domingo, 11 de fevereiro de 2024

Para abrir caminho aos neonazis a PSP decidiu agredir manifestantes antifascistas

PORTUGAL

João Biscaia* | Setenta e Quatro

Quase uma centena de manifestantes antifascistas decidiram espontaneamente bloquear o trajeto da manifestação xenófoba. Sem qualquer aviso ou ordem de desmobilização, agentes do corpo de intervenção avançaram batendo indiscriminadamente. Pelo menos dez pessoas ficaram feridas, das quais sete tiveram de receber assistência hospitalar.

O mais provável era que os clientes que jantavam no Corpo Santo Hotel, na rua do Arsenal em Lisboa, não estivessem a perceber nada do que viam acontecer. Olhavam com expressão inquisitória, do outro lado da janela alta e entre garfadas e sorvos de vinho caro, para a confusão que se instalara naquela rua, rescaldo do que parecia ter sido um arraial de pancadaria.

Olhavam e viam agentes do Corpo de Intervenção da PSP a marchar em fila na direção da Praça do Município, batendo com os cassetetes nos escudos como os espartanos fazem nos filmes de ficção. Uma mulher lamuriava aflita as suas dores nas pernas, carregada em braços por dois homens — um deles sangrava profusamente da cabeça, deixando um rasto de largas pingas escuras no chão.

Viam meia dúzia de pessoas estiradas pelo passeio a meter gelo nas mais diversas partes do corpo; trabalhadores alheios a tudo, e que haveriam de querer ir ao Terreiro do Paço apanhar transportes públicos para casa, que abanavam a cabeça por terem de ir dar a volta à beira-rio; uma quadrilha de jovens rapazes de calças de ganga clara e cabelo à Peaky Blinders a fugir da cena depois de denunciados, virando-se para trás para lançar uma tímida saudação nazi sieg heil com o braço direito estendido. Viam tudo isto e um interminável jogo de luzes azuis cintilantes vindas das carrinhas de polícia.

Nem meia hora antes, um pouco mais à frente, na Praça do Município, a polícia tinha carregado sobre um grupo de manifestantes antifascistas e antirracistas que queriam bloquear a passagem da manifestação xenófoba, organizada pelo neonazi Mário Machado, e que a essa hora passava em frente aos Armazéns do Chiado, dirigindo-se para a Praça do Município. 

A polícia carregou sem ter sido provocada e sem dar qualquer aviso ou ordem de desmobilização. Manifestantes, jornalistas e turistas que passavam foram agredidos. Três pessoas foram detidas e, segundo conseguimos apurar, pelo menos dez ficaram feridas, sete das quais tiveram de receber assistência hospitalar. Além de termos estado presentes, falámos com oito manifestantes feridos para termos uma melhor noção do que aconteceu.

A MANIFESTAÇÃO ORGANIZADA POR NEONAZIS

As sondagens apontam que a extrema-direita parlamentar poderá eleger um significativo grupo parlamentar nas próximas eleições legislativas, porventura forçando a direita tradicional a apoiar-se nela para governar. Vários cenários estão em cima da mesa, mas uma realidade inegável é como, desde 2019, o discurso de ódio se tem normalizado na política e sociedade portuguesas. A teoria é clara, aconteceu lá fora e está a acontecer cá dentro: quando um partido de extrema-direita fura na política nacional, os pequenos grupos, porventura violentos, ganham alento e começam-se a organizar e a mobilizar.

Foi precisamente o que vimos no sábado passado, 3 de fevereiro. O neonazi Mário Machado, várias vezes condenado por diversos crimes violentos e de ódio, reativou o coletivo de extrema-direita Grupo 1143, dos tempos em que era líder da Juventude Leonina, e convocou uma manifestação xenófoba para o Martim Moniz. A Câmara de Lisboa proibiu-a na sequência de um parecer negativo da PSP, que considerou que a manifestação acarretaria “elevados e efetivos riscos para a segurança, a ordem e tranquilidade públicas”.

Machado ainda tentou contestar a proibição na Justiça, argumentando com o direito à liberdade de manifestação e de expressão (discurso de ódio não é liberdade de expressão, atenção), mas o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa confirmou a proibição. A sua decisão não poderia ter sido mais clara sobre o que estava em causa: uma vez que muita da população daquela zona “professa, maioritariamente, a religião islâmica”, a manifestação poderia criar uma situação “propícia a extremar posições e a uma escalada de eventuais provocações e conflitos”.

Mas, antes de a proibição ter sido deliberada e tornada pública, não faltaram notícias sobre o receio e o medo da comunidade imigrante para com a marcha organizada por neonazis. Muitos imigrantes, alguns em Portugal há mais de 20 anos, garantiram que iam fechar as suas lojas no sábado. A Junta de Freguesia de Santa Maria Maior até recomendou aos seus residentes e comerciantes da Mouraria que ficassem em casa, numa inversão total de quem deve realmente ficar em casa.

Foi então que Machado anunciou um novo local para a manifestação “contra a islamização da Europa”: o Largo de Camões. Estava marcada para as 18 horas.

Sabendo que a população imigrante é das mais ostracizadas, exploradas e vulneráveis de Lisboa, várias organizações antirracistas e antifascistas juntaram-se em solidariedade com a comunidade e organizaram um arraial multirracial no Largo do Intendente para esse mesmo sábado. O evento repudiou o racismo, a islamofobia e a xenofobia.

O arraial, que começou às 16 horas, foi animado e colorido. Houve música à guitarra e cânticos antifascistas, palavras de ordem e de solidariedade, numa mobilização em defesa da multiculturalidade e da tolerância. Papéis colados às paredes diziam em português, inglês e bengali que “os únicos que não são bem-vindos aqui são os fascistas”. A mensagem foi clara: imigrantes, não estão sozinhos.

Ao mesmo tempo, dentro de um largo perímetro policial, os 100 manifestantes de extrema-direita, muitos deles com tatuagens neonazis, reuniam-se no Camões. Distribuíram tochas entre si, empunhavam faixas e Machado fez um breve discurso, o mesmo de sempre contra a imigração e alegando haver uma substituição populacional, o que é mentira – os imigrantes eram 7,5% da população em 2022. Rui Roque, ex-militante do Chega conhecido por ter defendido a remoção de ovários de mulheres numa convenção do partido, tomou a palavra e o discurso foi mais do mesmo, repleto de xenofobia e racismo. Depois, lá acenderam as tochas e se prepararam para marchar, com Machado a tentar mostrar ser muito respeitador da lei. Mas sabemos quem ele é verdadeiramente.

Preparados para sair do Largo de Camões, os manifestantes de extrema-direita esperaram pela ordem da PSP e Machado aproveitou o momento para dar um verdadeiro comício à comunicação social. Todas as câmaras, todos os microfones, estavam apontados para si, os jornalistas e fotojornalistas empurravam-se aqui e ali para se aproximarem dele mais um pouco. O neonazi condenado falou durante dez minutos e replicou o mesmo discurso de sempre, sem ser verdadeiramente confrontado com o ódio de regurgitava. Muitos dos presentes eram claramente membros de claques de futebol, nomeadamente do Porto, e estavam com a cara tapada. Notava-se que, se a tensão subisse, focos de violência poderiam estalar.

Mal começaram a marchar, acenderam os very-lights que expeliram fumo vermelho, começaram a cantar o hino português (fizeram-no repetidamente ao longo de todo o trajeto) e a dizer que Portugal era deles. Foi um elemento cénico claramente fascista e inspirado nas claques de futebol e na extrema-direita internacional. Estavam rodeados pela polícia, que empregou a mesma tática que usa com claques de futebol, mas havia extremistas fora da caixa de segurança, entre populares e sempre na lateral ou à frente do protesto, para poderem alertar os restantes para qualquer ação antifascista. À medida que avançavam, populares gritavam “fascismo nunca mais, 25 de abril sempre”, com os extremistas a responderem em grupo.

Foram descendo e descendo, muito devagar, com a polícia a tentar manter a formação de segurança em ruas apertadas e com prédios em obras. De tempos a tempos, viam-se focos de tensão entre populares antifascistas e os extremistas, com a polícia a ter de intervir para  manter a distância entre os dois lados. Um dos grandes focos de tensão aconteceu quando uma manifestante antifascista se pôs à frente do protesto com um cartaz em inglês a dizer algo do género: É por gajos como estes que o aborto é legal, com uma seta a apontar para os neonazis. Os extremistas responderam-lhe com ódio misógino: “Oh porca, vai tomar banho! E salta puta e salta puta!” – e nesse momento Machado enganou-se e começou a saltar. A manifestante não arredou pé.

A CARGA DA POLÍCIA CONTRA MANIFESTANTES ANTIFASCISTAS

Quando os extremistas de direita se concentravam no Largo de Camões, dois grupos de manifestantes do Arraial organizavam-se para lhes irem fazer frente. O objetivo era travar-lhes o percurso, sem se saber exatamente onde. Acabou por ser na Praça do Município, onde a manifestação xenófoba iria terminar.

Foi o caso de R.A.. O jovem veio das Caldas da Rainha para participar no arraial. Prefere que não citemos o seu nome por recear represálias, mas assegura que, ainda que se considere um antifascista, não pertence “a qualquer grupo organizado”. Estava no Intendente quando soube que a manifestação islamofóbica “marchava impunemente” pelo Chiado. Decidiu descer até à Praça do Município ao perceber que outras pessoas se preparavam para fazer o mesmo. 

“Entendi que seria algo pacífico, uma contramanifestação para demonstrar o nosso descontentamento”, portanto não esperava acabar como acabou: no hospital, com duas costelas partidas. Estava de costas, a fugir da confusão, quando sentiu uma bastonada forte, explica. Terá sido aí. Os médicos disseram-lhe que voltasse lá “daqui a um mês”, para ver se as fraturas sararam. As dores são insuportáveis, diz, mesmo sob o efeito dos vários analgésicos que lhe receitaram.

Quando os neonazis desciam a Rua Nova do Almada, já quase uma centena de manifestantes antifascistas se concentrava na Praça do Município. Um dos primeiros a chegar foi Frederico Carreiro, de 24 anos. Faltavam uns dez minutos para as 19 horas. Encontrou, no cruzamento do largo de São Julião com a rua do Comércio, um grupo de agentes da PSP que o ignoraram, até verem a multidão que se aproximava umas dezenas de metros atrás.

Nesse momento, diz, um agente pegou no rádio que tem ao ombro e pediu uma equipa de intervenção, com urgência. Outro ordenou-lhe que se juntasse ao grupo que, entretanto, parara naquele canto da praça, ordeiramente e em bloco, dando-lhe um aviso: “não te armes em espertinho ou ainda levas”, terá dito. A ideia, explicou o jovem, era impedir que neonazis marchassem por Lisboa “sem contraditório, como se fosse uma coisa normal e aceitável”. “Pensámos que havia legitimidade para o fazer, invocando o direito à desobediência civil pacífica”, explica.

Entretanto, e à margem do contraprotesto, jornalistas e outros curiosos misturavam-se com casais e famílias de turistas e residentes que paravam para assistir e filmar. Os manifestantes cantavam: “racistas, fascistas, chegou a vossa hora/os imigrantes ficam e vocês vão embora”. O corpo de intervenção “demorou pouco a chegar e chegou com toda a força”, afirma Sara Gaspar, de 30 anos e membro do Climáximo, coletivo de ativistas pela justiça climática que se distinguem pelos seus coletes fluorescentes de cor laranja. Estava já na fila da frente com companheiros do coletivo, “de braço dado, a formar uma linha”.

Ainda que os agentes sejam responsáveis pela manutenção da ordem pública e de garantir o respeito pela liberdade de manifestação (o novo local escolhido por Machado não foi contestado nem pela PSP nem pela Câmara de Lisboa), deve fazê-lo com justificada proporcionalidade, salvaguardando o equilíbrio entre a ordem pública e a integridade física das pessoas. A PSP disse ao Público ter usado “meios de baixa potencialidade letal”, justificando a intervenção com um “elevado perigo de perturbação da ordem pública” por causa de possíveis confrontos entre as duas ações de protesto. Mas não é isso que quem esteve no outro lado diz ter acontecido. A polícia usou brutalidade policial e assim o fez por, acredito, saber não haver câmaras de televisão nas proximidades.

Nem Sara, nem Frederico, nem qualquer dos jornalistas ou dos manifestantes ali presentes com quem falámos, ouviu qualquer ordem de desmobilização ou dispersão por parte da polícia, passo essencial para se garantir a proporcionalidade e integridade física das pessoas. Um cordão policial aproximou-se do grupo. Primeiro, começaram a empurrar. Depois, sem que qualquer coisa o fizesse prever, nem “qualquer tipo de provocação”, garante Sara, começaram as bastonadas.

A ativista não sabe quantas levou. Bateram-lhe sobretudo nas pernas, mas ainda está dorida no pulso e no ombro direito. Sofreu um derrame articular numa rótula, disseram-lhe no hospital de São José. Ficou dois dias em casa e hoje anda de muletas. “Eu não estava a fazer nada”, explica, garantindo ter sentido que lhe batiam “por raiva”, até porque ficou com a ideia que foi agredida por um só agente.

Frederico tem marcas de pancada pelo corpo todo. “Levei uma série de bastonadas nas costas, nos ombros e nas pernas. Levantei um braço para me proteger quando me tentaram bater na cabeça e, quando o agente se apercebeu disso, baixou o bastão e começou a espetar-mo no peito”, conta, levantando a camisola para mostrar meia dúzia de pisaduras enegrecidas em forma de moeda.

Na cabeça de um manifestante de 29 anos, que pediu para ser nomeado como V. A., dá para distinguir as marcas de três bastonadas. Uma delas abriu-lhe um lanho sobre a testa que exigiu quatro pontos. Na terça-feira, o lado direito da cara ainda estava inchado e num dos olhos vê-se uma mancha castanha de sangue. 

“Quando levei as bastonadas na cabeça não estava a oferecer resistência, nem a investir contra os agentes, nem a tentar de alguma forma interferir com as ações da polícia. Levei na cabeça porque estavam a bater como lhes apetecia.” Diz ter ouvido um agente admoestar aquele que lhe batia na cabeça com mais vigor: “pára com isso, Pereira”, terá dito o agente conciliador.

V. A. foi à Praça do Município “demonstrar descontentamento”, porque não se deve “compactuar passivamente com demonstrações fascistas e neonazis”. A ideia “não era provocar, nem arranjar confusão”. Aliás, nem pensou que pudesse chegar a haver “contacto direto com a polícia”. Achou que antes disso haveria uma ordem de desmobilização, ideia partilhada pelos outros manifestantes com quem falámos, mas ela nunca chegou. 

Em vez disso, viu vários polícias, “todos sem identificação”, carregar sobre os manifestantes, sem ter visto “qualquer provocação” que pudesse justificá-lo. O porta-voz da PSP disse ao Público que os agentes estavam identificados por “código alfanumérico visível no capacete distribuído individualmente”, mas não existe base legal para que sejam identificados dessa forma. É que, ainda que o Estatuto de Polícia preveja essa hipótese, o Ministério da Administração Interna nunca publicou a necessária portaria para o regulamentar. E Inspeção-Geral da Administração Interna já declarou que “inexiste qualquer razão para, envergando uniforme/farda, não existir modo de identificar em concreto cada um dos agentes que são suscetíveis de interagir com os cidadãos".

O jovem viu Sara levar várias pancadas nos joelhos e perder a força, que não se conseguia apoiar sobre as próprias pernas. Foi V. A. uma das pessoas que a carregou, mais tarde, para fora da Rua do Arsenal, enquanto o sangue que lhe caía da cabeça lhe turvava a visão.

Com a surpresa generalizada transformada em choque e medo, muita gente fugiu. O grosso do grupo, compacto e desnorteado, começou a mover-se lentamente às arrecuas, sem qualquer indicação sobre para onde deveriam ir. Não houve qualquer tipo de comunicação por parte dos agentes além de ordens vagas misturadas com insultos nos intervalos das bastonadas, como “é para sair, filhos da puta”.

O grupo foi-se movendo para o meio da praça, orientado a bastonadas e empurrões. Um dos manifestantes, caído no chão, ficou neste momento atrás do cordão policial e, sem mostrar intenções de se levantar ou de se mexer, levou duas bastonadas nas costas de um comandante da PSP. Enquanto o jornalista Bernardo Afonso, do Fumaça, tentava chegar à fala com o comandante da operação, sendo categoricamente ignorado por agentes sem qualquer identificação visível que o empurravam, alguns manifestantes, acossados, começaram a subir os degraus do pelourinho no centro da praça. 

O cordão policial foi estendido, diagonalmente, a toda a largura da praça. A esta altura já todos os curiosos se afastaram para os passeios pedonais da rua do Arsenal, enquanto outros transeuntes continuavam a ir e a vir, ignorando a confusão. Veículos continuavam a circular na estrada, que ainda não estava fechada ao trânsito – algo que demorou a acontecer.

Um dos comandantes deu ordem para os seus agentes avançarem e os manifestantes começaram a tropeçar uns sobre os outros nos degraus do pelourinho, enquanto os jornalistas do Setenta e Quatro e do Fumaça, devida e reiteradamente identificados, foram empurrados com brutidão ao tentar documentar os acontecimentos.

Um grupo de agentes subiu os degraus e varreu quem lá estava, avançando rapidamente uns metros e quebrando por momentos o cordão policial. Os agentes que ficaram para trás, ao nível do solo, começaram a desferir bastonadas indiscriminadas para ganhar terreno e voltar a ligar o cordão. Foi neste momento que recebi de um dos agentes um pontapé na perna direita. Ema Gonçalves, de 25 anos, levou uma bastonada na perna e, desnorteada, ficou presa no meio dos restantes manifestantes. “As pessoas começaram a ser empurradas em direção ao pelourinho, a subir as escadas de costas, e começaram a cair umas em cima das outras”, conta. “Ao tentar sair do pelourinho levei mais duas bastonadas na coxa”.

“Foi assustador”, desabafa, “havia polícias em todo o lado a bater em toda a gente que estava à minha volta”. Mais tarde, em choque, foi ao hospital por indicação de um bombeiro, para despistar uma possível fratura. No raio-x que fez não lhe encontraram nada partido, mas ainda caminha com dificuldade, lentamente e a mancar. “É difícil ver as marcas da arma de um agente da polícia na minha perna. É uma lembrança constante da violência. Uma impressão clara do que aconteceu.”

Novamente reunida a massa dos manifestantes e reposto o cordão policial, os ânimos recompuseram-se por uns segundos. Os agentes pressionaram novamente avançando com os escudos em riste, algumas bastonadas avulsas são repreendidas por um comandante operacional, e os manifestantes respondem com um cântico: “fascistas, racistas, não passarão”.

Junto à passadeira, um agente abordou dois homens que pela altura e cabelo loiro aparentavam ser turistas, e que pareciam estar a explicar que passariam para o outro lado da estrada assim que o semáforo ficasse verde. Foram violentamente empurrados para o meio da estrada por um dos agentes, enquanto passava um autocarro. 

Ao filmar isto, e com a carteira de jornalista na mão esquerda, fui manietado por um agente que me esmurrou na cara. Uma família de turistas, com dois bebés – um ao colo e o outro no carrinho –, foi apanhada na confusão. “Um agente à minha frente começou a brandir o cassetete, a fingir que nos ia bater”, disse-nos uma testemunha. “Vi o cassetete passar a centímetros do carrinho de bebé.”

No seguimento do soco, eu e os restantes fomos empurrados à força para junto dos manifestantes. Bernardo Afonso levou mais uma bastonada, o que deu o mote para mais agentes desferirem mais algumas sobre a multidão, empurrando para a estrada os poucos que ainda estavam na praça. Aí, a polícia começou a formar uma linha, fechando a rua no sentido do Terreiro do Paço, antes de cortar o trânsito, e empurrou a multidão contra a parede do Tribunal da Relação.

Houve mais uma carga. “O passeio não chegava para toda a gente, então começaram a empurrar e a bater, outra vez”, explica Marco Rodrigues, de 39 anos. Viu pessoas cair umas sobre as outras. “Caí e levei com bastonadas de dois ou três agentes enquanto estava no chão”, explica. “Quando me levanto, há um que me empurra e eu vou de encontro a um pilarete, com o peito. Achei que tinha partido uma costela.”

Afonso Queiró, 32 anos, assistiu a este momento, estava mesmo ao lado de Marco: “em vez de ajudarem a levantar continuaram a bater-lhe com bastonadas e pontapés”. Inclusive, conta, com pontapés na cabeça. Cruzando com os relatos de outros depoimentos que nos deram, Marco foi reiteradamente pontapeado na cabeça. “Fui empurrado e rasteirado, e atirado ao chão várias vezes”, conta Marco. “Não me consegui levantar porque não me deixavam levantar”.

Outros manifestantes, entre os quais Afonso – que nesta sequência levou uma bastonada no pulso que o levou ao hospital – protegeram-no com o próprio corpo e ajudaram-no a levantar-se. Enquanto tentava sair, andando na direção contrária à dos agentes, voltou a levar bastonadas nas costas: “não entendo; eu não estava a resistir, estava a tentar sair dali e só me batiam”.

Empurrados para a rua do Arsenal na direção do Cais do Sodré, os manifestantes ficaram então com edifícios de ambos os lados, e foi mais fácil ao Corpo de Intervenção cerrar o cordão. Alguns ativistas do Climáximo sentaram-se no chão, com os braços no ar, e exortaram os restantes manifestantes a fazer o mesmo. Alguns acederam, e sentaram-se também, entrecruzando os braços. Algumas das pessoas que estavam sentadas levaram com mais bastonadas, pontapés, patadas. R. A. diz ter levado com um golpe de escudo na cara, sentado. Duas pessoas foram arrebatadas para trás da linha policial e desapareceram. Foram levadas para carrinhas policiais, detidas. Várias pessoas confirmaram o uso de gás pimenta contra uma manifestante.

Toda a gente recuou um pouco mais. Os feridos foram acompanhados para a retaguarda, e cruzaram-se com uma dúzia de agentes que marchavam em fila, batendo ameaçadoramente com os cassetetes nos escudos, para reforçar o cordão policial. Houve um sobressalto. Os manifestantes achavam que estavam a ser cercados, mas não houve mais violência. Entretanto, a manifestação neonazi chegou à Praça do Município. A única evidência disso era uma bruma de fumo branco que se via de lá sair, produto de um very-light que acenderam ao entrarem na Praça com cânticos vitoriosos.

O grupo de manifestantes já havia recuado até à Travessa do Cotovelo e era admirado pelos turistas a jantar na larga esplanada da Loja das Conservas. Um grupo de jovens imberbes de aspeto desenquadrado, com calças de ganga clara, camisolas com a coroa de louros da Fred Perry, casacos da North Face, cabelo rapado ou bem penteado, meteu-se pelo meio da multidão.

No início, ninguém se apercebeu deles. Olharam para toda a gente com curiosidade. Pareciam contar cabeças. Alguém apontou: “aquilo são fachos?”. Sentindo-se descobertos, tentaram sair de fininho, com alguns antifascistas a gritar-lhes: “andor, caralho”. Apressando o passo, um deles, ironicamente o mais trigueiro e com umas belas e fartas sobrancelhas sul-europeias, virou-se para o grupo que o insultava, levantou o braço direito, esticado, e fez um sieg heil.

Sara, Marco, e V.A. foram para o hospital de São José. Mais tarde, foram também Ema, Afonso e mais um manifestante. Estes e outros manifestantes feridos estão a coordenar-se para apresentar queixa-conjunta e a PSP já abriu inquérito à atuação dos agentes.

Os manifestantes, numa assembleia espontânea, decidiram não dispersar sozinhos ou em pequenos grupos, e seguiram todos juntos, uns 50 que ainda sobravam, para o Intendente, onde se queimavam os últimos cartuchos do arraial. Nessa altura já a curta demonstração nazi na Praça do Município tinha terminado e os nazis dispersado. Ninguém queria arriscar cruzar-se com um grupo deles a caminho de casa, a pé ou nos transportes públicos.

Então, os antifascistas subiram em cortejo a Rua do Alecrim, cortando o trânsito ascendente até chegarem ao Chiado. Daí, desceram pela Rua Garrett, fazendo parte do percurso que os neonazis haviam feito nem duas horas antes. Já no Intendente, puderam descansar e lamber as feridas, antes de irem para casa ou para o hospital.

* João Biscaia - Formado em História Contemporânea.

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