Eduardo Febbro - Direto do Cairo - Carta Maior
A cena se repetiu em praticamente todos os bairros da capital egípcia. A população foi às urnas de forma massiva. Uma onda de eleitores entusiastas deu corpo e sentido à jornada inicial do complexo processo eleitoral que iniciou nesta segunda-feira com a eleição de dois terços da câmara baixa por parte de 9 das 27 regiões administrativas em que está dividido o Egito e terminará no final de janeiro com a eleição da Câmara alta. O Egito votou com sincera esperança, e também com prudência.
Às sete horas da manhã a senhora se posicionou na fila que já havia se formado, instalou-se na cadeira dobrável que trouxe de casa e passou a esperar como se fosse receber um prêmio. Ainda faltava uma hora para que a seção de votação do bairro de Zamalek, um dos mais caros do Cairo, abrisse as portas.
Como ela, as pessoas que estavam a frente na fila tinham se preparado com a mesma aplicação. Hani, um vizinho de Zamalek, estudante de fotografia, resume perfeitamente bem o paradoxo desta consulta: “fico uma semana participando de manifestações na praça Tahrir para arrancar concessões dos militares, mas não é por isso que vou deixar de votar. Sei que tudo é incerto, que está mal organizado, que há risco de fraude e tudo mais. Mas tenho a sensação de que, pela primeira vez, em nossa história moderna, votar tem um sentido”.
A cena se repetiu em praticamente todos os bairros da capital egípcia. A população foi às urnas de forma massiva. Uma onda de eleitores entusiastas deu corpo e sentido à jornada inicial do complexo processo eleitoral que iniciou nesta segunda-feira com a eleição de dois terços da câmara baixa por parte de 9 das 27 regiões administrativas em que está dividido o Egito e terminará no final de janeiro com a eleição da Câmara alta.
A Praça Tahrir ainda estava ocupada pelos manifestantes, mas a junta militar ganhou uma primeira aposta: mobilizar os eleitores apesar da segunda revolução, da violência desencadeada e da férrea rejeição por parte dos jovens revolucionários a que as eleições fosse realizadas nestas condições.
Os protagonistas da segunda revolução egípcia, desencadeada no dia 18 de novembro, tampouco perderam: após o faraônico poder de Mubarak em fevereiro, derrubaram um novo governo e, com a pressão das ruas, forçaram o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSF) a modificar vários parágrafos suspeitos da agenda da transição democrática.
Milhares de pessoas passaram a noite na Praça Tahrir com uma consigna clara: um não rotundo à entrada no jogo eleitoral. “Não participarei de uma montagem preparada pelo ditador que substituiu Mubarak. O que pedimos é que os militares vão embora e que deixem o poder aos civis durante esse período de transição”, disse Fuad, um jovem estudante de comércio internacional. “Se votarmos, a única coisa que vamos conseguir é consolidar o poder dos militares”, afirmou Tawfik, outro jovem da Tahrir.
O certo é que a Alta Comissão eleitoral teve que prolongar em uma hora o prazo para a votação em função da inesperada afluência de eleitores. “Nos surpreendeu a quantidade de eleitores que participaram, muito maior do que a prevista”, reconheceu o responsável pela Alta Comissão eleitoral, Abdel Moes Ibrahim.
A palavra “participar” tem, neste caso, uma conotação muito profunda em um país que não estava acostumado a votar, mas sim a cobrar por um simulacro de voto. As numerosas irregularidades constatadas nesta segunda-feira – propaganda eleitoral nos locais de votação, ausência de fiscais, falta de cédulas para votar – são inocentes perto do que ocorria antes.
Nas décadas de Mubarak no poder, o povo, de fato, não votava. O suborno acontecia antes mesmo de se entrar nos locais para votação e os agentes do partido mubarakista, o PND, colocam o voto em suas urnas.
Mohammed Abderrahmane, um eleitor do centro do Cairo, conta que enfrentou uma fila de três horas porque “não queria perder a chance de votar”. Não estou com o povo de Tahrir, mas se eles tiraram Mubarak, nós, que somos em maior número, podemos mudar as coisas em um processo limpo, mesmo que seja preciso admitir que tudo nesse país é meio irregular”.
É inegável: as seções eleitorais foram literalmente assaltadas por um comovedor leque geracional. Um ancião quase centenário, acompanhado por um filho e um neto, entrou para votar carregado porque já não podia caminhar. Quando saiu, disse: “Neste país, os militares, todos, tem sido uma maldição e os religiosos uns pegajosos”. Votei para deixar aos meus filhos e netos uma semente distinta para o seu futuro”.
A esperança humana está mais além de qualquer análise. E o Egito votou com sincera esperança, e também com prudência. Alegria sem euforia. O passo dado pela sociedade é determinante no caminho da transição política que se pôs em marcha logo após a queda de Mubarak. O voto desta segunda não desarma a tensão, nem esclarece as ambiguidades voluntárias introduzidas pelos militares no nascente processo democrático.
No entanto, apesar das brumas e dos 42 mortos da última semana, o Egito parece acreditar que há uma ressurreição possível. As zonas obscuras da transição são manchas tão grandes como a presença maciça dos militares espalhados pelo Cairo nesta segunda-feira.
O futuro Parlamento que sair das urnas terá poderes limitados pela vontade dos militares. O poder legislativo não é soberano. Sua ação depende do Conselho Superior das Forças Armadas. A instância presidida pelo marechal Mohamed Tantaui, ex-ministro da Defesa de Mubarak, conservou faculdades presidenciais ante o poder legislativo. Neste sentido, pode vetar qualquer projeto de lei que não aprove e nem sequer autoriza que a nova Assembleia designe o próximo governo, segundo a lógica da maioria. O Exército conservou amplos poderes que se superpõem à vontade popular. Por exemplo, uma vez que o Parlamento designe a comissão que redigirá a futura Constituição, o CSFA se atribui o direito de vetar artigos e inclusive nomear outra comissão se, em um prazo de seis meses, não se redigir a nova Carta Magna.
Um aparato legislativo cheio de limites e marcado pelos militares, uma Constiuição submetida às botas e um sistema de partidos em construção com um movimento já solidamente organizado, a Irmandade Muçulmana: a democracia egípcia emerge com fronteiras estreitas. Em um encontro com jornalistas no Cairo, o cientista político Ashraf Al Sheriffalou não já da redemocratização, mas sim de um processo de “des-democratização” no qual, sob a aparência de uma eleição pluralista, se ordenou um arranjo político para “que nada evolua” e persista a “ordem imposta por Mubarak sem Mubarak”.
O Egito, não obstante, apostou na capacidade do mandato popular para modificar a relação de forças. As sondagens antecipam uma ampla vitória do signo do Sol, ou seja, o símbolo que representa o braço político da Irmandade Muçulmana, o partido Liberdade e Justiça. Os analfabetos puderam eleger suas listas: uma cor ou a figura de um pássaro ou um girassol.
O leque de partidos e candidatos é vasto. Mais de 55 formações e 15 mil postulantes conformam a oferta eleitoral articulada em torno de quatro blocos: A Aliança Democrática, onde está o PLJ da Irmandade Muçulmana e al Ghad; a Aliança Islamista, que agrupa os partidos abertamente salafistas como Al Asala, Al Nur, Al Fadila e Partido para a Construção e o Desenvolvimento; o Al Kutla al Masriya, a aliança laica do Bloco Egípcio onde estão os movimentos de esquerda; e os partidos liberais como Tagamu, o Partido Social-Democrata egípcio e Al Masrin al Ahrar.
Um bloco inédito na história moderna do Egito aparece nas cédulas, a aliança AL Zaura Mustamira, a Revolução Continua. Essa aliança, herdeira da Revolução de Janeiro, e recém criada, agrupa os partidos marxistas e um setor da dissidência de esquerda da Irmandade Muçulmana. A estas amplas alianças se somam outros partidos que podem ser importantes como a Associação Nacional pela mudança fundada pelo ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica e prêmio Nobel da Paz, Mohamed el Baradei. Também estão presentes os invisíveis do dissolvido Partido Nacional Democrático, de Hosni Mubarak. Seus membros se disfarçaram apresentando-se nas listas independentes ou sob a bandeira de outros movimentos.
Estas são as forças que se colocaram em movimento. Os cairotas, apaixonados, mas também cheios de filosofia, participam plenamente sem se deixar enganar pela promessa de um efeito imediato. Os irredutíveis da Praça Tahrir não baixam a guarda. Nesta segunda, seguiam reunidos, celebrando com música o instante e a Revolução. Em verdade, não perderam. Ainda que o grande poder manipule, trame e desenhe pactos secretos, eles mudaram a história.
Nuir, que foi votar, sintetizou o sentimento compartilhado por uma sociedade consciente da luta que a espera amanhã: “eles não deixarão a chave de um banco assim no mais. Isso é só um começo. Levaremos décadas para construir uma democracia onde a polícia não nos mate, não nos fira, e, pior ainda, para erradicar a corrupção. Mas era preciso começar algum dia. E começamos aqui, em Tahrir.
Tradução: Katarina Peixoto
Como ela, as pessoas que estavam a frente na fila tinham se preparado com a mesma aplicação. Hani, um vizinho de Zamalek, estudante de fotografia, resume perfeitamente bem o paradoxo desta consulta: “fico uma semana participando de manifestações na praça Tahrir para arrancar concessões dos militares, mas não é por isso que vou deixar de votar. Sei que tudo é incerto, que está mal organizado, que há risco de fraude e tudo mais. Mas tenho a sensação de que, pela primeira vez, em nossa história moderna, votar tem um sentido”.
A cena se repetiu em praticamente todos os bairros da capital egípcia. A população foi às urnas de forma massiva. Uma onda de eleitores entusiastas deu corpo e sentido à jornada inicial do complexo processo eleitoral que iniciou nesta segunda-feira com a eleição de dois terços da câmara baixa por parte de 9 das 27 regiões administrativas em que está dividido o Egito e terminará no final de janeiro com a eleição da Câmara alta.
A Praça Tahrir ainda estava ocupada pelos manifestantes, mas a junta militar ganhou uma primeira aposta: mobilizar os eleitores apesar da segunda revolução, da violência desencadeada e da férrea rejeição por parte dos jovens revolucionários a que as eleições fosse realizadas nestas condições.
Os protagonistas da segunda revolução egípcia, desencadeada no dia 18 de novembro, tampouco perderam: após o faraônico poder de Mubarak em fevereiro, derrubaram um novo governo e, com a pressão das ruas, forçaram o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSF) a modificar vários parágrafos suspeitos da agenda da transição democrática.
Milhares de pessoas passaram a noite na Praça Tahrir com uma consigna clara: um não rotundo à entrada no jogo eleitoral. “Não participarei de uma montagem preparada pelo ditador que substituiu Mubarak. O que pedimos é que os militares vão embora e que deixem o poder aos civis durante esse período de transição”, disse Fuad, um jovem estudante de comércio internacional. “Se votarmos, a única coisa que vamos conseguir é consolidar o poder dos militares”, afirmou Tawfik, outro jovem da Tahrir.
O certo é que a Alta Comissão eleitoral teve que prolongar em uma hora o prazo para a votação em função da inesperada afluência de eleitores. “Nos surpreendeu a quantidade de eleitores que participaram, muito maior do que a prevista”, reconheceu o responsável pela Alta Comissão eleitoral, Abdel Moes Ibrahim.
A palavra “participar” tem, neste caso, uma conotação muito profunda em um país que não estava acostumado a votar, mas sim a cobrar por um simulacro de voto. As numerosas irregularidades constatadas nesta segunda-feira – propaganda eleitoral nos locais de votação, ausência de fiscais, falta de cédulas para votar – são inocentes perto do que ocorria antes.
Nas décadas de Mubarak no poder, o povo, de fato, não votava. O suborno acontecia antes mesmo de se entrar nos locais para votação e os agentes do partido mubarakista, o PND, colocam o voto em suas urnas.
Mohammed Abderrahmane, um eleitor do centro do Cairo, conta que enfrentou uma fila de três horas porque “não queria perder a chance de votar”. Não estou com o povo de Tahrir, mas se eles tiraram Mubarak, nós, que somos em maior número, podemos mudar as coisas em um processo limpo, mesmo que seja preciso admitir que tudo nesse país é meio irregular”.
É inegável: as seções eleitorais foram literalmente assaltadas por um comovedor leque geracional. Um ancião quase centenário, acompanhado por um filho e um neto, entrou para votar carregado porque já não podia caminhar. Quando saiu, disse: “Neste país, os militares, todos, tem sido uma maldição e os religiosos uns pegajosos”. Votei para deixar aos meus filhos e netos uma semente distinta para o seu futuro”.
A esperança humana está mais além de qualquer análise. E o Egito votou com sincera esperança, e também com prudência. Alegria sem euforia. O passo dado pela sociedade é determinante no caminho da transição política que se pôs em marcha logo após a queda de Mubarak. O voto desta segunda não desarma a tensão, nem esclarece as ambiguidades voluntárias introduzidas pelos militares no nascente processo democrático.
No entanto, apesar das brumas e dos 42 mortos da última semana, o Egito parece acreditar que há uma ressurreição possível. As zonas obscuras da transição são manchas tão grandes como a presença maciça dos militares espalhados pelo Cairo nesta segunda-feira.
O futuro Parlamento que sair das urnas terá poderes limitados pela vontade dos militares. O poder legislativo não é soberano. Sua ação depende do Conselho Superior das Forças Armadas. A instância presidida pelo marechal Mohamed Tantaui, ex-ministro da Defesa de Mubarak, conservou faculdades presidenciais ante o poder legislativo. Neste sentido, pode vetar qualquer projeto de lei que não aprove e nem sequer autoriza que a nova Assembleia designe o próximo governo, segundo a lógica da maioria. O Exército conservou amplos poderes que se superpõem à vontade popular. Por exemplo, uma vez que o Parlamento designe a comissão que redigirá a futura Constituição, o CSFA se atribui o direito de vetar artigos e inclusive nomear outra comissão se, em um prazo de seis meses, não se redigir a nova Carta Magna.
Um aparato legislativo cheio de limites e marcado pelos militares, uma Constiuição submetida às botas e um sistema de partidos em construção com um movimento já solidamente organizado, a Irmandade Muçulmana: a democracia egípcia emerge com fronteiras estreitas. Em um encontro com jornalistas no Cairo, o cientista político Ashraf Al Sheriffalou não já da redemocratização, mas sim de um processo de “des-democratização” no qual, sob a aparência de uma eleição pluralista, se ordenou um arranjo político para “que nada evolua” e persista a “ordem imposta por Mubarak sem Mubarak”.
O Egito, não obstante, apostou na capacidade do mandato popular para modificar a relação de forças. As sondagens antecipam uma ampla vitória do signo do Sol, ou seja, o símbolo que representa o braço político da Irmandade Muçulmana, o partido Liberdade e Justiça. Os analfabetos puderam eleger suas listas: uma cor ou a figura de um pássaro ou um girassol.
O leque de partidos e candidatos é vasto. Mais de 55 formações e 15 mil postulantes conformam a oferta eleitoral articulada em torno de quatro blocos: A Aliança Democrática, onde está o PLJ da Irmandade Muçulmana e al Ghad; a Aliança Islamista, que agrupa os partidos abertamente salafistas como Al Asala, Al Nur, Al Fadila e Partido para a Construção e o Desenvolvimento; o Al Kutla al Masriya, a aliança laica do Bloco Egípcio onde estão os movimentos de esquerda; e os partidos liberais como Tagamu, o Partido Social-Democrata egípcio e Al Masrin al Ahrar.
Um bloco inédito na história moderna do Egito aparece nas cédulas, a aliança AL Zaura Mustamira, a Revolução Continua. Essa aliança, herdeira da Revolução de Janeiro, e recém criada, agrupa os partidos marxistas e um setor da dissidência de esquerda da Irmandade Muçulmana. A estas amplas alianças se somam outros partidos que podem ser importantes como a Associação Nacional pela mudança fundada pelo ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica e prêmio Nobel da Paz, Mohamed el Baradei. Também estão presentes os invisíveis do dissolvido Partido Nacional Democrático, de Hosni Mubarak. Seus membros se disfarçaram apresentando-se nas listas independentes ou sob a bandeira de outros movimentos.
Estas são as forças que se colocaram em movimento. Os cairotas, apaixonados, mas também cheios de filosofia, participam plenamente sem se deixar enganar pela promessa de um efeito imediato. Os irredutíveis da Praça Tahrir não baixam a guarda. Nesta segunda, seguiam reunidos, celebrando com música o instante e a Revolução. Em verdade, não perderam. Ainda que o grande poder manipule, trame e desenhe pactos secretos, eles mudaram a história.
Nuir, que foi votar, sintetizou o sentimento compartilhado por uma sociedade consciente da luta que a espera amanhã: “eles não deixarão a chave de um banco assim no mais. Isso é só um começo. Levaremos décadas para construir uma democracia onde a polícia não nos mate, não nos fira, e, pior ainda, para erradicar a corrupção. Mas era preciso começar algum dia. E começamos aqui, em Tahrir.
Tradução: Katarina Peixoto
Fotos: Al Jazeera
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