terça-feira, 10 de maio de 2011

EPISÓDIO EM ABRIL




BAPTISTA BASTOS – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião

Atribuir a todos nós as culpas da degenerescência da democracia não é, apenas, um disparate: é uma desonestidade intelectual. Todos nós? Sinto instintiva repugnância por quem defende essa tese absurda. Habitualmente, parte daqueles que, de uma forma ou de outra, participaram na redução ou na eliminação da nossa capacidade de agir. De que modo? Obnubilando a nossa aptidão para a reflexão e a análise, através de manipulações várias, em que a imprensa não é a menor responsável. A Igreja, aliás, não está imune a esta mistificação, cada vez mais difícil de hierarquizar.

A terrível tristeza do irreparável, com que pretendem incriminar o 25 de Abril, encontra, afinal, comovente resposta nas comemorações do dia. Muitos milhares de pessoas, e não só aquelas que eram novas e hoje são velhas ou que para lá caminham, mas pessoal novo em grande número, manifestaram-se como que para readquirir a força do sonho e o poder do protesto. Há, aliás, uma tomada de consciência, uma tentativa de compreensão deste tempo, que caracterizam largos sectores da geração mais jovem.

Os valores da solidariedade podem ter uma face subjectiva; porém, as condições históricas geram fraternidades e concordâncias, por vezes inauditas. O PREC criou conflitos de valores inultrapassáveis e adesões surpreendentes. Apontado como causador de todas as nossas misérias, passadas e presentes, qualificava, segundo hábil e inquietante intriga, uma monstruosa conspiração comunista. Ainda há dias, uma das televisões exibiu parte de um discurso de Freitas do Amaral, então presidente do CDS, no qual dizia ser a extinção das classes um dos fins a atingir pelo seu partido. Com uma excepção, todas as organizações partidárias expunham, nos programas, o socialismo como objectivo.

Há quem pretenda reduzir a democracia ao mero formulário do voto. Eis um dos modos de limitar a cidadania, sob uma a máscara de "democraticidade". A melancólica rotina da "alternância" não só impôs uma espécie de "lei do mais forte" como acentuou as desarmonias sociais. Todavia, nada é definitivo e inamovível. O cansaço da sociedade não é, exclusivamente, um factor de descoberta política; mas gera, inevitavelmente, a totalidade das avaliações. A imponente manifestação de segunda-feira, com largas faixas de juventude, é, obviamente, um fenómeno de revolta, nascido do protesto e do entusiasmo. Como ensinou Camus, a revolta conduz, mais tarde ou mais cedo, a situações revolucionárias, produzidas pela impossibilidade que os povos encontram em se libertar da rigidez partidária. Tal como os partidos a inculcam.

Os políticos em cena não me parecem capazes de dar a volta à armadilha. Falta-lhes coragem, tenacidade, conhecimentos, razão - e espírito de Abril.

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