sábado, 13 de agosto de 2011

Grécia, Irlanda e Portugal: PORQUE OS ACORDOS COM A TROIKA SÃO ODIOSOS




Renaud Vivien, Eric Toussaint [*]

A Grécia, a Irlanda e Portugal são os três primeiros países da zona euro a serem passados à tutela directa dos seus credores ao concluírem planos de "ajuda" com a "Troika" composta pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas estes acordos, que geram novas dívidas e que impõem aos povos medidas de austeridade sem precedentes, podem ser postos em causa com base no direito internacional.

Com efeito, estes acordos são "odiosos" e portanto ilícitos. Como sublinha a doutrina da dívida odiosa, "as dívidas de Estados devem ser contratadas e os fundos resultantes utilizados para as necessidades e os interesses do Estado [1] ". Ora, os empréstimos da Troika são condicionados a medidas de austeridade que violam o direito internacional e que não permitirão a estes Estados saírem da crise.

Todo empréstimo concedido em contrapartida da aplicação de políticas que violam os direitos humanos é odioso.

Como afirma o relator especial Mohammed Bedjaoui no seu projecto de artigo sobre a sucessão em matéria de dívidas de Estado para a Convenção de Viena de 1983: "Colocando-se do ponto de vista da comunidade internacional, poder-se-ia entender por dívida odiosa toda dívida contraída para fins não conformes ao direito internacional contemporâneo e, mais particularmente, aos princípios do direito internacional incorporados na Carta das Nações Unidos" [2] .

Não há nenhuma dúvida de que as condicionalidades impostas pela Troika (despedimentos maciços na função pública, desmantelamento da protecção social e dos serviços públicos, diminuição dos orçamentos sociais, aumento dos impostos indirectos como o IVA, baixa do salário mínimo, etc) violam de modo manifesto a Carta das Nações Unidas. Com efeito, entre as obrigações contidas nesta Carta encontram-se, nomeadamente, os artigos 55 e 56, "o levantamento do nível de vida, do pleno emprego e das condições de progresso e de desenvolvimento na ordem económica e social (...), o respeito universal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião". Em consequência, as medidas de austeridade e as dívidas contratadas no quadro destes acordos com a Troika estão atingidos de nulidade uma vez que tudo o que é contrário à Carta da ONU é considerado não escrito [3] .

Para além da violação dos direitos económicos, sociais e culturais engendrada pela aplicação destas medidas anti-sociais, é o direito dos povos a dispor de si mesmos, consagrado no artigo 1-2 da Carta da ONU e nos dois Pactos de 1966 sobre os direitos humanos, que é espezinhado pela Troika. Segundo o artigo primeiro comum aos dois pactos, "Todos os povos têm o direito de disporem de si mesmos. Em virtude deste direito, eles determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento económico, social e cultural. Para atingir seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações que decorrem da cooperação económica internacional, fundamentada no princípio do interesse mútuo e do direito internacional. Em nenhum caso um povo poderá ser privado dos seus próprios meios de subsistência".

Ora, a ingerência da Troika nos assuntos internos destes Estados, com desprezo da democracia, é flagrante. Estes credores advertiram claramente que as eleições na Irlanda e em Portugal não deviam por em causa a aplicação destes acordos. Citemos por exemplo o artigo do diário francês Le Figaro de 9 de Abril de 2011 que retorna às injunções impostas a Portugal pelos ministros das Finanças da zona euro e da União Europeia aquando de uma reunião verificada em Budapeste antes das eleições legislativas em Portugal: "A preparação (do plano de austeridade) deverá começar imediatamente, em vista de um acordo entre os partidos nos meados de Maio, e permitir a execução sem atrasos do programa de ajustamento desde a formação do novo governo". (...) "os ministros fizeram claramente compreender a Portugal que não querem retornar às contrapartidas da ajuda, seja qual for o resultado das eleições" [4] . No caso da Grécia, o programa de austeridade concluído com a Troika foi imposto em 2010 mesmo sem que o Parlamento o houvesse ratificado quando se tratava de uma obrigação da Constituição grega (artigo 36 parágrafo 2) [5] .

Este desprezo da Troika pela soberania destes três Estados foi tornado possível pela situação de penúria financeira da Grécia, da Irlanda e de Portugal (primeiras vítimas na zona euro da crise da dívida mas certamente não os últimos). Neste sentido, dificilmente se pode defender a validade destes acordo argumentando com a liberdade de consentimento. Em direito, uma parte num contrato não está em estado de exercer a autonomia da vontade, o contrato é atingido de nulidade. Como este princípio se aplica no caso presente? Não podendo razoavelmente tomar emprestado nos mercados financeiros a longo prazo por causa das taxas de juro exigidas pelos mesmos, oscilando entre 12% e 17% conforme o caso, os governos destes três países tiveram de voltar-se para a Troika que aproveitou da situação de prestamista de último recurso. Utilizando a situação de penúria das autoridades gregas, irlandesas e portuguesas, a Troika conseguiu impor planos que tiveram e terão um efeito negativo para a saúde económica destes países dado o carácter pró-cíclico das medidas adoptadas (ou seja, elas reforçam os factores que geram a baixa da actividade económica).

As privatizações maciças nos sectores essenciais da economia (transportes, energia, correios, etc) impostas pela Troika permitem a empresas privadas estrangeiras tomarem o controle e em consequência afectam a soberania destes Estados e o direito dos povos a disporem livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais. Se bem que um Estado tenha o direito, por meio de um acordo, de transferir uma parte da sua soberania a uma entidade estrangeira, esta transferência não deve, salvo violação do direito internacional, comprometer a independência económica do Estado, que é um elemento essencial da sua independência política [6] .

Através das suas condicionalidades, a Troika não violou apenas o direito internacional. Ela igualmente tornou-se cúmplice da violação dos direitos nacionais destes Estados. Na Grécia, mais particularmente, assiste-se a um verdadeiro golpe de Estado jurídico. A título de exemplo, várias disposições da lei 3845/2010, que põe em execução o programa de austeridade, violam a Constituição, nomeadamente ao suprimir o salário mínimo legal. O abandono da soberania do Estado grego é ainda agravado pela cláusula do acordo com a Troika que prevê a aplicabilidade do direito anglo-saxónico e a competência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em caso de litígio. O Estado renuncia assim a uma prerrogativa fundamental da soberania que é a competência territorial dos seus tribunais nacionais. Ao mesmo tempo, a lei grega que põe em execução o programa de austeridade exige que as sentenças arbitrais (tendo valor constitucional) concedendo aumentos de salário para os anos 2010 e 2011 sejam inválidas e inexecutáveis. Em suma, como escrevem os juristas G. Katrougalos et G. Pavlidis, "a soberania estatal é limitada de modo muito similar ao controle financeiro internacional, que havia sido imposto ao país em 1897 na sequência da bancarrota (1893) e sobretudo da derrota grega na guerra greco-turca.

Todo empréstimo cuja causa é ilícita e imoral é odioso

O fundamento jurídico extraído da causa ilícita e imoral para por em causa a validade dos contratos encontra-se nas numerosas legislações nacionais civis e comerciais. Ele nos remete directamente a questão que levanta a doutrina da dívida odiosa: a quem aproveitam os empréstimos? No caso dos acordos concluídos com a Grécia, a Irlanda e Portugal, é claro que os bancos privados europeus, que emprestaram a estes países de modo totalmente irresponsáveis, são ganhadores quando eles arcam com uma pesada responsabilidade na crise da dívida. Com efeito, o salvamento dos bancos privados pelos poderes públicos após a explosão da crise financeira em 2007 implicou a explosão da dívida dos Estados. Neste sentido, pode-se no mínimo qualificar de "imoral" a causa dos acordos feitos com a Troika e falar de "enriquecimento sem causa" (um princípio geral do direito internacional segundo o artigo 38 do estatuto do Tribunal Internacional de Justiça [7] ) em proveito dos bancos privados.

O enriquecimento sem causa dos bancos privados ainda é agravado pelo facto de que estes últimos extraem um enorme lucro sobre as costas dos poderes públicos devido à diferença entre, por um lado, as taxas de juro de mais de 4% que eles exigem dos Estados afectados para comprar os títulos que emitem para um prazo de 3 ou 6 meses, e, por outro lado, a taxa de 1% ao qual estes mesmos bancos tomaram emprestado junto ao BCE até Abril de 2011, antes de ser elevada a 1,25 e depois a 1,50%. [8] Pode-se igualmente falar de enriquecimento sem causa (enriquecimento abusivo e ilegal) a propósito de Estados como a Alemanha, a França e a Áustria que tomaram emprestado a 2% nos mercados e emprestaram à Grécia a 5% ou 5,5%, à Irlanda a 6%. O mesmo para o FMI que toma emprestado dos seus membros a baixas taxas de juro e empresta à Grécia, à Irlanda e a Portugal a taxas claramente superiores.

As medidas anunciadas a 21 de Julho de 2011 pelas autoridades europeias constituem uma confissão clara e nítida do "enriquecimento sem causa" de que elas são responsáveis e do carácter doloso da sua política. Elas finalmente anunciaram a sua intenção de reduzir de 2 a 3 pontos a taxa de juro que exigem da Grécia, da Irlanda e de Portugal. Ao proclamar que reduziam taxa de juro a cerca de 3,5% para créditos a 15 e mesmo 30 anos, elas reconhecem que as taxas que exigem são proibitivas. Elas o fazem tão patente é o desastre no qual contribuíram para mergulhar estes países e tão grande o contágio a outros países.

Qual é o interesse da Irlanda, da Grécia e de Portugal em concluírem estes acordos com a Troika? Nenhum, à parte o facto de que eles lançam uma pequena lufada de oxigénio financeiro... mas que deve servir para o reembolso dos seus credores. No médio e longo prazo, estes planos de rigor vão mesmo piorar a sua situação pois desencadeia um efeito "bola de neve". Com efeito, o encargos dos juros sobre estas novas dívidas aumenta ao passo que as medidas ditadas pela Troika têm como consequência reduzir a actividade económica pois diminuem a procura global afectando as condições de vida das populações. Pode-se portanto reter o comportamento doloso do FMI, tanto é abissal o fosso entre o seu discurso e a realidade. Com efeito, no artigo 1 dos seus estatutos, o FMI tem como objectivos "facilitar a expansão e o crescimento harmonioso do comércio internacional e contribuir assim para a instauração e a manutenção de níveis elevados de emprego e de rendimento real e para o desenvolvimento dos recursos produtivos de todos os Estados membros, objectos primários da política económica [Ler os estatutos do FMI em http://www.imf.org/external/pubs/ft...] ou ainda "dar confiança aos Estados membros pondo os recursos gerais do Fundo temporariamente à sua disposição mediante garantias adequadas, dando-lhes assim a possibilidade de corrigir os desequilíbrios das suas balanças de pagamentos sem recorrer a medidas prejudiciais à prosperidade nacional ou internacional [9] ". Da mesma forma, pode-se afirmar que a acção da Comissão Europeia e do BCE constituem igualmente um dolo a expensas dos países afectados.

As medidas ditadas pelo FMI, BCE e Comissão Europeia têm igualmente como consequência encerrar estes países na lógica infernal do endividamento uma vez que terão de continuar a tomar emprestado para poder reembolsar. Eles partiram portanto para um período de dez, quinze ou vinte anos de austeridade e de aumento da dívida [10] . O estudo da OCDE sobre a dívida grega, publicado em 2 de Agosto de 2011 [11] , afirma nomeadamente que a dívida pública que era de 140% em 2010 deveria reduzir a 100% do Produto Interno Bruto em... 2035.

Diante de uma tal situação, os governos, se quiserem respeitar o interesse da população, têm interesse em romper os acordos com a Troika, suspender imediatamente o reembolso da sua dívida (com congelamento dos juros) e por em marcha auditorias com participação dos cidadãos. Estas auditorias deverão determinar a parte ilegítima destas dívidas, aquela que deve ser anulada sem condições. O remanescente da dívida pública deve igualmente ser reduzido por medidas a expensas daqueles que com elas lucraram. Processos judiciais devem ser empreendidos contra os responsáveis dos danos causados. Evidentemente, medidas complementares e essenciais (transferência dos bancos para o sector público, reforma fiscal radical, socialização dos sectores privatizados no decorrer da era neoliberal, ... [12] deverão ser tomadas pois a anulação das dívidas ilegítimas, se bem que necessária, é insuficiente se a lógica do sistema permanecer intacta.

Notas
|1| Alexander Nahum Sack, Les Effets des Transformations des États sur leurs dettes publiques et autres obligations financières, Recueil Sirey, 1927.
|2| Mohammed Bedjaoui, "Neuvième rapport sur la succession dans les matières autres que les traités", A/CN.4/301et Add.l, p. 73.
|3| Monique et Roland Weyl , Sortir le droit international du placard, PubliCETIM n°32, CETIM, novembre 2008.
|4|
www.lefigaro.fr/... Ler Virginie de Romanet, " Le Portugal : dernière victime en date du modèle néoibéral ", 2011
|5| Georgios Katrougalos et Georgios Pavlidis, "La Constitution nationale face à une situation de détresse financière : leçon tirées de la crise grecque (2009-2011)"
|6|
unesdoc.unesco.org/...
|7| É igualmente previsto em vários códigos civis nacionais, como o espanhol (artigos 1895 e seguintes) e francês (artigos 1376 e seguintes).
|8| Recordamos que o Tratado de Maastricht proíbe o BCE de emprestar directamente aos Estados.
|9| Sublinhados dos autores
|10| Eric Toussaint, "
Aides empoisonnées au menu européen ", 2011,
|11|
www.oecd.org/... |12| Ver Huit propositions urgentes pour une autre Europe
09/Agosto/2011

[*] Renaud Vivien: jurista, membro do grupo de trabalho Direito do CADTM Bélgica. Eric Toussaint: doutor em ciências política, presidente do CADTM Bélgica. Ambos são co-autores do livro La Dette ou la Vie , Aden-CADTM, 2011.

O original encontra-se em
http://www.cadtm.org/Grece-Irlande-et-Portugal-pourquoi
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/ .

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