quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A AVALANCHE DOS NOVOS PORTUGUESES NO BRASIL




Alexandra Lucas Coelho, no Rio de Janeiro - Público
 
Multiplicam-se os trabalhadores ilegais
 
Só na primeira metade deste ano, mais de 50 mil portugueses pediram residência no Brasil. E multiplicam-se os trabalhadores ilegais. Vistos e burocracia têm sido o grande travão. Arquitectos, engenheiros, gestores parecem dominar. Mas há quem chegue com o 12º ano.

Em Agosto de 2010, Cátia Almeida aterrou no Rio de Janeiro para participar no Campeonato Mundial de Capoeira. Foi campeã e não apanhou o voo de volta a Portugal. Uma filha já estava com ela. A outra veio depois com o pai. Estão todos a morar no Rio.

Algarvia de Albufeira, 30 anos, Cátia faz parte da avalanche de novos portugueses no Brasil, difícil de medir em números. Só entre Dezembro de 2010 e Junho de 2011, os pedidos de residência permanente aumentaram de 276.703 para 328.856 (dados do ministério brasileiro da Justiça).

Isto significa mais 52 mil portugueses em apenas meio ano, fora os vistos para trabalho temporário, estudantes e investigadores. Mas para ter uma dimensão justa da realidade, seria preciso somar ainda todos os ilegais. Os vistos são o grande entrave da nova corrida ao Brasil. Muitos dos portugueses em situação legal conhecem vários ilegais.

Mesmo Cátia não esperava que a burocracia fosse tão difícil. E as suas filhas são luso-brasileiras.

A história desta família, na verdade, conta as duas corridas que aconteceram entre Portugal e Brasil nos últimos 20 anos. Primeiro, a corrida de brasileiros para Portugal, quando o Brasil estava mal. Depois o contrário.

“Conheci o meu marido em Albufeira em 1998”, conta ao PÚBLICO. “Ele emigrara do Brasil para vir dar aulas de capoeira, tentar uma nova vida.” Rapaz de Niterói, 25 anos. Cátia tinha 17. Foi “mais ou menos amor à primeira vista”. Um ano depois já tinham uma filha, depois veio outra, depois Cátia investiu na capoeira. Em 2010 foi campeã nacional e campeã europeia. “E em Agosto a Câmara de Albufeira pagou-me a passagem para eu vir ao Mundial no Rio.”

Era a oportunidade que a família precisava para inverter a emigração. As coisas em Portugal não estavam boas. “Eu trabalhava como recepcionista num hotel em Albufeira, o meu marido era bombeiro profissional. Estávamos a viver para pagar as contas e já não dava, com duas filhas, a casa, água, luz, telefone. Numa dessas noites de insónia a gente resolveu: vamos embora.”

Cátia veio com a filha de 12 anos, que também é campeã de capoeira e teve direito a passagem. Mãe e filha esperaram pai e filha e foram morar para uma casa que a família dele tinha em Abolição, um subúrbio da Zona Norte. Não é o cartão-postal carioca, e Cátia arranjou um emprego de recepcionista num hotel da Barra da Tijuca, outro extremo da cidade. Longas viagens de autocarro todos os dias. Mas ela está satisfeita.

“O hotel paga-me vale de transporte e alimentação, dá-me seguro de saúde e seguro odontológico para mim e para os meus dependentes, uma cesta básica de 60 reais, estou a sentir-me superbem tratada.” Para a loucura de preços que tomou o Rio, o salário não é alto, 2000 reais (820 euros), com uma folga semanal apenas, mas o marido também já está contratado por uma ONG como professor de capoeira numa zona pobre.

“O custo de vida é alto em relação ao que ganhamos, telefone, luz, alimentação”, reconhece Cátia. “Mas lá metade do salário era para pagar a casa. Aqui o estilo de vida é bem melhor. Todo o fim-de-semana vamos um cinema, a um teatro. Em Portugal só assisti a teatro na escola. E gosto do trabalho, estou a conseguir destacar-me. Em Portugal nunca tinha feito uma faculdade, fui mãe muito cedo. E aqui já completei o primeiro semestre de Educação Física.”

Para ficar tranquila só falta o visto permanente. “De seis em seis meses tenho de ir à Polícia Federal colocar carimbos. Apesar das minhas filhas terem dupla nacionalidade, a burocracia não é tão fácil como se dizia: certidões de nascimento para aqui, o papel que afinal não serve para ali, pagar não sei o quê.” Tudo porque nunca casou no papel com o seu “marido” brasileiro. “Talvez fosse mais simples, mas se me obrigam a fazer uma coisa a que tenho direito é que não faço. Em Portugal já tínhamos uma filha e desconfiavam que era um casamento arranjado.” Não seria agora que iam casar. “Quero casar mas se me der vontade.” Alta finança

André Nogueira juntou as duas coisas: a vontade e o visto. Ou melhor, a sua namorada brasileira juntou por ele. Propôs que casassem para arrumar o assunto.

Consultor financeiro em São Paulo, André tem exactamente a mesma idade da capoeirista-recepcionista Cátia, 30 anos, mas vem de um meio muito diferente. Só se conhecem, de raspão, por isto: sempre que André vem ao Rio em trabalho, a empresa aloja-o no hotel de luxo onde Cátia trabalha. Estão em lados opostos do balcão.

Em Março de 2008, André era um jovem consultor de gestão em Lisboa. “Foi quando começaram os sinais da crise internacional, e comecei a pensar em mudar algo na minha vida.” Um dos seus antigos colegas da Universidade Nova já estava a trabalhar no Brasil, André telefonou-lhe e ele indicou-o para um processo de recrutamento. Veio, foi contratado, voltou para tratar da mudança. “O visto foi a coisa mais difícil. Já tinha contrato e esperei quatro meses em Lisboa. É um processo inquietante. A empresa tem de provar que não existe um recurso que possa substituir-me.” Ou seja, um brasileiro que possa desempenhar as mesmas funções.

Já conhecia São Paulo? “Tinha vindo em trabalho e não gostei. Mas vim pela oportunidade. Era um país que estava a crescer muito. As pessoas não sabiam o que era a crise internacional. E depois gostei mais de São Paulo. Eles recebem muito bem, têm óptima disposição.”

Mora perto da Vila Mariana, um bairro simpático, “a seis estações de metro do trabalho ou 40 minutos de carro”, o que para São Paulo é óptimo. Tinha vários antigos colegas na cidade, integrou-se rapidamente. Certa noite uma amiga convidou-o para uma festa de queijo e vinho. “Aí conheci a minha mulher. Saí do elevador, vi-a, apaixonei-me imediatamente e ela também. Nunca mais nos largámos.” Passou de solteiro boémio a noivo. “Não estava à procura de nada, foi totalmente inesperado. Ela é do Rio Grande do Sul, está há sete anos em São Paulo a trabalhar como engenheira química.” Casaram um ano depois.

“Uma das razões foi o visto. Estávamos bem juntos e eu queria sair da empresa onde estava, mas o visto dependia do contrato. Então ela olhou para mim e disse: por que é que não te casas comigo?” Assim foi, sem cerimónia, em São Paulo, e este Verão, com cerimónia, em Lisboa.

Na empresa onde está agora, André dedica-se a petróleo e telecomunicações. O plano dele é aproveitar o mais possível os próximos anos de boom. E depois voltar à Europa.

A mulher tem o sonho de viver em Paris. “Fomos lá e ela tem um jeito tão especial com os franceses que eles se tornam seres suportáveis”, ironiza. “Estamos a pensar ficar no Brasil três anos, poupar dinheiro, e fugir assim que a Copa [de Futebol de 2014] termine, antes da ressaca das obras públicas.” É verdade que ainda haverá os Jogos Olímpicos de 2016, mas André não antecipa um paraíso económico. “A Agência Nacional de Petróleo está a fazer um bom trabalho mas não tem todos os recursos de que precisa. Acho que o dinheiro do pré-sal vai atrasar.”

O pré-sal é uma das esperanças brasileiras: uma faixa de mar com 800 quilómetros entre os estados do Espírito Santo e de Santa Catarina, onde foi descoberto petróleo a 7 mil metros de profundidade, por baixo de uma camada de sal, que segundo os geólogos assegura a sua qualidade. Extraí-lo será uma odisseia. André acautela: “É preciso alguma reserva no optimismo sobre o Brasil. O boom dos últimos anos foi à custa do aumento de preço das commodities, produtos que se podem encontrar em todo o mundo, minério de ferro, por exemplo. Como o Brasil tem muito, vende muito, e o volume de recursos a entrar é significativo. Mas pode ser que a crise na Europa afecte a economia mundial e faça cair os preços das commodities.”

A vantagem do Brasil é o seu tamanho. “O mercado nacional é muito grande e as políticas sociais têm dinamizado essa vantagem.” Trazendo para o mercado milhões de pessoas que antes não podiam consumir.

E enquanto isso, todo um Portugal vai desaguando no Brasil. “É impressionante a quantidade de pessoas que chega. Inimaginável. Ligam-me a perguntar como vir. E no fim de 2010 começaram a chegar famílias, criaram-se grupos no Facebook da nova geração no Brasil.”

Fala um ilegal

A geração anterior é a do cliché das padarias, dos restaurantes, portugueses geralmente sem formação universitária, que vinham “lá da terrinha”, como os brasileiros dizem.

Difícil saber exactamente quantos eram e quantos são agora. Os luso-descendentes ultrapassam 860 mil. Quanto ao número de cidadãos portugueses anda “entre 300 e 400 mil” nos registos consulares, disse ao PÚBLICO o assessor da embaixada em Brasília, Carlos Fino, ressalvando que “esse registo não é obrigatório e muita gente não o faz”.

Portanto o bolo será maior, e se a cada seis meses houver mais 50 mil pedidos de residência, vai crescer radicalmente. A demora dos vistos é uma consequência diplomática das demoras que os brasileiros enfrentaram em Portugal. Num contexto histórico, é o avesso de um império.

Por outro lado, enquanto a crise em Portugal estiver feia, a pressão dos ilegais tenderá a crescer. Gente que vem de férias e fica. Gente que vem para um estágio e fica.

Foi o que aconteceu ao jovem arquitecto Z., que não poderá ser identificado neste texto justamente por estar ilegal no Brasil. Num país que já é a 6.ª economia do mundo e vai ter dois mega-acontecimentos desportivos, finanças e construção são grandes empregadores. Além de gestores, muitos engenheiros e arquitectos portugueses têm vindo ou pensam vir.

Em Junho de 2010, Z. veio para um estágio em São Paulo. Tinha experiência de vários anos num dos maiores “ateliers” de Lisboa. Só conhecia o Rio e o Nordeste e nunca pensara instalar-se no Brasil. “15 dias antes do fim do estágio, comecei a perceber que queria ficar. Já se começava a dizer que as coisas estavam mal em Portugal. E seis meses não tinham chegado para esta escala. As possibilidades eram muito maiores do que em Lisboa. Apaixonei-me por esta coisa que ainda me escapa. Sentia que havia um universo de coisas. Emocionalmente gosto disto, de ser América Latina e lusófono, de poder ser português noutro lugar.”

Era “um desafio e era uma promessa”. Começar do zero. “Ninguém me conhecia.” Mas no Brasil isso é mais fácil do que nos Estados Unidos. Mesmo em São Paulo, sem o “jeitinho” carioca. “E São Paulo tinha coisas que o Rio não tinha. As coisas acontecem cá, há um profissionalismo maior, uma vontade de produzir. O Rio é mais doce e mais mole.”

Terminado o estágio, ligou a uma arquitecta brasileira que estagiara no “atelier” de Lisboa. Anos antes, fora ele a entrevistá-la. Agora era ela a ajudá-lo a conseguir uma entrevista. Ficou como avençado, salário de 5000 reais (dois mil euros), das 9h às 18h.

“Era um daqueles ‘ateliers’ grandes, bonitos, com pessoas simpáticas e interessantes que ditam o gosto vigente, moradias de gente rica, lojas caras.” A arquitectura europeia tem de dialogar com todo um património. “Mas São Paulo é uma cidade novíssima, tudo aconteceu nos anos 40 e 50 com o boom da indústria. É uma cidade que está sempre a mudar.” O que é interessante para um arquitecto. Mas o domínio do dinheiro novo domestica a ousadia. “A questão do dinheiro é muito visível. Moradias com sauna húmida, sauna seca, ginásios, garagens para não sei quantos carros, campos de golfe, campos de ténis.” Casas de vários milhões de reais. “Agora estou a fazer uma com 1900 metros quadrados. O projecto tem de se resolver sempre num determinado cenário. É quase um adocicar dos modelos modernistas, que na altura tinham um enquadramento político.” Niemeyer, um comunista. “É como se esses modelos hoje fossem usados só como imagem, demonstrações de poder, de riqueza.”

Sendo que o “atelier” que trabalha para todos estes milionários “tinha apenas três pessoas contratadas, duas empregadas de limpeza e uma secretária”. Z. não conseguiria um contrato lá para tratar de visto, então resolveu sair para um “atelier” semelhante, mas mais pequeno, que em Janeiro vai começar a resolver com ele o processo de contratação. Ganha agora 6000 reais (2460 euros).

Mas durante todo este ano estar ilegal foi uma tensão. “Dentro do Brasil pedem-me o passaporte só para identificar, mas fico stressado com isso. E não posso ir a Portugal, se não depois como é que entro? Se for apanhado cá dão-me uns dias para deixar o país e depois tenho de ficar seis meses sem voltar.”

Casar é uma opção? “Se estivesse a namorar com alguém, pensaria casar para ter o visto. Mas não casaria só para ter o visto, não montaria um teatro.” Conhece quem o tenha feito, e há sempre o risco das vistorias: vêem os armários, fotos de férias, falam com os porteiros.

Mas ao contrário de André, Z. quer ficar. “Não me importava de me tornar brasileiro. Há coisas de que sinto falta: uma comida, ou ir para uma esplanada sem ser como consumidor. Mas nada que me ocupe muita a cabeça.”

Ainda divide casa com mais dois portugueses, outro arquitecto e uma assessora de empresa. Quatro assoalhadas no chique Jardim Paulista pelas quais pagam 3900 reais (1600 euros). Em Portugal morava sozinho numa casa maior. Mas em Portugal, diz Z., fala-se em 40% de desemprego entre os arquitectos.

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