quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Constitucionalizar os limites ao défice é um golpe de Estado contra a democracia




Daniel Oliveira – Expresso, opinião, em Blogues

Um candidato apresenta-se com um programa que aposta no investimento em contraciclo para nos tirar da crise. O eleitorado, verificando o desastroso resultado económico e financeiro de pacotes de austeridade atrás de pacotes de austeridade, dá-lhe a vitória. Pode o primeiro-ministro aplicar o programa sufragado pelo povo? Não pode. A lei proíbe-o. Porque um governo anterior (circunstancial, como todas os governos) assinou um acordo com países estrangeiros que define, para todo o sempre, um programa ideológico com força de lei quase irrevogável. Sem o referendar. Sem nunca o ter sujeito à vontade popular. Sem sequer mudar os tratados europeus.

Definir, independentemente das circunstâncias económicas e orçamentais de cada momento, um limite ao défice de 0,5% (que tendo em conta os custos da divida obriga, na realidade, e em plena recessão, a um superavit impossível de conseguir) é mais do que uma imbecilidade. É sinal de um poder político ensandecido. Colocar isso na Constituição ou numa lei com constrangimentos semelhantes é um golpe de Estado contra o futuro da democracia. Fazê-lo sem ouvir os portugueses é ilegítimo. Os deputados eleitos não têm legitimidade para tomar uma decisão que determina, com força de lei, os programas dos próximos governos sem que estes a possam vir a alterar. Nem a mais desesperada situação financeira (que esta medida só agravará) justifica este aborto constitucional. Ainda mais quando se sabe que, pelo menos enquanto estivermos em recessão económica, não o poderemos cumprir sem aldrabar as contas. Até porque os défices não dependem exclusivamente dos governos. Dependem, por exemplo, da receita fiscal e esta depende da situação económica.

Comparar isto com a assunção de dívida é pôr a lei fundamental e os constrangimentos económicos e orçamentais no mesmo patamar. Um relativismo político que ninguém que defenda o Estado de Direito Democrático pode aceitar.

É bom que o PS não repita o numero do "agarrem-me se não eu voto a favor" do costume. Se aceitar qualquer norma legal deste género (na Constituição ou em leis "paraconstitucionais", como disse o primeiro-ministro) ficará para sempre refém da direita. Não é apenas a sua já tão duvidosa utilidade como alternativa ao PSD e CDS que fica posta em causa. É a de qualquer maioria futura que queira travar esta loucura austeritária. Ou seja, é a democracia que fica sequestrada por este momento de delírio coletivo.

É bom percebermos que um limite constitucional (ou semelhante) ao défice não é um pormenor. Governar é, antes de tudo, gerir um orçamento e usar todos os instrumentos financeiros necessários para aplicar uma determinada política. Se isso fica interdito a governos futuros é a governação que lhes está vedada. É o nosso voto que se transforma num formalismo inútil. Quem queira seguir um caminho diferente só o poderá fazer conquistando uma maioria de dois terços no Parlamento ou subvertendo a ordem constitucional vigente. É o futuro da nossa democracia que está a ser capturada por gente sem espinha dorsal. Apenas porque a Alemanha assim determinou. Com o aplauso de radicais que querem ver a sua agenda ideológica defendida, através da Constituição, de qualquer derrota eleitoral futura.

Muita gente, indo com a onda da moda, vê a ideia com bons olhos. Provavelmente a mesma que não se incomodou com as Parcerias Público-Privadas, que eram muito modernas, com o uso dos fundos comunitários para fazer de Portugal o País com mais quilómetros autoestrada da Europa (proporcionalmente à sua dimensão), com o Euro 2004 ou com a compra de submarinos inúteis. Ou não se lembram que para ter votos era preciso " ter obra"? É bom recordar que nada é mais volúvel do que a opinião pública. E é por isso que todos os cuidados são poucos quando se decidem coisas que não têm retorno. Sobretudo quando se está em estado de necessidade. Uma democracia que não se defende dos momentos de histeria coletiva está condenada a ter vida curta.

Termino com as palavras de Cavaco Silva, em Agosto deste ano: "Constitucionalizar uma variável endógena como o défice orçamental - isto é, uma variável não diretamente controlada pelas autoridades - é teoricamente muito estranho". Esperemos que seja coerente.

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