sábado, 10 de dezembro de 2011

O REGRESSO DA IDEOLOGIA




PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS – JORNAL DE NOTÍCIAS, opinião

Em 2010, Portugal foi o melhor país do mundo no combate à mortalidade infantil. Estávamos também na vanguarda mundial do crescimento do trabalho científico produzido pelas universidades, seguíamos à frente no desenvolvimento das energias renováveis, na sofisticação de aplicações electrónicas em serviços públicos e atividades económicas ou na investigação das nano-tecnologias. Tínhamos conquistado nos últimos anos, três prémios do topo do "ranking" da cultura mundial, um na literatura e dois na arquitetura. Em 2008 conseguimos atingir as metas de equilíbrio orçamental impostas pela união monetária, cujo cumprimento também a Alemanha e a França tinham falhado.

Parecia que tudo mudara num país que emergiu apenas em 1974, da mais arcaica e persistente ditadura da Europa Ocidental, que ficou paralisado durante meio século por um regime político saído da família dos fascismos que massacraram a Europa do século XX, um país que por fim se iria enredar numa guerra colonial obsoleta que ditou a certidão de óbito da ditadura. Há 50 anos, quarenta por cento da população portuguesa era analfabeta, isto é, em cada cinco portugueses adultos, dois não sabiam ler nem escrever. Como sublinha Ana Sousa Dias, na edição de ontem do JN, a propósito da divulgação dos dados do "Censos 2011", "é no grau de instrução que o país se revela mais mudado": só nos últimos 20 anos, o número de portugueses habilitados com um curso superior aumentou mais de 4 vezes. Enfim, o regime democrático assumia o protagonismo de uma história de sucesso reconhecida e reivindicada quer pelo governo quer pela oposição, e constituía-se num caso de sucesso também reivindicado pela própria União Europeia que nele reconhecia a demonstração do acerto das suas políticas e um testemunho exemplar da solidariedade dos seus povos.

Entretanto, ao longo dos últimos oito meses, o passado desapareceu, a memória parece ter-se apagado, as expectativas baralharam-se e confundiram-se fazendo descer uma cortina opaca sobre o futuro, e o presente, subitamente, encolheu e inverteu-se como por efeito de um espelho. Esta mudança brutal não começou em Março com o discurso do Presidente da República - a sua tomada de posse apenas assinalou o encerramento do ciclo das eleições presidenciais. A mudança começa no mês seguinte com a rejeição pela Assembleia da República de mais um Plano de Estabilidade e Crescimento que até já contava com a prévia concordância dos parceiros europeus. Mas a verdade é que o Governo tinha de cair e só mesmo José Sócrates se obstinava na fantasia de que um Governo minoritário conseguisse sobreviver até ao fim da legislatura. Caiu o Governo e a legislatura rompeu-se numa espiral incontrolável onde se foram somando aos efeitos da crise internacional, a nossa endémica debilidade financeira e uma crise política que iria por fim abrir um novo ciclo eleitoral. A partir daqui, será o triunfo de uma liderança jovem no maior partido da oposição, que vai ditar o rumo por onde prosseguimos a nossa peregrinação coletiva.

Quando o presidente dissolveu a Assembleia da República e convocou eleições legislativas não desejava e muito menos conseguia antecipar o que viria depois, à semelhança, porventura, de muitos outros nas fileiras do PSD e do CDS. Tão pouco o PCP ou o BE que, solícitos, puseram os seus votos ao serviço das ambições da jovem liderança "social-democrata". O primeiro, talvez, por imprudência, os últimos, talvez, pela lógica cega do "quanto pior melhor". Mas todos vieram já protestar as suas íntimas convicções e manifestas divergências, embora ninguém possa acusar a nova direção do PSD de ter ocultado a doutrina neoconservadora, alinhada pelas modas da Escola de Chicago, que foi a bandeira de uma proposta prematura de "revisão constitucional". Nem ignorar o sentido óbvio da repetida afirmação de Pedro Passos Coelho, de que pretendia ir além do "memorando de entendimento" com a "troika". E assim, enfrentamos a mais séria crise da nossa democracia e de toda a história da construção europeia, entregues a uma governação experimental que ilude a sua aflitiva insegurança no aconchego de velhos dogmas doutrinais.


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