António Fernando Nabais - Aventar
No Público de hoje, surge um balanço acerca do impacto do Acordo Ortográfico nas escolas. Como tenho a intenção de escrever uma série de textos sobre o assunto, em Janeiro, limitar-me-ei, para já, a comentar alguns passos da reportagem.
Ana Soares: “Podemos ter questões pessoais [em relação ao acordo] mas estamos revestidos de uma obrigação perante a sociedade.”
É absolutamente inaceitável que alguém tenha “questões pessoais” em relação ao acordo, independentemente de ser contra ou a favor. Não é aí que reside o problema. Concordo plenamente com o facto de termos “uma obrigação perante a sociedade”. É, portanto, fundamental que sejam apresentados argumentos, desde que assentem em dados linguísticos ou pedagógicos, o que não acontece com os todos os que defendem o acordo e com alguns dos que o criticam. O Acordo deve ser revogado, como deve ser impedida a construção da barragem do Tua.
”Com os estudantes – que “têm o traço próprio da juventude, que é o de contestar” –, Fátima Gomes fez um trabalho de enquadramento, “mostrando que palavras que hoje são comuns também foram no passado muito contestadas”.
Fátima Gomes cai no erro simplista de reduzir as críticas à resistência a tudo o que é novidade, como se se pudesse reduzir as virtudes da novidade ao facto de haver resistências ou críticas. Não chega. Trata-se, apenas, de uma maneira de não argumentar.
“Algumas bases são extremamente subjectivas”, diz. “Sobretudo no que diz respeito ao uso do ‘p’ e do ‘c’, em que, em muitos casos, a pessoa pode escrever conforme lhe apetecer. Se disser Egito escreve sem ‘p’, mas se disser Egipto escreve com ‘p’.
Mesmo Nuno Almeida, defensor do AO, lamenta a “existência das alternativas”, que não deveriam constar de um documento normativo. Mas concorda com a coexistência de formas como “bebê” e “bebé”, por exemplo, porque correspondem a duas maneiras de dizer a palavra, tal como concorda com a possibilidade de escrever “caraterística” ou “característica” para “representar casos de evolução fonológica ainda não completamente consolidados”
Nestes dois excertos, temos em comum a referência ao carácter facultativo de algumas grafias, graças à ligação entre ortografia e fonética. Resumidamente: há palavras que podem ser escritas de maneira diferente, dependendo do modo como o falante as pronunciar. Sem querer avançar muito mais, e no que se refere à actividade docente, pergunto-me como deverá um professor corrigir trabalhos de alunos sem saber como é que estes pronunciarão determinadas palavras, problema agravado no caso da classificação de exames nacionais, ocasião em que é obrigatório o anonimato dos examinandos. Para além disso, este Acordo contribuirá, decerto, para expandir a principal fonte de erros ortográficos, ao vulgarizar a ideia de que se deve escrever tal como se pronuncia.
Na segunda citação deste último bloco, é curioso como Nuno Almeida, defensor do Acordo, reconhece, implicitamente, que não há – nem nunca haverá – uniformização ortográfica (para não falar de questões sintácticas e lexicais) entre Portugal e o Brasil, ao referir o exemplo de “bebé” e de “bebê”, um entre muitos outros que impedirá que se possa escrever exactamente da mesma maneira em todos os países lusófonos, tornando inútil este Acordo Ortográfico e, provavelmente, qualquer outro.
Em síntese: ainda há muito para dizer sobre mais um dos muitos disparates que os gabinetes políticos e universitários deitam sobre um rebanho falante que aceita tudo porque “tem de ser”.
2 comentários:
A questão é a seguinte: todos os pareceres (excepto um assinado por um dos autoress do dito acordo) são fortemente negativos, nomeadamente um da Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário.
Onde é que estão os estudos que levaram a que o ministério e a ministra Alçada resolvesse ignorar esses pareceres, nomeadamente o do próprio ministério?
As razões linguísticas para a rejeição do acordo estão em todos os pareceres - e apenas falta saber, como se diz no comentário acima, o motivo de terem sido ignorados.
Mas, quando o Malaca Casteleiro diz coisas como esta, "É que isto [o acordo] não é uma questão linguística, é uma questão política" (expresso, 29 de Fevereiro de 2008 fica-se a pensar.
Quanto às obrigações perante a sociedade, elas começam pelo lisura de procedimentos. Os professores conhecem os estudos que levaram a que fossem ignorados pareceres negativos de entidades oficiais? Existem tais estudos? Se existem que sejam mostrados, como é o mais elementar dever em democracia. Se não existem, em quê se baseou a decisão de impor a um povo uma ortografia com milhares de alterações - facto inédito no mundo inteiro?
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