Artur Queiroz*, Luanda
Eduarda Rodrigues cumpria uma missão especial na espécie de combate à corrupção que foi bandeira do mandato presidencial de João Lourenço. Era ela que executava as “recuperações” e ditava as sentenças. Justiça pelas próprias mãos, com cobertura da Procuradoria-Geral da República. Os Tribunais eram apenas decoração. A separação de poderes foi selvaticamente destruída. A senhora exagerou e foi corrida do cargo. Os mandantes continuam impunes e a corromper o Estado Democrático e de Direito. Não há piores corruptos nem danos mais graves.
A demissão de Eduarda Rodrigues convoca-nos para o “voto de vencida” da Juíza de Direito Patrícia Carla de Araújo Pereira, que fazia parte do Colectivo que julgou o empresário Carlos São Vicente no Tribunal da Comarca de Luanda. A coragem e profissionalismo desta magistrada judicial salvaram a honra do convento.
O “voto de vencida” da Juíza de Direito Patrícia Carla de Araújo Pereira é antes de tudo, um guião. O documento serviu de guia ao Grupo de Trabalho da Prisão Arbitrária do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos na apreciação da sentença que condenou o empresário Carlos São Vicente. Julgamento ilegal. Prisão Arbitrária.
Depois o Tribunal Constitucional declarou ilegal o julgamento dos arguidos do “Processo dos 500 Milhões”, entre os quais José Filomeno dos Santos (Zenu), com base nos mesmos argumentos da Juíza Patrícia Carla de Araújo Pereira. Nem tudo está podre no edifício da Justiça. E quais foram os argumentos invocados no “voto de vencida”? Vamos recordar os mais importantes.
A Juíza de Direito Patrícia Carla de Araújo Pereira votou vencida e não assinou a sentença que condenou Carlos São Vicente “por considerar que a tramitação posterior à constituição do Tribunal Colectivo não se pautou integralmente dentro dos limites dos princípios norteadores do Direito Processual Penal”. Gravíssimo. Mas há pior. O Colectivo violou o Princípio do Contraditório.
No seu voto de vencida, a magistrada judicial lembra que o Princípio do Contraditório “tem uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio de igualdade de armas”. Num perspectiva processual isto significa que “não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido (Carlos São Vicente) sem que lhe seja dada a oportunidade de se pronunciar, no plano da igualdade de armas na administração das provas e significa principalmente que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, incluindo o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais”. Não aconteceu assim. Eduarda Rodrigues já tinha condenado Carlos São Vicente na cadeia de Viana.
Carlos São Vicente requereu a inquirição de duas testemunhas que considerou essenciais para a descoberta da verdade material, o antigo Presidente da República, José Eduardo dos Santos e o antigo Vice-presidente da República, Manuel Vicente. O requerimento foi deferido. As duas testemunhas, em conformidade com o Estatuto dos Antigos Presidentes da República de Angola podiam responder por escrito. A Juíza de Direito Patrícia Carla de Araújo Pereira afirma no seu voto de vencida que “até à data do encerramento da discussão da causa, não havia sido recebida qualquer resposta”.
Mas não houve resposta porque o Tribunal não quis. O Presidente José Eduardo dos Santos “regressou a Angola a 14 de Abril de 2021 e esteve em Luanda, na sua residência oficial, no Bairro do Miramar. E retornou a Barcelona no dia 7 de Março de 2022. Assim não se percebe a razão da falta de resposta ao ofício expedido pelo Tribunal”. Percebe sim, meritíssima! Eduarda Rodrigues já tinha julgado e condenado Carlos São Vicente na cadeia de Viana.
A testemunha Manuel Vicente foi viver no estrangeiro mas no seu voto de vencida, a Juíza de Direito Patrícia Carla de Araújo Pereira afirma que “o Tribunal não diligenciou suficientemente. Porque as duas testemunhas, pelas funções que desempenharam podiam e deviam ser localizáveis, incluindo com recurso a instituições específicas do Estado Angolano, mormente através do Ministério das Relações Exteriores e Embaixadas de representação, se necessário, quanto à testemunha que se encontra no exterior do país”.
A meritíssima magistrada judicial lembrou no seu voto de vencida que “o direito de obter a comparência das testemunhas de defesa é uma garantia judicial. O Tribunal deve sempre averiguar se a defesa prescindiu das mesmas e tem o dever de diligenciar pelo comparecimento das testemunhas de defesa não prescindidas (…) Os Tribunais são o órgão de soberania com competências de administrar a justiça em nome do Povo. Todas as entidades públicas e privadas têm o dever de cooperar com os Tribunais na execução das suas funções. Não aconteceu no presente caso (julgamento de Carlos São Vicente) face à ausência de resposta aos ofícios enviados por este Tribunal a instituições angolanas”.
Esta parte no voto de vencida é eloquente: ”O Tribunal não pode ficar inerte à espera da boa vontade das instituições que têm a obrigação constitucional de colaborar na descoberta da verdade material (…) Em vez de exigir o cumprimento deste dever, o Tribunal optou pela leitura do depoimento da testemunha Manuel Domingos Vicente prestado em instrução preparatória”.
Manuel Vicente nem sequer foi ouvido em videoconferência como pediu a defesa de Carlos São Vicente. Isto é muito grave porque a magistrada judicial diz no seu voto de vencida: “O Tribunal decidiu por uma substituição da prova testemunhal, em julgamento, por prova documental, o depoimento da testemunha obtida durante o inquérito”.
José Eduardo dos Santos e Manuel Vicente eram testemunhas chave. Não foram ouvidas porque os seus depoimentos iam contrariar a sentença proferida por Eduarda Rodrigues na cadeia de Viana. Tribunal na prisão. E a senhora da recuperação de activos juíza suprema!
A Juíza de Direito Patrícia Carla de Araújo Pereira diz no seu voto de vencida que “a substituição da prova testemunhal contraria os princípios de imediação e da oralidade, resultando em restrição intolerável do princípio do contraditório”. Mais grave do que isto é impossível. Ficou a valer a sentença de Eduarda Rodrigues quando condenou Caros São Vicente, no estabelecimento prisional de Viana. Justiça em nome do inquilino do Palácio da Cidade Alta.
Mais uma posição arrasadora: “O Tribunal não cuidou para que as testemunhas fossem efectivamente ouvidas ou para que fosse devidamente justificada a impossibilidade da sua audição, o que se impunha, substracto sem o qual, a valoração de prova está incompleta porque falta a prova que foi solicitada pela parte (Carlos São Vicente) e da qual a mesma não prescindiu”.
Mais grave ainda, caso isso seja possível. Para provar a sua inocência, Carlos São Vicente requereu que fossem ouvidas as entidades Instituto Nacional da Segurança Social, Banco Nacional de Angola, Ministério das Finanças, Bolsa (BODIVA) e as empreiteiras Soares da Costa e Teixeira Duarte.
O Tribuna encerrou a discussão da causa sem que Banco Nacional de Angola, Ministério das Finanças, BODIVA, Soares da Costa e Teixeira Duarte tivessem sido ouvidos ou respondido aos ofícios emitidos pelo Tribunal. A sentença condenatória já tinha sido proferida por Eduarda Rodrigues, aos gritos, no estabelecimento prisional de Viana, cara a cara com a vítima, Carlos São Vicente.
A Juíza de Direito Patrícia Carla de Araújo Pereira termina assim o seu voto de vencida: “Em processo penal interessa que o Tribunal forme livremente uma convicção sobre o acontecido, tendo em atenção a factualidade e, sempre, a exigência de garantir o direito do arguido, sendo estas as grandes linhas orientadoras da política criminal moderna que estiveram na base da aprovação do Código do Processo Penal (Lei 39/20 de 11 de Novembro).O fundamento na celeridade e economia processual não pode servir para a omissão das diligências, sob pena de admitir o resquício de uma política inquisitorial que está longe dos princípios que nortearam a elaboração e aprovação da actual lei processual penal, razão porque não se pode concordar com a prolação de uma sentença nestes termos”.
O julgamento de Carlos São Vicente nada tem a ver com o Processo de Kafka. Foi inspirado no Tribunal do Santo Ofício. O regresso aos tempos da Inquisição. A juíza suprema Eduarda Rodrigues acaba de ser demitida. E os outros inquisidores? Continuam a demolir e a corromper o Estado de Direito e Democrático. Impunemente. Haja quem tenha a coragem de combater estes corruptos
* Jornalista
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