quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A MALÁRIA MATA MILHÕES PORQUE SOMOS IDIOTAS




LEONARDO SAKAMOTO* – BLOG DO SAKAMOTO

Morreu, nesta segunda (26), uma diplomata brasileira que contraiu malária em uma missão na Guiné Equatorial em novembro passado. Ao que tudo indica, houve demora no diagnóstico, na internação, no início do tratamento. E, pode ser que tenha havido também falta de informação. Tanto que o próprio Ministério das Relações Exteriores avisou que vai intensificar a divulgação “de medidas profiláticas e de identificação de sintomas”, através de uma nova cartilha a ser criada.

Acompanho com interesse casos de malária desde que peguei a dita duas vezes em reportagens fora do Brasil. E fico bem amuado quando recebo a notícia de que alguém se foi por conta dela, talvez por entender o que a doença significa, talvez pelo fato de que ninguém precisaria morrer por malária se agissemos mais firmemente na prevenção e cura.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 655 mil pessoas morreram, em 2010, pela doença em todo o mundo. Outras centenas de milhões de pessoas devem tê-la contraído, uma vez que ela é endêmica em mais de 100 países – na quase totalidade, regiões pobres do planeta.

É claro que a relação de Casos letais/Investimento em cura é maior nas doenças que acometem a parte rica da população do que a parte pobre. A pesquisa para a busca da cura do câncer recebe muito mais que pesquisas para doenças causadas por parasitas que afetam multidões. Prova disso foi dada pela OMS, neste mês de dezembro, quando divulgou seu relatório anual sobre a doença, ao informar que o número de casos caiu drasticamente devido a recursos financeiros que permitiram acesso a prevenção e tratamento. O financiamento contra malária foi de US$ 1,7 bilhão, em 2010, e US$ 2 bilhões, em 2011. A organização estima que se fossem aportados, por ano, algo entre US$ 5 bi e US$ 6 bi, poderíamos zerar as mortes pela doença. Uma mixaria, se comparado ao investimento em outras pesquisas. E, para piorar, agora, com a crise econômica, a OMS teme que os montante de recursos diminua.

Peguei minha primeira malária em 1998, quando cobri a guerra pela independência de Timor Leste. Tinha recebido autorização para passar uns dias em um acampamento da guerrilha na selva. Comecei a passar muito mal ainda em Timor e fiz a pior viagem de avião da minha vida entre Jacarta e São Paulo. Febre alta, enjôo, sensação de ter tomado cacetada nas juntas por parte da polícia militar na saída de estádio de futebol. Chegando no Brasil, uma longa internação, com os olhos tingidos de cor-de-ovo-de-galinha-caipira, perda de peso, fora os delírios e a freqüente visita de estudantes de enfermagem para poder conhecer, vejam só, um caso avançado da doença. Tudo coroado pelos efeitos do quinino na vida sexual – ainda que temporários – frisemos.

No ano seguinte, durante a cobertura da guerra civil angolana, peguei a dita de novo. E de novo o maldito plasmódio falciparum – bicho ruim, ave do tinhoso, coisa do tranca-rua – que dos tipos de malária é o que mata mais rápido e ligeiro. Pelos cálculos, devo ter pego a pereba em Calulo, província de Cuanza Sul, quando visitava uns campos de refugiados. Considerando que lá é terra da famigerada mosca tsé-tsé, aquela sirigaita que causa a doença do sono, até que fiquei no lucro só com a febre terçã maligna. Lembrando da experiência agradável do ano anterior, resolvi voltar para o Brasil mais cedo a ter que ficar mais uma semana nos belos hospitais de Angola.

Sorte que tive acesso aos melhores médicos, diagnósticos, remédios e tudo o mais. Sorte também que sou encanado com assuntos de saúde (para não dizer hipocondríaco, e estava de olhos nos sinais atentando para as piores possibilidades). E os casos graves, da maioria da população, que não têm esses recursos e são obrigados a esperar por tratamento nem sempre à mão, nem sempre rápido?

Estudos, como o publicado tempos atrás na revista científica Emerging Infectious Diseases, reforçam que o desmatamento na floresta amazônica aumenta a incidência de malária. Nessa pesquisa, uma mudança de 4,2% de aumento no desmatamento foi associada a um aumento de 48% na incidência de malária.

Ou seja, a ocorrência é mais intensa em regiões de fronteira agrícola, no contato do ser humano com áreas preservadas. E a periferia do mundo ainda tem muita floresta para ser vítima da motosserra, vítima de nosso modelo de desenvolvimento que, em última instância, é o grande responsável por tudo isso. O Ministério Público Federal no Pará aponta o aumento nos casos de malária como uma das consequências da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo.

Avançar sem prever os efeitos negativos. Se bem que, no ritmo que andam as coisas, em breve talvez não haja mais floresta para contar história. Se isso acontecer, também não teremos que nos preocupar com mosquitos. Aliás, com nada mais, porque o planeta terá se transformado numa caldeira quente e a vida como conhecemos terá ido para o beleléu.

Retomo o que já disse antes sobre o assunto: se houvesse mais investimento, teríamos uma solução mais rápida. O Brasil tem desenvolvido importantíssimas pesquisas nesse assunto e é referência no tema. Globalmente, contudo, seguimos na velocidade de investimento de doença de pobre. O mais triste é que não está se pedindo tanto recurso assim. Tanto do ponto de vista de prevenção (os baratos mosquiteiros, por exemplo), quanto para tratamento e informação à sociedade.

De uma maneira geral, parte da população vive no século 21 da medicina, enquanto outros ainda engatinham pela Idade Média das filas em hospitais, dos remédios inacessíveis, da falta de saneamento básico e da inexistência de ações preventivas. Na prática, quem consegue jogar xadrez com a Dona Morte e enganá-la por um tempo são os mais ricos, que possuem os meios para tanto. Os mais pobres, por mais que tenham força de vontade e queiram continuar vivendo, não necessariamente conseguem a façanha. Vão apenas sobrevivendo, apesar de tudo e de todos, ajudando com seu trabalho e, algumas vezes, como cobaias de indústrias farmacêuticas, os que ganharam na loteria da vida a terem uma existência mais feliz.

* Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

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