RODOLPHO MOTTA LIMA* – DIRETO DA REDAÇÃO
Na semana passada, pretendi colocar em discussão o uso indevido da palavra “democracia”, vocábulo que nos é muito caro, mas que vem sendo abastardado pela sua pretensa identificação semântica com “capitalismo” ou “liberalismo” . Será que realmente estamos em uma democracia só porque vivemos debaixo de um sistema que garanta a livre expressão? Se o que nos cerca são desigualdades históricas, crônicas, onde a fome e a miséria estão presentes, essa é , realmente, uma “democracia”?
Algumas outras expressões consagradas, no campo da política ou da economia, sempre me incomodaram. Lembro que, quando jovem, o pessoal da direita se referia aos exploradores – aí entendidos os latifundiários, os coronéis do açúcar, os grandes capitalistas, etc – como a “classe produtora”, desprezando totalmente, no processo de produção da riqueza nacional, os trabalhadores do campo e da cidade, numa demonstração clara, pela seleção vocabular, de segregação social. Hoje esse termo é menos usado, mas encontra um certo substituto na palavra “empreendedor”, que parece querer referir-se tão somente aos que, detendo o capital, podem criar empresas.
Outra palavra que não me cai bem aos ouvidos, pela generalização com que hoje é empregada, é o termo “consumidor”. Parece que se está extinguindo o “cidadão”, palavra que remete a todos os direitos e deveres do ser humano em uma sociedade democrática, trocada por esse vocábulo que revela claramente a essência de uma economia “de mercado”, na qual as pessoas valem pelo que possuem ou podem possuir e só nessa condição devem agir.
Aliás, a palavra “mercado” também é incomodativa, porque ocupa, hoje, destaque equivalente ao dos magos e demiurgos de antigamente, quase um deus a comandar o espetáculo da desigualdade social. Quando ouço declarações de que “o mercado está nervoso”, confesso que eu é que fico, diante desse disparate metonímico. Nem vou dizer aqui, ainda no plano da economia, o que penso da “lei da oferta e da procura”, pois certamente seria trucidado verbalmente pelo pessoal do economês. Mas sempre me pareceu estranho que, havendo maior procura por um bem, este tenha que ter seu valor aumentado: é o mesmo bem, sua produção demandou o mesmo custo, mas ele passa a “valer mais” porque há mais gente que o tem como objetivo. Confortável para quem produz, não? Mas e o outro lado, como é que fica? Fica pagando mais...
Na relação de palavras ou conjunto de palavras que me parecem exotéricas, está a expressão “segredo de Estado”. Afinal, que é o Estado, quem é o Estado? Em boa hora, em episódio recente, o Governo parece que acabou entendendo que não poderia declinar da divulgação dos fatos da história brasileira , para o conhecimento geral do povo. Sei que certas recalcitrâncias se fazem ainda em nome de uma malfadada “governabilidade”, mais uma palavra perversa que coloca certos políticos ou grupos em condição de, velada ou escancaradamente, chantagear o Governo, condicionando seu apoio a medidas sérias em troca de decisões não tão sérias, como, por exemplo, a de condenar ao silêncio fatos significativos de nossa história. É coisa petrificada na política nacional: nenhum partido governa sem o PMDB, essa aberração política que pode estar á esquerda ou à direita, desde que atendidas suas conveniências de desfrute do poder. E a esse processo de submissão se dá o nome de “governabilidade”...
No campo da política, e em outros, a mídia usa e abusa de uma palavra que me causa espécie: “o especialista”. Você pode apostar que, quando a mídia tem interesse em disseminar tal ou qual opinião, sempre há de mencionar um “especialista” que, ouvido, diz exatamente o que se pretende que ele diga. Trata-se de especialistas por conveniência... O que me lembra Darcy Ribeiro, que, ao falar sobre especialistas, dizia que há pessoas que, quanto mais se aprofundam no saber do que sabem, mais ignorante ficam no resto.
Estava no meio desta coluna quando ouvi alguém falar na tal de “falta de vontade política”, para justificar a ausência de uma atitude por parte de um determinado governo. Ora, quando qualquer governo não faz alguma coisa é porque não quer fazer , ou porque não acredita naquilo, ou porque pretende outra coisa. Sendo assim, “vontade política de não fazer” seria uma expressão melhor... Fazendo aqui uma autocrítica, porque eu mesmo já usei muitas vezes essa expressão, cá para nós, “vontade política” é eufemismo vazio, tão vazio quanto a palavra “atitude”, impiedosamente usada hoje por cronistas esportivos para mostrar que o atleta X ou Y deve agir no sentido W ou Z...
O que você acha da expressão “clamor da opinião pública”, quando utilizada pela mídia a serviço de seus objetivos nem sempre confessados? A “opinião pública” é , quase sempre, a opinião que se publica, ou seja, a opinião que segue a linha político-ideológica do órgão midiático que a apregoa.
Seguimos , assim, nesse cotidiano repleto de palavras vazias, ou enganosas, ou falsas. E este texto não tem o propósito ou a pretensão de vê-las banidas, que essa é uma luta inglória, mas quer propor, pelo menos, um convite ao enfrentamento. Afinal, em outro contexto, Drummond já havia afirmado: “Lutar com as palavras é a luta mais vã. No entanto, lutamos”.
*Advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
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