguiu directamente para o teatro de operações.
O rei do Cuamato Grande destroçou
a sua coluna e o jovem conde morreu
Nada que se parecesse com o que aconteceu a seguir. Foi organizada nova coluna com a incumbência de submeter o Cuamato Grande e marchar para sul até Ondjiva. Esta coluna estava equipada com uma metralhadora pesada Hotchkiss que só atrapalhou. Também levava peças de artilharia 7 EBM (Bronze-Estriado-Montanha) que na hora do desastre matou muita gente com “fogo amigo”. O comandante era Pinto de Almeida, capitão de artilharia.
O vau do Pembe fica situado na margem esquerda do Cunene a dois quilómetros da confluência com o rio Caculovar. E dista do Humbe escassos oito quilómetros. Gomes da Costa e Artur de Moraes contam a batalha com grandes pormenores. Mais recentemente, Bento Duarte, que fez uma aturada investigação sobre as guerras do Sul de Angola, escreve que a batalha é “o quadro horrendo da formidável derrota dos portugueses, a maior e mais trágica que alguma vez lhe foi imposta na África Negra”.
A lista oficial das baixas é impressionante. Oficiais mortos: capitão médico Manuel João da Silveira, segundo tenente João Faria Roby Pereira (Armada); capitão Pinto de Almeida (comandante da coluna), alferes Joaquim Pinto Rodrigues (Artilharia); tenente Adolfo Ferreira, tenente Francisco Resende, tenente Freire Temudo, alferes Santos Nunes (Cavalaria); tenente Luz Rodrigues (Companhia Europeia); tenente José Maria Ferreira, alferes Manuel de Oliveira (Batalhão Disciplinar); alferes Albino Chalot, alferes Correia da Silva (VI Companhia Indígena); tenente Matias Nunes (XVI Companhia Indígena); tenente António Trindade (Administração Militar); alferes Pacheco de Leão, comandante dos “auxiliares indígenas”.
Na batalha do vau de Pembe morreram ainda 13 sargentos e 255 soldados. Ficaram todos insepultos e só dois anos mais tarde Artur de Paiva conseguiu resgatar as ossadas.
A guerra dos Bóeres
Lord Kitchner, em 1902, ao serviço da Grã-Bretanha, pôs fim às repúblicas holandesas independentes do Transval e do Estado Livre de Orange, na África do Sul. Muitos bóeres refugiaram-se em Angola e fixaram-se no distrito da Huíla. Mas enquanto durou “A Grande Jornada” eles tiveram retumbantes vitórias sobre os ingleses e já sonhavam com um grande país que abrangia toda a Namíbia e o Sul de Angola até ao rio Cunene.
A vitória inglesa ajudou os portugueses a fazer a ocupação do sul de Angola. Foi neste quadro que o rei Iulo, do Cuanhama, assinou um tratado de amizade com os portugueses. Mas tudo mudou quando Mandume subiu ao poder, sucedendo a seu tio. Os portugueses classificaram-no como “um jovem irrequieto e sanguinário”.
O Cuanhama ficou dividido em relação ao novo soberano. Os poderosos lengas Nekongo e Eválua abandonaram o Cuanhama e fixaram-se no Humbe, levando milhares de pessoas e os seus rebanhos. Os lengas Kalola e Chiconhengue, fiéis a Mandume, fazem razias nas mucundas dos nobres cuanhamas “exilados”. Olenga Kalola foi preso pelas tropas portuguesas quando atacava a mucunda de Kabongo, já depois de assinada a paz com o Pequeno e Grande Cuamato. Mais tarde foi preso Chiconhengue.
Nos primeiros meses do seu reinado, Mandume escreveu uma carta ao major Artur de Moraes, comandante militar e administrador do Humbe, onde diz que quer viver em paz e harmonia com todos os vizinhos e reprovando as acções de Chiconhengue e Kalola no Cuamato e no Humbe. O major Moraes aceitou a amizade oferecida por Mandume e através de um ofício deu-lhe uma garantia: “Pode estar descansado que o Chiconhengue e os outros cuanhamas presos no Cuamato não serão mortos, porque o Governo da República Portuguesa, não consentiria em tão grande barbaridade. Em Portugal não há pena de morte e fique certo que serão bem tratados”. Os republicanos queriam marcar a diferença com os monárquicos, que passavam “o gentio a fio de espada”.
Mandume não respondeu ao ofício de Artur Moraes e as suas acções de guerrilha prosseguiram, agora com forte apoio dos alemães, que lhe levavam a Namacunde 19 carros bóeres carregados de armas e munições. Alves Roçadas fundou um forte na margem esquerda do Cunene e Pereira de Eça avançou sobre Ondjiva. Milhares de cuanhamas fugiram para o Evale e para Cuambi, já no Sudoeste Africano. Mandumbe fez o mesmo trajecto.
A sua guerrilha era letal mas as tropas inimigas aos poucos ocuparam os seus domínios. Nem bóeres nem alemães, derrotados, lhe podiam valer. O rei sabia que estava perdido. Um ano antes do armistício que pôs fim à I Grande Guerra, assinado na floresta de Compiégne, em França, Mandume decidiu pôr fim à vida, na cidadela real de Namacunde. Faz hoje 107 anos.
Sim, Mandume combateu as forças portuguesas que queriam ocupar todo o território da base da serra da Chela até ao Sudoeste Africano (Namíbia), colónia da Alemanha. Era aliado dos colonialistas alemães. Combateu em defesa dos interesses dos ocupantes da Namíbia. Não combateu contra o colonialismo. Até porque uma parte do seu povo vivia na Namíbia e não apenas no território disputado pelos portugueses.
* Jornalista
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