MANUEL TAVARES – JORNAL DE NOTÍCIAS, opinião
De repente, alguns cidadãos reconhecidamente ricos desataram a fazer actos de contrição fiscais e a baterem estrondosamente com a mão no peito pedindo para serem castigados com impostos.
Esta espécie de humanismo fiscal emergiu logo a seguir à violência que assaltou várias cidades inglesas, o que terá funcionado como um sério sinal de alerta para quem, como qualquer rico consciente, tem por missão à face da Terra preservar a sua própria propriedade.
Por terem ocorrido na pátria da democracia parlamentar, esses assaltos a propriedades, as mais diversas, que marcaram os tumultos em Inglaterra, terão inquietado seriamente já não apenas os políticos e os financeiros encarregues de gerir a boa circulação do capital, mas os próprios acumuladores de lucro.
Que haja cada vez mais gente a reclamar da equidade do sistema fiscal não é estranho porque reflecte o empobrecimento de partes da grande classe média habitualmente acomodadas a uma relativa facilidade para consumir. De resto, foi o surgimento nas ruas dessas novas franjas que transformou a contestação urbana na Europa numa espécie de arco-íris social mais difícil de definir para os poderes políticos - o Governo britânico deu sinais de muita imaturidade perante a nova realidade - e também mais difícil de controlar pelas próprias organizações sindicais e políticas.
Num contexto destes, podemos compreender as razões do alvoroço criado por quem se sente mal representado pelos actuais actores políticos.
Que isso seja sentido pelos mais ricos é que é a grande novidade e o grande perigo para a democracia parlamentar. Pela simples razão de que os ricos estão habituados a que os seus problemas sejam mesmo resolvidos. Ora quando as queixas são de insegurança da propriedade, podemos esperar que tenham o desejo profundo de mexer os cordelinhos para terem um poder mais confiável. Talvez uma democracia mais musculada...
Nada que não tenhamos visto no passado: o capital de um lado, o trabalho do outro e no meio um Poder Político que não consegue fazer emergir das relações de forças um interesse maior: o do bem comum. E afinal todos acham razões de descontentamento.
Mas há uma novidade na narrativa dos ricos que reclamam ser castigados com novos impostos, mesmo quando possuem fundações através das quais vivem em regimes fiscais muito mais benévolos. Porque não passam de palavras hipócritas que escondem privilégios e que, ditas num tom de aparente reconhecimento da injustiça, colocam o próprio regime democrático sob a suspeita de que sem políticos e partidos isto seria melhor. Cuidado, não seria.
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