sábado, 20 de agosto de 2011

VENDERAM O SOFÁ DA LUSOFONIA




JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - CADERNOS ULTRAMARINOS (setembro 2010)

Furioso depois de surpreender a sua filha adolescente aos agarrões com o namorado no sofá da sala, Antônio — ou seria António? — decidiu tomar uma atitude drástica: vendeu o sofá.

Daqui a exatamente um ano, entrará em vigor nas escolas de Portugal o Acordo Ortográfico de 1990. Em teoria, trata-se de um passo de gigante para que os oito países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste) finalmente falem a mesma língua. Em teoria. Na prática, as mudanças impostas pela reforma ortográfica confundem ainda mais os falantes do português, não tocam nas diferenças mais profundas existentes entre as diversas variantes e pouco contribui para diminuir o abismo cultural que existe entre os oitos países-membros.

Ao longo destes quase três anos vivendo na Península Ibérica, aumentei consideravelmente o meu contato com os falantes do português de Portugal, tanto através dos amigos lusos residentes em Madri quanto em frequentes viagens à Terrinha. Numa livraria de Coimbra, quando comprava “Memorial do Convento”, de José Saramago, o vendedor reconheceu o meu evidente acento e perguntou-me se era brasileiro. Perguntou-me se os livros de autores portugueses eram adaptados no Brasil. Respondi-lhe que não, que no Brasil lia-se José Saramago, António Lobo Antunes e Miguel Sousa Tavares sem se alterar uma vírgula de como escreviam os seus livros. Perguntei se a recíproca era verdadeira e ele me disse que sim, até porque os portugueses estavam mais familiarizados com o falar brasileiro do que o contrário.

— Vocês transformaram o português numa língua mais fácil para um estrangeiro aprender. Pronunciam todas as vogais e acabaram com a segunda pessoa. São menos formas verbais para decorar” — disse. — Além disso, inventaram o “meia”, muito útil para não confundirmos o “três” com o “seis”. Mas a reforma ortográfica é um tiro no pé da língua portuguesa, pois não vai fazer com que falemos a mesma língua.

Acostumado a ouvir em Portugal opiniões depreciativas sobre o jeito brasileiro de falar, surpreendi-me com os comentários do vendedor. Até então, o único português que dissera algo interessante, na minha opinião, sobre o acordo ortográfico fora José Saramago:

— É uma operação estética na língua. Não é tão importante como a língua se apresenta, mas o que diz, o que propõe. Além do mais, vou continuar a escrever da mesma forma os revisores que tratem disso. — disparou o Nobel de 1998, que em 2002, no filme Língua, vidas em português dissera não acreditar na existência de uma Língua Portuguesa, mas sim de várias “línguas em português”.

O principal desafio da CPLP é diminuir o abismo entre esses mundos em português. No Brasil, pouco se sabe sobre Timor Leste, os países lusófonos da África e até mesmo sobre Portugal. Pergunte a 100 brasileiros quem é Cavaco Silva. A maioria vai achar que se trata de um pagodeiro e apenas uns três ou quatro saberão dizer que se trata do presidente da República Portuguesa. Qualquer bandinha estadunidense que venda mais de 100 mil discos vira uma febre no Brasil, mas poucos sabem quem são os Xutos, Pedro Abrunhosa, Mariza e Rui Veloso. Nas vitrines das livrarias brasileiras, tente achar um escritor português afora Saramago, Lobo Antunes e Sousa Tavares. Sem falar nos excelentes africanos, como José Eduardo Agualusa, Mia Couto e Ondjaki, que ainda são pouco conhecidos no Brasil. Vou além: pergunte a um estudante secundarista em que países do mundo a língua oficial é o português.

Concordo que o primeiro passo para diminuir esse abismo é a unificação da ortografia. Mas o Acordo Ortográfico de 1990 não cumpre esse papel. Continua-se admitindo a dupla grafia em vários casos, como “gênio” e “génio”, em função do uso. Ora, se o uso é tão determinante, por que suprimir as consoantes “c” de “direcção” e o “p” de “óptimo” quando elas são pronunciadas em Portugal? E por que remover o “c” de “aspecto” e o “p” de “recepção” quando essas duas letras são pronunciadas em absolutamente todas as variantes da língua portuguesa? Se a ideia era acabar com as consoantes mudas, por que não fazer como o italiano, que deu um sumiço no “h” mudo (elicottero, ippopotamo, ospedale) e acabou com as indesejáveis “p”, “c” e “b” dobrando a consoante seguinte (ottimo, aspetto, assurdo)?

Não faz o menor sentido reformar a língua portuguesa sem unificar de vez a ortografia. Além do mais, por que não unificar também a conjugação dos verbos? Atualmente, por exemplo, vive-se a expectativa de um acordo entre Benjamin Netanyahu e Mahmoud Abbas. Pois um jornal português titularia “Palestinianos e israelenses negoceiam nos EUA”, enquanto um diário brasileiro escreveria “Palestinos e israelenses negociam nos EUA”. Quem está certo? As duas formas são “aceitas”, diriam os brasileiros, e “aceites”, diriam os portugueses. E assinariam embaixo os autores do malogrado acordo, já que tiveram preguiça de tocar em outros aspectos que não fossem a ortografia.

Em fevereiro de 2008, cheguei a Madri (que os portugueses grafam com “d” no final) junto a outros 19 jornalistas latino-americanos para um programa de intercâmbio em meios de comunicação espanhóis. Meus colegas hispanófonos, procedentes de diversos lugares da América Hispânica, divertiam-se mutuamente com a maneira com que cada um falava o castelhano e se surpreendiam ainda mais com o jeito ibérico de falar. Mas essas diferenças de acento e de vocabulário não são nocivas, dão até um colorido especial à língua. Ainda que aqui e ali se usem construções diferentes, todos seguiam a mesma gramática e a mesma ortografia. Tudo isso graças à Real Academia Española, instituição máxima do idioma castelhano, que é respeitada e respeita todos os falantes do espanhol.

Até quando vamos passar recibo de incompetência para unificar o português? O espanhol é a língua oficial da Espanha, de 19 países latino-americanos e da Guiné Equatorial, além de ocupar o segundo lugar mundial como segunda língua. Por que nós, que somos oito países, não conseguimos falar — ou pelo menos escrever — a mesma língua?

O Acordo Ortográfico de 1990 entra em vigor com duas décadas de atraso. Mais do que mudar a nossa maneira de escrever, obriga-nos a gastar tempo e milhões para atualizar todos os livros em catálogo, bulas de remédio, manuais de utilização, placas de trânsito, embalagens de produtos, dicionários, aplicativos de informática, contratos etc. E continuaremos falando oito idiomas diferentes. Definitivamente, venderam o sofá da lusofonia.

1 comentário:

Anónimo disse...

É evidente que este senhor não sabe o que diz. É impossível que um vendedor de livros português lhe diga que os portugueses confundem o três e o seis. Os brasileiros poderão pronunciar "treis", mas os portugueses pronunciam mesmo "três". São sons completamente diferentes, nenhum português os confunde.

Depois o senhor diz que: "se o uso é tão determinante, por que suprimir as consoantes “c” de “direcção” e o “p” de “óptimo” quando elas são pronunciadas em Portugal? E por que remover o “c” de “aspecto” e o “p” de “recepção” quando essas duas letras são pronunciadas em absolutamente todas as variantes da língua portuguesa?"
Eu não faço ideia de que sítio em Portugal é que este senhor visitou para ouvir falar português. Provavelmente só nos restaurantes de Lisboa onde quase todos os empregados de mesa são brasileiros. Posso garantir-lhe que é extremamente raro encontrar um português que não pronuncie essas palavras como "ótimu", "diresaun", "aspetu" e "resesaun".
E em Portugal não falamos de israelenses, mas de israelitas. Mas não é por aí que o gato vai às filhoses. O mesmo tipo de variação lexical existe em línguas como o inglês e ninguém se espanta com isso.
É caso para dizer que quando alguém não sabe o que diz o melhor é ficar calado...

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