Jorge Carlos Fonseca em entrevista exclusiva (3)
Terminamos hoje (7-9) a publicação da entrevista concedida por JCF a Liberal e à revista portuguesa Diplomática. Em foco figuras como Eugénio Tavares, Baltazar Lopes e Amílcar Cabral. E o tema recorrente das relações externas e o papel do Presidente da República.
Praia, 7 de Setembro – Entrevistar o Presidente Jorge Carlos Fonseca foi uma fantástica viagem ao universo de um homem que tem vivido os grandes momentos da História de Cabo Verde, ao olhar sensível do poeta e do intelectual, à visão aberta do cidadão em consonância com as mutações sociais e a sede de justiça, liberdade, desenvolvimento e progresso social que interpela este nosso tempo.
Interessou-nos, mais do que conversar sobre os formalismos da Presidência, perceber o que vai no interior do cidadão Jorge Carlos Fonseca, um político atípico que, como sói dizer-se, “tem estado em todas” quando toca a reunir pelo interesse da sua pátria e do seu povo. E a conversa que colocamos ao crivo dos leitores foi um prazer e um raro privilégio.
UMA COISA É CLARA, O PRESIDENTE JORGE CARLOS FONSECA FOI ELEITO “INDO BEBER A TODAS AS FONTES”…
Tive o apoio do MpD, que foi muito importante, e os apoios que tive deram muito trabalho para os conseguir, não foi de bandeja. Eu candidatei-me, de forma clara, ainda antes de ter o apoio institucional do MpD, e anunciei a candidatura antes das legislativas. Mas creio que, também tive apoios muito diversos: de gente da UCID, de pessoas ligadas ao PAICV – não digo dirigentes, mas militantes e simpatizantes deste partido -, de muita gente sem partido, de quadros, de jovens. Creio que os meus votos foram buscados um pouco para além do MpD.
HÁ UMA ESPÉCIE DE DESPERDÍCIO, PORQUE NÃO SÃO TÃO CONHECIDOS COMO SERIA NECESSÁRIO, UMA ESPÉCIE DE APAGAMENTO HISTÓRICO. REFIRO-ME A TRÊS GRANDES FIGURAS DO PENSAMENTO CRIOULO – DIGAMOS ASSIM -, NOMEADAMENTE EUGÉNIO TAVARES, BALTAZAR LOPES E AMÍLCAR CABRAL.
Sim, acho que tem razão. Em relação ao Amílcar Cabral, talvez o facto de a sua figura ser conotada – e com alguma razão – com uma parte do país, o país do PAICV, não tenha sido bom para o próprio. Isto é, o facto de a sua figura estar ligada, quase de forma intrínseca, a um partido político. É claro que Amílcar Cabral está ligado à história do PAIGC e do PAICV, mas isso prejudica a figura, a informação, o estudo da sua personalidade de uma forma mais objectiva, mais desapaixonada, de uma forma mais abrangente. É raro encontrar um intelectual, que não esteja próximo do PAICV, que tenha apetência para estudar Cabral. E se aparece alguém, as pessoas acham uma coisa esquisita.
Por acaso conheço um jovem, que trabalhou comigo na candidatura – e que não é do PAICV -, muito ligado à imagem de Amílcar, que o estuda… e, de vez em quando – lá na candidatura -, quando falava disso diziam-lhe logo “deixa lá o Cabral”. E isto é porque Amílcar Cabral é visto como uma espécie de ideólogo, de referência e marca do PAICV. Mas, por exemplo, creio que o primeiro busto, ou estátua, foi erigido por um ministro de um governo do MpD.
E, curiosamente, o partido que se diz legatário de Cabral não fez muita coisa por ele. Nem do ponto de vista simbólico – uma estátua, um busto. Embora intelectuais ligados ao PAICV tenham organizado um simpósio, uma ou outra conferência, e há uma fundação com o seu nome, deram o nome a umas ruas, liceus… e talvez em excesso, porque quando se põe o nome de Amílcar Cabral em várias ruas, banaliza-se. Faz sentido numa rua importante, numa grande avenida. Mas é importante fazer um estudo sério e desapaixonado da figura e da obra dele. E isso deve ir para além das palavras de ordem.
Em relação aos outros. Por exemplo, eu conheço mais Eugénio Tavares – que procurei estudar nos últimos anos -, mas foi praticamente por acaso, embora eu tenha essa ligação à Brava. Já conhecia Eugénio, mas achava que ele era mais ligado às mornas, à música. A publicação dos dois volumes antológicos organizados por Félix Monteiro, foi um salto muito importante para o conhecimento de quem foi Eugénio Tavares, como cronista, as suas ligações a jornais e movimentos cívicos e políticos, a sua defesa da autonomia de Cabo Verde, como activista republicano, suponho que até ligações a movimentos maçónicos. Mas a sua componente de pensador surge, de facto, depois da publicação dos volumes. Mas, mesmo assim, julgo que o conhecimento sobre Eugénio ainda está acantonado em pequenos círculos, a pujança intelectual, aquilo que causa espanto nos seus escritos… Ele nasceu na Brava, no tempo em que nasceu, no Cabo Verde de então, como era possível nessas circunstâncias haver uma figura como Eugénio Tavares?
Claro que esteve nos Estados Unidos, que esteve na Praia… Então, o conhecimento que tinha de Eugénio seria uma pequena coisa daquilo que seria desejável. Mas, no plano da música, se quiser ouvir na rádio, não se ouve. Mesmo os grandes intérpretes da música cabo-verdiana, Cesária, Bana e Ildo Lobo não sei se alguma vez terão cantado Eugénio Tavares. Cantam grandes compositores como B.Leza, mas não cantam Eugénio Tavares. O que é uma injustiça tremenda.
Quanto a Baltazar Lopes, agora saiu essa obra do Leão Lopes. Trata de alguns aspectos desconhecidos… bom, também hiperboliza o lado político de Baltazar Lopes, tentando dar uma importância que as pessoas não davam até agora, como homem com um ideário de autonomia e independência de Cabo Verde. Penso, até, que Leão Lopes terá considerado Baltazar o principal mentor, ou referência – do ponto de vista das ideias -, da independência do país, da sua autonomia. Que é uma coisa muito discutível, embora não diga que sim nem que não. Mas Baltazar até foi, talvez, vítima do modo como se processou a independência. Nos primeiros anos, com o PAIGC, havia a ideia de que um intelectual era dispensável, que Baltazar seria um pequeno-burguês que quereria apenas uma autonomia no quadro português. E, portanto, durante muitos anos, Baltazar foi ostracizado e visto como alguém que era mais ou menos contra a independência do país, que seria um reformista no quadro da metrópole colonial. E só depois de um colóquio organizado em 86, em São Vicente – para o qual, e com grande surpresa, fui convidado -, o Aristides Pereira faz aquele discurso em que diz que, afinal, os claridosos acreditavam na independência cultural e literária do país. Foi um acto importante, passando os claridosos de reaccionários a fautores da independência literária e cultural da nação. Houve ali uma espécie de recuperação, que se fez de uma forma ainda minguada, no meu entender.
Mas creio que, ainda, há muitos preconceitos em relação a Baltazar Lopes. Mas também decorrentes de preconceitos regionais, que prejudicam o conhecimento de uma tão grande importante figura do ponto de vista intelectual e cívico.
Não lhe vou dizer que irei ser o recuperador dessas figuras, mas penso que o Presidente da República pode fazer alguma coisa do ponto de vista da promoção da Cultura cabo-verdiana, contribuindo para que se conheçam mais as personalidades e as obras de Eugénio Tavares, de Baltazar Lopes e de outras personalidades, de pessoas como o João Vário, o Arménio Vieira… Tem de haver um maior conhecimento das figuras que são identidade cabo-verdiana e o Presidente pode ter aí um importante contributo.
DO SEU PONTO DE VISTA, QUAL DEVE SER A ATITUDE DE CABO-VERDE NAS SUAS RELAÇÕES COM ÁFRICA, COM A EUROPA E, DE IGUAL MODO, COM A CPLP?
Claro que o Governo decide e executa a política externa do país, como também decide a política interna, Mas, em matéria de política externa, enquanto mais alto representante do Estado, o Presidente tem que ter alguns poderes que traduzam essa referência constitucional. Portanto, tem que ter uma intervenção no plano das comunidades emigradas, deve representar a unidade nacional das ilhas com a diáspora, mas também tem competências concretas na nomeação de embaixadores e, do ponto de vista da política externa, deve ter um papel relevante. Desse ponto de vista – e nesse âmbito -, sempre defendi – aliás, desde o tempo em que fui ministro dos Negócios Estrangeiros - que Cabo Verde deve ter uma política externa que traduza, de algum modo, a sua forma de estar no mundo, que tem a ver com o processo histórico e cultural da sua formação.
Nós somos um país moldado por permuta de valores, por uma miscigenação cultural, e isso talvez se deva traduzir até nas nossas relações com os outros Estados. Isto é, devemos ter relações externas abertas, plurais com todos os mundos. Com a África, com a Europa e com a América. Porque, no fundo, somos um pouco da África, da Europa e da América. É claro que o pragmatismo ter que ser fundamental na política externa, que tem de ser mais ousada e mais atrevida. Quando fomos por aí, sempre tivemos ganhos. Por exemplo, quando em 92 estivemos no Conselho de Segurança das Nações Unidas, tivemos ganhos. E só não tivemos mais porque não houve prossecução da política externa por aquela via, por razões que tiveram a ver com a crise no seio do MpD.
Não sou daqueles que defendem o voltar de costas a África, como algumas pessoas que prezo muito. Nós somos um país africano - com características especiais -, somos um arquipélago, estamos no Atlântico, fazemos a ponte África-Europa-América… Agora, devemos ter uma política africana aberta, frontal, e devemos estar numa relação com os países africanos, com os valores históricos, políticos e culturais que nós temos. Os valores da democracia, do Estado de Direito, do Estado constitucional e, portanto, nas relações com África, não devemos ter preconceitos. Somos africanos, mas com as nossas características e os nossos valores. Ou seja, não devemos esquecer que somos um país que defende a democracia, os direitos humanos e o Estado de Direito – e devemos trabalhar para que os países africanos sejam democracias, respeitem os direitos humanos, respeitem os seus cidadãos e levem a eles o desenvolvimento. Não pode haver preconceitos… “que temos de respeitar as suas opções, que não se pode falar dos golpes de Estado, dos massacres e dos regimes militares”. Devemos defender uma África de futuro, moderna, avançada, com a marca da democracia e que respeite os direitos humanos. Não podemos estar ali com um pé dentro e outro fora.
Assumimos África, até porque pode ser importante para nós, a prazo. As parcerias com África são muito importantes. Quando ela se pacificar e a democracia chegar e se estender, creio que o mercado africano será muito importante para Cabo Verde, directa e indirectamente.
Mas a União Europeia também é um espaço chave da nossa política externa. Os principais parceiros, neste momento, da nossa Economia, são as economias europeias. Neste momento elas estão sob o impacto da crise financeira internacional, o que complica um pouco a cooperação e os investimentos, e daí nós devermos diversificar as nossas relações com países emergentes como a Índia, o Brasil, Angola, China… mas também países como as Seicheles, Maurícias. Temos que ousar diversificar as relações. Bom, e temos as relações com os Estados Unidos.
Quanto à CPLP, creio que é uma ideia fantástica, uma ideia bonita, já se fez alguma coisa mas creio que tem de se fazer muito mais. Às vezes dá a impressão que mesmo os Estados que estão na CPLP, estão lá mas não representa para esses Estados algo de muito relevante na constelação das suas relações externas. Há ali uma ideia meio difusa, não se sabe se é uma comunidade da língua, se é Cultura, se é História ou se são outras coisas. E, portanto, é preciso clarificar. E há países que lá estão, que não se sabe se estão ou não estão. E, sobretudo, se perguntar aos cidadãos portugueses, aos brasileiros, aos angolanos, aos cabo-verdianos… se eles conhecem a CPLP, se sabem o que é e se sentem membros daquilo a que se chama uma comunidade, creio que a maioria não se sente.
E não se sente porquê? Porque nós só nos sentimos membros de qualquer coisa com que temos alguma afinidade, quando estamos com à-vontade, e isso tem a ver com a circulação das pessoas. Eu não vejo uma comunidade supranacional sem a livre circulação. Agora, entendo que seja complicado.Era eu ainda ministro dos Negócios Estrangeiros, criamos o estatuto de cidadão lusófono, politicamente foi um sinal, mas foi um sinal político ingénuo porque ninguém pegou nisso.
Os países como Portugal, o Brasil e Angola têm de se empenhar mais, e entendo devermos caminhar para uma comunidade de povos. Porque há coisas um pouco ridículas, por exemplo, quando vamos a Portugal temos um balcão de entrada de cidadãos da CPLP, mas tenho visto pessoas a sair daquela fila e vão para a geral porque é mais fácil entrar. Até dá ideia que, ser da CPLP, ao contrário de facilitar, só complica.
Exclusivo Liberal - Diplomática
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