Artur Queiroz*, Luanda
Aníbal Rocha entrou na escola primária número 78, no Negage, quando eu estava no último ano. O seu tio Quinito já tinha ido estudar para Luanda e deixou um grande vazio nos nossos trumunos rijos de futebol. O jogo mudava aos cinco e acabava aos dez. Os do cabelo que voa eram poucos. Nem dava para escolher, eram integrados na equipa dos mais toscos com carapinha. Quando quero apaziguar a tristeza leio o poema de António Jacinto “O Grande Desafio”. Uma peça só para saudosos e poetas fingindo que não há dor para lá da memória.
O meu antigo colega chegou a ministro. Lá do Negage ninguém foi tão longe. Na primeira visita oficial que fez à província do Uíje levou-me na sua comitiva. Aproveitei os seus compromissos oficiais para dar um salto à nossa aldeia, agora com estatuto de cidade. Corri para a Kapopa. A nossa casinha de adobe estava transformada num monte de barro. A vedação de aduelas desapareceu. Mas existiam dezenas de novas casas, tão humildes e precárias como a nossa. Lembrei-me da sentença do Mais Velho Tuma, o meu professor doutor particular: A casa vai atrás do dono!
Um dia destes mandaram-me a fotografia do palácio assobradado onde funcionou o Baleizão. Ruiu. Foi atrás do dono, o meu pai, meu irmão, meu compadre e meu amigo Tarique Aparício. Vieram-me à memória as suas palavras num dos últimos almoços que me ofereceu no Quintal da Tia Guida:
- Esses gajos que ficaram com o Hotel Continental querem comprar-me o prédio do Baleizão para deitarem abaixo e alargarem o que é deles. Não aceito. Por dinheiro nenhum. Não podemos permitir que as marcas de Luanda sejam demolidas.
O Tarique faleceu. Nesse dia publiquei esta crónica no Jornal de Angola:“Eu já vi Luanda ir ao fundo na baía e esvair-se em sangue nas ruas silenciosas da madrugada. Conheci a cidade indiferente às desgraças, aos crimes passionais, à dor da partida, à alegria da chegada. Mas já foi minha mãe, serviu de leito aos meus amores e acariciou-me com a sua brisa fresca, ao anoitecer, na tristeza e no desespero.
Luanda é uma construção magnífica de afectos e vivências únicas. Muda de pele e de luz, à medida que os anos passam. Mas é sempre vaidosa, elegante, tem a majestade das princesas do Congo. Mesmo quando a vi desventrada em 1963, depois de uma tempestade que a deixou inanimada. Ou agora, que mostra as suas feridas com a dignidade de quem sabe estar nos píncaros mas também sabe cair. Luanda desperta naqueles que a amam, uma ternura infinita.
Se algum dia for notícia é simples e directa. Luanda é a casa perpétua dos filhos de todas as cidades. E a mãe afectuosa dos pródigos. A notícia de hoje tem um parágrafo de mágoa. Morreu Tarique Aparício. O mais belo da cidade de Luanda morreu com ele. Morreu o Liceu Salvador Correia, onde ele estudou. Morreu O Sporingué que ele amou. Morreram todos os que ele ajudou.
O Tarique deu-me de comer quando eu tive fome. E de beber quando tive sede. Foi o padrinho do meu filho Nuno Kropotkine. Tratou-me como se fosse seu filho. Mas ao mesmo tempo deu-me uma amizade tão grande que nem todos os braços abertos do mundo conseguiriam abraçar. Era meu pai, meu compadre, meu irmão e meu amigo.
Sem ele, Luanda é outra cidade que agora vou ter de descobrir, nem que tenha de passar o resto da vida, madrugada após madrugada, olhando para as ruínas do velho Baleizão.
Com o Tarique morre uma Luanda de infinita amizade e cordialidade. Morre uma era de boémia, mas também de exaltação patriótica e amor à Mátria Angolana. O Tarique foi dos que ajudou a içar a Bandeira Nacional. E como sempre, nunca quis compensações pela sua imensa generosidade.
Tarique Aparício fez a ponte entre a Ilha do Cabo e a Baixa, o Baleizão e o mundo, os ricos e os pobres, os amantes e os tristes. A lei da vida libertou-o do pesado fardo de ser amigo de todos, estar ao lado dos que precisam, confortar os desesperados, dar esperança aos perdidos. Ninguém amou a vida como ele. Nunca virou a cara às dificuldades. Nunca se deixou dominar pelo ressentimento, mesmo quando foi vítima de tremendas injustiças.
Por um momento vou entrar no Baleizão, passar pelo corredor sombrio que acaba no seu gabinete. Entro sem pedir licença e estão lá a Ana Maria, a Alexandra e a Maria José. Pequeninas, alegres, educadíssimas. Beijo as três, abraço o Tarique e saio a chorar.
Luanda está a derramar tristezas sobre a baía. Há uma noite com luar de prata trajando luto. Luanda também sabe chorar pelos seus filhos.”
A casa partiu como o seu dono. Agora já podem ampliar o Hotel Continental. O dinheiro não morre mas mata à toa. Luanda está morrendo. Vai atrás dos seus amados filhos. Os sucessivos governadores só sabem construir o caixão da velhíssima cidade de São Paulo da Assunção de Loanda. E a mais não são obrigados. Os luandenses, esses limitam-se a varrer as cinzas. A caminho dos 50 anos da Independência Nacional, nenhum Homem, nenhum Nunes pôs de pé um programa para a preservação do Centro Histórico de uma cidade que vai a caminho dos 500 anos.
Qualquer dia nem fica o meu livro “Luanda Arquivo Histórico”. Os sicários da UNITA vão queimar os livros todos nas fogueiras da Jamba transferidas para a capital de Angola. Não pensem que estou pessimista. Hoje deu-me um ataque de realismo.
* Jornalista
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