terça-feira, 28 de junho de 2011

Angola: OS NOSSOS POLÍCIAS NÃO SABEM DAR TIROS




JOSÉ KALIENGUE – O PAÍS (Angola)

Os polícias angolanos não praticam regularmente o tiro. Este facto foi relatado por vários agentes e oficiais a O PAÍS. As razões apontadas distribuem-se pela falta de locais para o fazer, falta de planificação da prática de tiro fora dos períodos de instrução, que se traduz, em síntese, na falta de uma política correcta da prática de tiro, como componente fundamental para a actividade policial, no sentido de evitar que o seu recurso provoque mais danos do que os necessários. 

Não há carreiras de tiro nas unidades policiais, nem em Luanda nem nas outras províncias. No Kapolo (escola de formação da polícia) o tiro é praticado ao ar livre. “Com excepção da PIR, que tem instrução permanente e excelentes atiradores” disse um oficial, “a maior parte dos polícias só faz tiro aquando da formação e existem polícias que estão há mais de 20 anos sem ter instrução de tiro e manuseamento de armas de fogo”. Mas a realidade torna-se mais grave quando, para confirmar esta afirmação, um outro oficial confidenciou-nos que “mesmo quando se introduz uma nova arma na Polícia não se desenvolve um processo sério de formação para a sua adaptação”. 

Por outro lado, um instrutor policial disse que “o tiro deve ser praticado permanentemente. Devem ser criadas condições para que os efectivos pratiquem tiro como actividade fundamental para o seu desempenho profissional. Portanto, o excelente seria diariamente, mas já seria muito satisfatório se fosse ao menos uma vez por semana. Quem fala de salas de tiro, fala de ginásios para a condição física, fala de outros exercícios que permitam actualizar permanentemente o agente em relação à actividade de segurança pública”. 

Mortes como consequência 

As consequências mais flagrantes, e mais graves, da falta da prática regular de tiro são os vários casos de mortes causadas por polícias no exercício das suas funções. A prática regular de tiro apura a técnica e ajuda a habilitar o agente a usar correctamente a arma de fogo, não apenas do ponto de vista da execução, mas também do ponto de vista da racionalidade do seu uso. 

“Por exemplo”, avançou uma das nossas fontes, “não existe nenhum regulamento sobre o uso de armas de fogo na polícia nacional, que define as condições e as circunstâncias em que se pode, e em que medida, fazer recurso a arma de fogo, definindo procedimentos a adoptar nas diversas situações. Os efectivos usam a arma em qualquer situação, até para pedir documentos, e, porque não têm perícia no seu manuseio, acabam, algumas vezes, como já aconteceu, por ceifar vidas inocentes”.  Para a pergunta se na escola os agentes aprendem a atirar em situações de tensão na rua para atingir apenas o suspeito e não tudo o que estiver ao redor, a resposta veio da seguinte forma: “Se calhar mais grave do que a falta da prática regular de tiro é a actual formação de tiro. Para começar, é uma coisa muito incipiente e, basicamente, os formandos aprendem a desmontar e montar uma arma e a disparar em tiro a tiro e rajada. A questão da pontaria é completamente descurada”.Porquê? “Porque o Kapolo, onde se formam os polícias, não tem uma carreira de tiro digna desse nome. O tiro é feito em montes de areia, onde se colocam latas de cerveja ou outra coisa qualquer para servir de alvo”. Hoje, no entanto, sabe-se que isso não é correcto em termos de formação. Nos dias de hoje, como se vê nos filmes, os alvos policiais devem ter a forma da pessoa humana e os agentes são formados, e formatados, a atingir as partes menos vitais, e só a disparar contra as partes vitais em caso de absoluta necessidade. “O que se passa no nosso caso é que os agentes aprendem apenas a disparar atingindo um corpo, sem querer saber se o atinge na cabeça, na perna, no olho ou nas nádegas”, adiantou o mesmo instrutor.

Por outro lado, há um outro pormenor a juntar a tudo o que foi descrito, a arma de instrução no Kapolo é, sobretudo, a AKM, portanto, uma arma de guerra, que é também a arma de trabalho do pessoal de patrulha, aquele que lida com o cidadão no dia-a-dia. Levantada esta questão, um oficial de uma das divisões de Luanda disse estarem aí os ingredientes para a “matança” que temos a assistido. “Raramente se usa uma AKM para apenas neutralizar. Juntos, uma prática de tiro incipiente, com o uso de armas de guerra na instrução e no exercício da actividade, explicam muitos dos casos de «erros» policiais que vimos assistindo”.

Zungueiras foram vítimas 

Mortes acidentais como o caso de Dezembro de 2007, em que uma vendedora ambulante foi alvejada mortalmente por um agente da polícia no mercado das pedrinhas, pode ter sido resultado da má formação dos agentes e da má qualidade de tiro. Tanto que um dos oficiais que vimos citando refere-se àquele caso como podendo ter resultado de dois aspectos. Por um lado fala da falta de outros meios não letais para o exercício da actividade de patrulha, como bastões, pistolas de choques eléctricos, entre outros. Até porque, diz, “Naquelas situações, as armas eram os únicos meios de defesa, e de serviço, que os agentes tinham na altura. Portanto, sem outro meio, e desconhecendo os procedimentos a adoptar nessas situações, porque não existem, o agente fez o que lhe pareceu mais fácil. Disparou contra os corpos, como ele aprendeu”. 

 A última questão colocada aos agentes e oficias que O PAÍS contactou, estava ligada à ausência de espaços para treinos. Porque não têm s esquadras e divisões salas ou campos de tiro porquê? As diferentes respostas podem resumir-se nestas palavras: “Porque ninguém quer saber disso. A Segurança não é tão importante como dizem...” O PAÍS procurou obter a reacção oficial da polícia, mas não obteve sem sucesso. Um oficial do Comando Geral, no entanto, disse que há já dois meses que os agentes de Luanda vão praticando, à vez, tiros no Kapolo. 

Exemplos de outros países

Os países têm práticas diferentes. Mas, por exemplo, em Espanha, onde o tiro é fundamental para a avaliação do agente, se, no processo de formação, um agente tiver nota máxima em todas as disciplinas, mas tiver negativa a tiro, esse agente não passa, por muito brilhante que ele seja. No nosso caso, disse um oficial, “temos inclusive agentes estrábicos. Agentes que entram para a escola já com miopia”. 

O caso de Portugal, um dos que nos é mais próximo, também não é exemplo porque, fruto da situação financeira, “também não conseguem prover as necessárias aulas de tiro para os agentes, mas está, de longe, muito mais avançado em relação a Angola”. Já Nos Estados Unidos da América as esquadras têm salas de tiro, onde os agentes são livres de praticar, em função da sua disponibilidade, além do exame regular para confirmar a sua destreza, ou seja, são alvos de avaliações permanentes em relação a qualidade do tiro.

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