ENTREVISTA A XANANA GUSMÃO
“PÁTRIA NOSSA, TERRA NOSSA”
Beatriz Wagner (*), de Sidnei, Austrália (1999)
José Alexandre Gusmão deverá ser o primeiro presidente de Timor Lorosae. Nascido em Manatuto, Timor Leste, em junho de 1946, ele adotou o nome de guerrilha, Kai Rala Xanana Gusmão, aos 32 anos, quando assumiu o Comando Supremo das Falintil (Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor Leste), após o assassinato do comandante Nicolau Lobato, em 1978. Agora, aos 53 anos, o ex-seminarista e ainda poeta, escritor, jornalista, professor, guerrilheiro, comandante das Falintil e presidente do CNRT (Conselho Nacional da Resistência Timorense) vai liderar a nação mais jovem e também a mais pobre do planeta.
Preso em 1992, Xanana foi condenado à prisão perpétua pela Indonésia, que ocupou sua terra em 1975, logo após a retirada dos portugueses, e matou 200 mil timorenses – pelo que se pôde contar. Cumpriu sete anos da pena na penitenciária de segurança máxima de Cipinang, em Jacarta. Sob pressão da comunidade internacional, que pedia sua libertação, foi posto em prisão domiciliar numa casa escolhida pelas autoridades indonésias até que, em 7 de setembro – três dias após a explosão máxima da ferocidade pro-integracionista em Timor Leste –, foi finalmente libertado.
O momento oficial da libertação aconteceu dentro da embaixada britânica em Jacarta. Na pratica, nada mudou – só a prisão, que ficou mais confortável. Onze dias depois, Xanana deixou o território indonésio pela primeira vez na vida, direto para Darwin. De lá foi a Washington, Nova York – onde discursou perante a 54ª Assembléia Geral das Nações Unidas –, depois a Lisboa e Londres. De volta à Austrália, esteve em Melbourne, Sidnei e Darwin, outra vez.
Na semana passada [17-23/10], ele regressou a sua terra, numa uma operação secreta, e em seu uniforme militar fez um discurso emocionado em Díli, a capital, para milhares de pessoas em frente ao palácio do governo – uma das raras construções ainda de pé na capital destruída pela violência das milícias pró-integração e das forças indonésias. Uma destruição a que a comunidade internacional assistiu de camarote por alguns dias, até que a mídia também abandonasse a área de alto risco. A portas quase cerradas, o reino do terror deixou pouca pedra sobre pedra.
Em Sidnei, conversei com Xanana Gusmão. Ele falou do novo genocídio em Timor – mais um. E embora em Díli seu primeiro discurso tenha sido em tétum, a língua local, Xanana afirma que Timor Lorosae será o oitavo pais de língua portuguesa no mundo. Ou pelo menos estes são os planos das lideranças. José Ramos-Horta, vice-presidente do CNRT, co-laureado com o Prêmio Nobel da Paz de 1996, diz que a adoção do português será uma forma de reafirmar as raízes históricas de Timor e também de homenagear todos os povos lusófonos: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Os desafios à frente de Xanana Gusmão são muito grandes. E ao lado também. Na pontinha do maior país muçulmano do mundo, o quarto maior em população e uma bomba-relógio nesta parte do mundo, Timor terá que conviver com sua poderosa vizinha, a Indonésia, mais de 200 milhões de habitantes, dos quais meio milhão pertencem às Forcas Armadas, incluindo a polícia. Timor Leste, no dia da consulta popular da independência, 30 de agosto, deveria ter em torno dos 800 mil habitantes. Quantos terá agora? Ninguém sabe. O tempo dirá.
Qual é a situação dos refugiados em Timor Ocidental ?
Xanana Gusmão – Esta é uma enorme preocupação, porque estamos falando aqui de quase um terço da população de Timor. Temos vindo a insistir com a comunidade internacional para uma operação em grande escala, a fim de retirar imediatamente aqueles a quem nós chamamos de reféns. O problema lá é que eles não necessitam muito de comer. O que necessitam é de regressar à casa para ver, procurar seus maridos, seus pais. Como sabe, há mais mulheres e crianças naqueles campos. Esta é que é a necessidade premente deles, e não realmente o comer ou os medicamentos. Tem havido um retorno em aviões, aos poucos. Isso levará anos. Com navios, com dois, três mil de uma vez, talvez em um mês eles regressem. É mais barato de alugar do que aviões e é nisso que temos insistido com a comunidade internacional.
Continuamos a insistir no regresso de todos os reféns, numa operação que possa levar de volta os timorenses vivendo na Indonésia e também no aumento das forças multinacionais para que a segurança possa vir a condicionar o rápido retorno da população deslocada no mato e nas montanhas. Estamos a fazer face a enormes dificuldades não só na questão de assistir à população, como na questão de proceder a uma administração provisória em nível local e regional. As dificuldades são tantas que temos de andar de país a país a pedir a organizações, sindicatos, grupos de solidariedade, como podem concretamente apoiar o CNRT na execução das atividades que são muito, muito urgentes.
Por que reféns?
X. G. – Reféns dentro da percepção de uma estratégia que os generais fizeram. A destruição, a violência, tudo isto estava dentro de uma estratégia em que forçaram aquele número de pessoas a ir para Timor Ocidental para dizer que a Unamet não foi justa, que toda a população que passou para o outro lado eram aqueles que deveriam votar pela autonomia. Uma estratégia muito suja dos generais indonésios. Às vezes podemos pensar "que raios de estratégia foi esta?" Eles não têm estratégias muito claras, as tem é muito escuras. Esta é uma delas. O problema do lado indonésio é que eles subestimaram totalmente a reação internacional. Porque eles fizeram o que queriam por 23 anos, pensaram, de maneira muito simplista, que se levassem 300 mil timorenses para Timor Ocidental poderiam impor uma partilha do território, ou invalidar a votação. Treinaram as milícias só para continuar esta estratégia. Já se ouviu de novo falar em "divisão de Timor". Quer dizer, uma grande, imensa Indonésia ainda conseguiu elaborar a estratégia de dividir Timor, para colocar tantos milhares que querem a integração. São mantidos lá contra a sua vontade. São reféns.
Quantas pessoas morreram em Timor Leste desde a votação?
X. G. – Não será por nós que se terá este resultado. Deixaremos a grupos independentes de investigação a avaliação sobre o novo genocídio em Timor.
O ministro indonésio Haryono Suryono, do Bem-Estar Social, disse há alguns dias que os timorenses em Timor Ocidental estão com muito medo de voltar a Timor Leste por causa dos confrontos na fronteira entre a Interfet e as milicias pró-integração. O senhor acha que a guerra da contra-informação da Indonésia ainda tem chances de ser bem-sucedida?
X. G. – Eu creio que os governantes indonésios são das pessoas que mais sabem mentir e nunca tomaram consciência de que o mundo já está farto de suas mentiras, de sua propaganda. Isto é apenas um meio de salvar a face, um meio de o governo indonésio dizer que não tem nada a ver com a ida forçada deles e um meio de justificar aquela forma de inquérito que fizeram, o de perguntarem se os refugiados, os reféns, querem ou não voltar. Eles tentam, sempre tentaram. E ainda não conseguiram mudar de comportamento.
No momento, na guerra da contra-informação, todas as baterias estão voltadas contra a Interfet. A própria agência de notícias Antara acusa o exército australiano, que lidera as tropas de paz, de estar matando, torturando e queimando pessoas. Quem se convence com isso? O povo indonésio?
X. G. – É mais o povo indonésio, mas também as forcas pró-status quo. Os militares indonésios são a força dominante lá no país, e os políticos, os da componente civil, têm, de uma outra forma, tentar agradá-los. Então têm que fazer declarações que não são do seu agrado mesmo. É tudo um jogo complicado. Todo mundo tem que dizer qualquer coisa para agradar aos militares.
O senhor já ofereceu que as Falintil cooperem intimamente com a Interfet. Isso pode acontecer?
X. G. – O problema é do mandato da ONU à Interfet [Força Multinacional de Paz das Nações Unidas para Timor Leste], que ordena, para nós erradamente, mas aceitamos, o desarmamento de, digamos assim, todos os timorenses. Temos vindo a defender o não-desarmamento das Falintil e o seu reconhecimento como o exército de libertação. Com esta legitimidade, ela não pode ser desarmada da mesma maneira que um grupo de bandidos como as milícias ou um bando de criminosos como os Kopassus [tropa de elite indonésia criada por Suharto para torturar e matar]. O mandato não permite que as Falintil, como era sua intenção desde o início, participem da pacificação, estando na linha de frente de combate. Pensamos que a pátria é nossa, a terra é nossa, e para permitir vítimas baixas deveríamos ser os primeiros a aceitar estas baixas, e não as forças internacionais, embora apreciemos imenso a presença das forças multinacionais.
Mas o mandato já mostrou ser flexível, a partir do momento em que a Interfet aceitou não desarmar as Falintil.
X. G. – É, mas até ao ponto de participarmos ativamente na operação de pacificação já é, eu creio, um bocado complicado.
E não há negociações no momento?
X. G. – Em princípio não há, na medida em que isto vai dar mais motivos à Indonésia em lançar acusações à Interfet.
O senhor veio à Austrália agora pela primeira vez: Darwin, Melbourne e Sidnei. Qual é sua opinião sobre a Austrália?
X. G. – A Austrália teve dois comportamentos. Em nível do governo foi o único país talvez que reconheceu a integração, mas em nível do povo foi de uma extraordinária solidariedade em momentos difíceis, desde o começo da nossa luta. Já que agora estamos num presente muito positivo e o governo também atuou de uma forma completamente diferente das políticas anteriores, a opinião é de que é hora de a Austrália apoiar a reconstrução em todos os aspectos, e é por isso que nós viemos aqui.
O que o senhor espera da comunidade timorense no exílio?
X. G. – O que eu percebi de encontros que tive com a comunidade é que há uma vontade total de voltar a Timor, de oferecer a disponibibilidade em capacidades, a disponibilidade em outras áreas. Eu espero um plano muito mais bem-feito para o regresso dos timorenses – seja para participar ativamente na reconstrução, seja para morrer na sua terra natal.
Há muitas forças decidindo muita coisa para Timor: ONU, Interfet, Portugal, Austrália. O senhor está satisfeito com a participação das lideranças timorenses na tomada de decisões?
X. G. – (em tom de brincadeira) Não é bem toda a gente mexendo. Não se preocupe, nós vamos ao Brasil também pedir ajuda.
(*) Jornalista, diretora do Programa de Língua Portuguesa da Rádio SBS em Sidnei, Austrália, onde mora desde 1993
- Entrevista extraída de Observatório da Imprensa
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