Artur Queiroz*, Luanda
Janeiro de há 50 anos entrou na História de Angola. No dia 5 de Janeiro de 1975, os três movimentos de libertação reconhecidos pela OUA (hoje União Africana) e a potência colonial, Portugal, iniciaram a Cimeira de Mombaça, sob os bons ofícios do Presidente Jomo Kenyatta. O objectivo era conseguirem uma posição comum para depois negociarem a Independência Nacional com as autoridades de Lisboa. Leiam o que escrevi há meio século:
“Os patrões da comunicação social angolana boicotaram este importante acontecimento. De Luanda só veio a Mombaça Manuel Ricardo do jornal ‘A Província de Angola’ e um repórter fotográfico amador, o Coutinho, que é controlador aéreo no aeroporto de Luanda. Vou informando Angola pela antena da Emissora Oficial. Mas tenho de descobrir por que razão há este boicote”.
Dois dias depois de iniciados os trabalhos na “State House” de Mombaça, mesmo ao lado da fortaleza construída pelos portugueses no século XVI, desvendei o mistério. Sorte do repórter. Uma prostituta delicada que frequentava o bar do hotel onde estava alojado, entre uma e outra bebida disse-me que as delegações angolanas, de manhã, reuniam na Sate House e à tarde numa sala na cave de um hotel luxuoso da ilha de Mombaça. Era lá que estava instalada a delegação da FNLA.
Ninguém nos deu essa informação. Para a Imprensa nacional e internacional os trabalhos decorriam exclusivamente na State House. Fui atrás dos factos. As delegações da FNLA e da UNITA, durante as tardes, reuniam secretamente para combinarem posições comuns que na manhã seguinte apresentavam ao MPLA. Fiz-me burro e algum tempo depois de começar a reunião da tarde, entrei na sala. Surpresa! Fui logo corrido e razoavelmente insultado. Desculpei-me: Pensava que era uma conferência de imprensa. Depois dei a notícia para Angola. Ninguém mandou jornalistas porque não convinha nada descobrir o que eu descobri.
Nixon, Spínola e Mobutu decidiram nas cimeiras da Base das Lajes (Açores) e na Ilha do Sal (Cabo Verde) afastar o MPLA do processo de descolonização. Muito antes dos acordos de Mombaça e do Alvor. Removido o obstáculo que era o único movimento que no 25 de Abril de 1974 ainda tinha grupos guerrilheiros a combater, o Norte de Angola era entregue a Mobutu e Holden Roberto. O território a Sul do Cuanza ficava para a África do Sul e Jonas Savimbi.O Presidente Spínola foi demitido na sequência do golpe de estado em 28 de Setembro de 1974. O Movimento das Forças Armadas (MFA) partiu do princípio que a partilha de Angola e o afastamento do MPLA já não era possível. Uma temeridade porque a Casa dos Brancos já tinha enviado para Lisboa, como embaixador, o chefão da CIA Frank Carlucci que imediatamente fez uma parceria com Mário Soares, o pai da democracia à portuguesa.
O Almirante Rosa Coutinho,
presidente da Junta Governativa de Angola, em Setembro e Outubro de 1974
desmantelou todas as estruturas dos independentistas brancos e expulsou os seus
líderes para Portugal. Os majores Pezarat Correia e José Emílio da Silva eram
os coordenadores do MFA
Auxiliado pelos meus colegas do Le Monde, France Press e o correspondente do The Guardian em Nairobi (John Borrell) consegui sair ileso do Quénia e desembarquei em Lisboa no dia 9 de Janeiro, 1975. O jornalista Silva Costa não me deixou ir para o Alvor nos transportes públicos. Um motorista do Diário de Notícias, jornal do qual eu era correspondente em Luanda, levou-me ao destino onde já estavam Francisco Simons, Horácio da Fonseca e o técnico Humberto Jorge. Iniciámos imediatamente a montagem de um estúdio no quarto do Humberto, com uma linha telefónica internacional exclusiva. No dia 10 de Janeiro de 1975 começou a cimeira entre a potência colonial (Portugal) e delegações dos três movimentos de Libertação.
A delegação do MPLA era a mesma de Mombaça, reforçada com os juristas Diógenes Boavida e Maria do Carmo Medina. Mais o jornalista da Emissora Oficial (RNA) Rui de Carvalho. Ele passava-nos todas as informações relevantes.
A emissão da Rádio tinha o seu centro no Alvor. Convidei o jornalista Aquino de Bragança para comentários nos jornais das 13 e 20 horas. Mais um nos intercalares da noite. Nos dois primeiros dias, Sebastião Coelho fazia um comentário no jornal das 20 horas tipo Café da Noite. Entrevistámos o Presidente Costa Gomes, Agostinho Neto, e Jonas Savimbi. Holden Roberto aceitou ser entrevistado mas não compareceu. Foi substituído por Hendrick Vaal Neto.
FNLA e UNITA propuseram o general Silva Cardoso para alto-comissário durante a transição. A parte portuguesa tinha outra solução. Mas para não criar obstáculos, o MPLA aceitou a proposta dos outros dois movimentos. FNLA e UNITA propuseram o dia 11 de Novembro de 1975 para a data da Independência Nacional. O MPLA aceitou. A parte portuguesa alertou que o calendário era apertado. Em 11 meses era difícil fazer o registo eleitoral, organizar as eleições, instalar o parlamento e criar as forças mistas. FNLA e UNITA insistiram. Aprovado.
O General Pezarat Correia conhece todos estes factos. Como foi ele que esteve no cessar-fogo da UNITA em Junho de 1974, com o chefe da Polícia de Informações Militares (PIM), Coronel Passos Ramos, também sabe que a UNITA não tinha tropa. Entre 1968 e 1972 quase todos os militares do Galo Negro passaram para os FLECHAS da PIDE. Ficaram os “guardas” de Jonas Savimbi e pouco mais. Pezarat Correia sabe que os jovens angolanos que cumpriam serviço militar obrigatório nas fileiras portuguesas, em Junho de 1974 passaram-se em massa para o MPLA. Em 1 de Agosto de 1974 quase todos ingressaram nas Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA).
O General Pezarat Correia sabe que no momento em que foi assinado o Acordo de Alvor, a 15 de Janeiro de 1975, faz hoje 50 anos, o único movimento de libertação que tinha capacidade de enviar 8.000 homens para as tropas mistas era o MPLA. Pezarat Corzreia sabe que em Maio de 1974 uma unidade de paraquedistas fez dezenas de prisioneiros da FNLA na fronteira Norte. Eram jovens armados que, soubemos depois, foram capturados em Kinshasa e levados à força para o Exército de Libertação Nacional (ELNA), braço armado da FNLA. Holden Roberto não tinha tropa. Nem 800 homens quanto mais 8.000.
Sabendo tudo isto, é estranho que o General Pezarat Correia venha agora dizer que “os três movimentos agiram de má-fé” e não apresentaram as suas tropas para as forças mistas. O MPLA apresentou. Mas como FNLA e UNITA não apresentaram, nada feito.
O General Pezarat Correia sabe que os seus camaradas que comandavam as tropas portuguesas no Norte de Angola, entre os quais o General Altino de Magalhães, recuaram para Luanda e entregaram as suas posições às tropas invasoras de Mobutu. O general Silva Cardoso entregou a base aérea do Negage. Pezarat Correia sabe que as tropas sul-africanas tinham à sua disposição a base do Cuito Cuanavale.
Só, senhor General? Sabe tão bem como eu que as forças aéreas da África do Sul e da Rodésia (Zimbabwe) usavam em Angola os aeródromos de Luiana, Cangamba, Cazombo, Lumbala Nguimbo (Gago Coutinho) e até de Saurimo (Henrique de Carvalho). Era tudo deles. A partir de 1969 todas as operações de tropas especiais portuguesas (comandos e paraquedistas) no Leste de Angola tinham o apoio das forças aéreas de Salisbúria (Harare) e Pretória.
Também sabe que as tropas sul-africanas invadiram Angola aproveitando o vazio de poder entre a saída do Almirante Rosa Coutinho e a tomada de posse do Governo de Transição, em 31 de Janeiro de 1975. Esta parte pode não saber porque também saiu de Angola nessa altura.
Ninguém de boa-fé pode analisar o processo de transição ignorando a cimeira de Spínola com Nixon na Base das Lajes (19 de Junho, 1974) e depois a cimeira de Spínola com Mobutu na Ilha do Sal, Cabo Verde (14 de Setembro, 1974). Muitos meses antes do Acordo de Alvor! Ninguém pode analisar o processo de transição ignorando que nessas reuniões de alto nível ficou decidido afastar o MPLA do processo de descolonização. Muito menos se pode ignorar que o encontro de Mobutu com Spínola na Ilha do Sal aconteceu apenas 14 dias antes do golpe do 28 de Setembro em Lisboa, que tinha ramificações em Angola e Moçambique. Rosa Coutinho expulsou os golpistas e a “partilha” de Angola por Kinshasa e Pretória ficou adiada.
E quanto à “guerra-fria” o General Pezarat Correia, sendo um estudioso da matéria, deve saber que a União Soviética não via Agostinho Neto com bons olhos. O líder do MPLA era um defensor acérrimo do Movimento dos Não Alinhados. A “revolta” de Daniel Chipenda tem a ver com esta realidade. O golpe militar do 27 de Maio der 1977 ainda mais. Houve mesmo uma interferência directa no golpe de oficiais soviéticos ligados à embaixada de Luanda.
Aceitem de um a vez por todas que o MPLA não participou na tal guerra fria. Antes de Cuba ajudar os angolanos a enfrentarem os invasores estrangeiros, já o tinham feito o PAIGC a FRELIMO, Argélia e sobretudo a Jugoslávia. E em cima da Independência Nacional, também a Nigéria ajudou. Esqueçam a treta da guerra fria. E respeitem os nacionalistas angolanos que lutaram pelo Libertação do Povo Angolano. Pela soberania nacional e a integridade territorial. Nunca receberam ordens quentes ou frias.
O apoio à libertação da Namíbia juntou países do Ocidente e do Leste. De todos os continentes. O Ocidente não apoiou Angola na luta contra os invasores do regime racista de Pretória. Não ajudou Angola a defender-se do ditador Mobutu. A Casa dos Brancos, Bruxelas, Lisboa, Londres ou Berlim lá sabem porquê. Mas a desculpa da “guerra fria” dá muito jeito.
Má-fé do MPLA? Foi a única parte que cumpriu o Acordo de Alvor até ao fim! Meter no mesmo saco quem abandonou o Governo de Transição e quem ficou até ao fim é pouco sério. E ingratidão. Porque o MPLA defendeu a integridade de Angola, tarefa que competia a Portugal.
* Jornalista
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