terça-feira, 24 de setembro de 2024

Portugal | PSD e aborto: uma história de extremismo

Fernanda Câncio | Diário de Notícias, opinião

Quando noutros países - caso do Reino Unido, em 2022 - governos de centro-direita reforçam a autonomia das mulheres aprovando o “teleaborto” e alargando o prazo legal para as 14 ou mais semanas, por cá temos um PSD que, a respeito do direito das mulheres a decidir, pede meças à direita mais extrema da Europa.

“Abortos medicamentosos em casa passam de medida excecional a permanente em Inglaterra e Gales”. Este é o título de um comunicado do governo britânico datado de 23 de agosto de 2022. Mais abaixo lê-se: “Isto foi publicado durante o governo conservador de Johnson (2019/2022)”.

O comunicado refere-se ao facto de o executivo de Boris Johnson ter decidido transformar em procedimento normal a medida de exceção adotada em março de 2020, no início do confinamento pela pandemia Covid-19, que permitiu o aborto “precoce”, ou “early abortion” (o uso dos medicamentos abortivos é recomendado apenas nas primeiras semanas da gestação; quando esta é mais adiantada, procedimento deve ocorrer em ambiente hospitalar) em “telemedicina”, assim evitando que as mulheres tivessem de se deslocar a serviços de saúde.

“Esta nova legislação permite às mulheres aceder aos medicamentos abortivos por via de teleconsulta, e tomarem os dois medicamentos em casa quando a gravidez não ultrapassar as nove semanas e seis dias [10 semanas de gestação]”, anuncia o texto. Maggie Throup, a ministra da saúde de Johnson, é citada: “O bem-estar e a segurança das mulheres que querem aceder a este serviço é o mais importante. Com estas medidas, as mulheres terão mais escolha no acesso aos serviços de aborto, enquanto se continua a garantir a monitorização de forma a manter a sua segurança.”

A medida, que implicou uma alteração à lei de 1967 que legalizou a interrupção de gravidez no Reino Unido, permite que as mulheres possam receber pelo correio os comprimidos de mifepristone e misoprostol após terem acedido a uma “teleconsulta” (por telefone ou por via digital) com um profissional de saúde. Isto naturalmente significa que não existe um exame médico ou uma ecografia que, como é obrigatório em Portugal, certifique o tempo de gestação: é uma decisão que o profissional de saúde toma com base na conversa com a mulher.
Do mesmo modo, uma anterior norma da lei britânica (que foi copiada para a portuguesa, e por cá se mantém em vigor), segundo a qual tinha de haver intervenção de dois médicos - um para  verificar que a gestação estava dentro do prazo legal e outro para levar a cabo o procedimento - deixa também de fazer sentido: basta um profissional de saúde para fazer a consulta. E nem sequer, como adverte a British Medical Association (a Ordem dos Médicos britânica), tem de ser médico.

A BMA pugnou aliás por esta alteração legal, explicando porquê: “Um estudo sobre mais de 50 mil abortos antes e depois da medida excecional pandémica, publicado pelo British Journal of Obstetrics and Gynaecology, concluiu que o aborto por telemedicina é ‘eficaz, seguro, aceitável e melhora os cuidados de saúde’. Os dados demonstram que a espera média pelo procedimento passou de 10,7 dias no percurso tradicional [com ida a clínica ou hospital] para 6,5 dias na telemedicina, e a idade média gestacional no momento da interrupção também diminuiu, resultando em 40% dos abortos terem lugar às seis semanas ou menos - antes eram 25% - , e num aumento da eficácia, com 98,8% das interrupções a terem sucesso após a toma dos medicamentos.” Isto porque, advertia a BMA, “o aborto é um procedimento seguro e comum, mas quanto mais cedo ocorra melhor para a saúde e bem-estar das mulheres.”

Habituadas que estamos a uma Ordem que se centra no poder dos médicos (chegando ao ponto de, como no caso da objeção de consciência, inscrever no Estatuto Deontológico normas que contrariam a lei da República), quase parece estranho constatar que os médicos britânicos colocam o bem-estar e saúde das mulheres em primeiro lugar. Aliás, a BMA sublinha que as mulheres são perfeitamente capazes de saber de quantas semanas de gravidez estão (pelo que não é necessário serem examinadas), e que não é obrigatório que a teleconsulta seja com um médico; pode ser com um enfermeiro.

Mas não é da diferença entre a Ordem dos Médicos portuguesa e a britânica que quero falar, é da que se observa entre os políticos do chamado centro-direita português - mesmo se, na verdade, vários dos anteriores bastonários se assumiram como políticos dessa área, levando a concluir que o problema é o mesmo - e os seus congéneres da generalidade dos países europeus. 

Em causa está perceber o que leva o PSD a, com honrosas exceções como Rui Rio e Leonor Beleza (e, a dada altura, Passos Coelho, antes de nas eleições de 2015 aparecer de terço no bolso, transmutando-se no hiper-conservador que é hoje), se posicionar desde sempre contra a possibilidade de as mulheres poderem decidir se levam ou não avante uma gravidez. Aliás, ao longo de quase cinco décadas de democracia, o PSD esteve contra todos os avanços no que respeita a direitos sexuais e reprodutivos, de forma particularmente militante quando em causa esteve o direito das mulheres à autonomia. 

É como se em vez de um partido social-democrata fosse (é?) um partido confessional, católico fundamentalista. O que é tanto mais curioso quando o seu fundador, Sá Carneiro, afrontou serena e corajosamente o preconceito católico dos anos 1970 vivendo (e morrendo) com a mulher que amava quando era casado com outra.

Mas disperso-me: voltemos às leis do aborto. Na Europa, Portugal é o país com o prazo legal mais curto para a interrupção de gravidez por exclusiva vontade da mulher: 10 semanas. Sendo a média vigente 12 semanas, vários países têm vindo a alargar esse prazo e a eliminar o anacrónico “período de reflexão” que no caso português (copiando a legislação britânica de 1967) é de três dias. França e Espanha aumentaram o prazo para 14 semanas e eliminaram a “reflexão mandatória”, há muito considerada pela Organização Mundial de Saúde como um obstáculo no acesso à interrupção de gravidez segura. A Bélgica começou na semana passada a discutir essa alteração - eliminação da “reflexão” obrigatória e alargamento do prazo para as 14 semanas -, proposta por uma comissão de peritos.

E se a Espanha tem no governo o Partido Socialista, em França - onde o aborto foi legalizado, em 1974, por um governo de centro-direita - o governo que colocou este ano, com os votos de toda a esquerda, o direito ao aborto na Constituição era de centro-direita.  

Na maioria dos países europeus que têm leis de aborto com prazos maiores que a portuguesa - incluindo a alegadamente mui católica Irlanda, onde a interrupção de gravidez foi legalizada em 2018, por referendo - o centro-direita está ou esteve muitos anos no poder. Mas os únicos, além de Portugal, onde se procedeu a alterações legais de modo a dificultar o acesso ao aborto foram a Hungria de Orban (onde o aborto até às 12 semanas foi legalizado em 1953) e a Polónia dos irmãos Kaczynski, que decretou uma interdição quase total - ou seja, dois governos de extrema-direita.

É nessa excelsa companhia, a dos partidos extremistas de direita, que PSD e CDS se colocaram quando em 2015, no último dia da legislatura, alteraram a lei do aborto para retirar a proibição, que ali constava, de objetores de consciência conduzirem as consultas de interrupção de gravidez e para obrigarem as mulheres que queriam abortar a serem “assistidas” por psicólogos e assistentes sociais durante o “período de reflexão” (esta alteração foi revogada pela maioria de esquerda que resultou das eleições de 4 de outubro de 2015). Na campanha para as legislativas de 10 de março deste ano, Paulo Núncio, vice-presidente do CDS, congratulou-se com esse feito, gabando a coligação PSD-CDS por ter sido, em 2015, a primeira força política a criar dificuldades no acesso ao aborto legal.

E será nessa excelsa companhia - a dos partidos extremistas de direita, entre os quais se conta o Chega -, e contra a generalidade dos partidos daquele que dizem ser o seu grupo político (a social-democracia) que PSD e CDS se colocarão mais uma vez se, como parece certo, votarem contra a eliminação da obrigatoriedade dos três dias de “reflexão” e contra o alargamento para as 12 semanas do prazo da interrupção de gravidez por vontade exclusiva da mulher. 

Porque nesta matéria, a das mais fundamentais liberdades individuais - como se constata também no indecoroso comportamento do governo em relação à lei da eutanásia, que se recusa, em violação da Constituição e da ordem democrática, a regulamentar - PSD e CDS comportam-se como partidos extremistas iliberais, de vertente totalitária: querem decidir por nós o que fazemos da nossa vida e connosco, mandar nas nossas consciências e nas nossas mais íntimas e sagradas escolhas.

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