MARTINHO JÚNIOR, Luanda
Desde 4 de Abril de 1949, o dia da sua fundação, que a NATO está directa ou indirectamente presente em África, fazendo sentir sua actividade da forma mais sangrenta, conforme aliás o caso recente da Líbia!
A situação na Líbia levou a uma intervenção declarada da NATO sem que os parlamentos dos componentes da organização se tivessem manifestado no sentido de melhor legitimar a acção “encomendada” pela Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, do qual poucos faziam parte.
Nos Parlamentos dos países europeus que compõem a NATO, também não houveram questionamentos nem sobre o destino do dinheiro líbio, espalhado por Kadafi em tantos “bancos ocidentais”, nem sobre os crimes contra a humanidade que, directa ou indirectamente a NATO vem cometendo década após década, culminando agora com os “bombardeamentos humanitários” na Líbia!
Assim, foram os governos que tomaram, ou não a decisão de “alinhar”.
De acordo com Alexandre Reis Rodrigues, no artigo “A intervenção da NATO na Líbia. Ficção?” – http://www.jornaldefesa.com.pt/conteudos/view_txt.asp?id=871, a NATO correspondeu a estímulos sobretudo da Grã Bretanha e da França, as velhas potências coloniais de maior dimensão em África, com o alinhamento de outros numa menor escala:
“O secretário-geral da NATO não hesitou afirmar, aliás repetidamente, que a Aliança estava pronta para intervir na Líbia, ao abrigo da Resolução n.º 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mesmo quando todos sabiam que havia Estados membros que se oponham ou tinham reservas.
Mais uma vez esqueceu que a Aliança é apenas aquilo que os seus Estados membros querem que seja; nunca aquilo que ele, no seu voluntarismo deslocado, acha que deveriam querer.
Já estranhei anteriormente que, não estando devidamente fundamentado, tivesse tomado essa posição; também estranho, obviamente, que os estados membros permitam que continua a fazer pouco ou nenhum esforço para reflectir o consenso existente e interpretar a vontade do colectivo.
É um mau serviço que presta à organização que devia defender de situações delicadas que afectam a sua já abalada credibilidade.
Na verdade, a situação ainda é pior do que se imaginava inicialmente.
Entre os 28 membros, apenas 14 estão a participar activamente na operação mas, na prática, são apenas a França e o Reino Unido que estão a assumir os ataques ao solo (com a participação do Canadá, Dinamarca e Noruega, esta apenas em ataques a bases aéreas); Holanda, Suécia e Qatar, por exemplo, limitam-se a fiscalizar a exclusão de voo, o que foi prioridade apenas na fase inicial do conflito.
Aliás, Khadafi, para lidar militarmente com rebeldes tão mal equipados e organizados, não precisa de muita coisa, muito menos de aviação, o que aliás não era difícil de prever e tem ficado claramente comprovado.
A imposição da zona de exclusão aérea, de momento, interessa sobretudo como parte do embargo à entrada de armamento, juntamente com o dispositivo de 18 navios; não é o que mais falta faz para o desfecho da crise na perspectiva pretendida”…
Será este tipo de utilização da NATO um assunto novo?
De certo modo não, nada é novo nas intervenções da NATO em África!
Como a NATO tem sido utilizada então em África?
Na maioria dos casos, a NATO está presente por que os seus componentes, mesmo agindo isoladamente, utilizam os mesmos meios, equipamentos, armamentos, técnicas e tecnologias, tácticas e estratégias disponíveis na Aliança!
Desde quando é que tal acontece?
Desde praticamente o primeiro dia da formação da NATO, a 4 de Abril de 1949!
Como se pode comprovar?
1 ) O armamento empregue pelos britânicos para sufocar a revolta contra a opressão colonial dos Mau Mau no Quénia, entre 1952 e 1960, era armamento adoptado pela NATO, incluindo os aviões de ataque ao solo North American T-6 Texan, que utilizavam bombas de 20 lbs!
É evidente que, além da sua efectividade, a aviação militar britânica no Quénia foi um elemento psicológico de “primeira linha”, utilizado contra os rebeldes da altura.
2 ) A 2ª potência colonial a utilizar os T-6 em África foi a França, durante a guerra da Argélia, de 1 de Novembro de 1954 a 19 de Março de 1962 (“Algerian War” – http://en.wikipedia.org/wiki/Algerian_war).
Foi uma guerra sangrenta, que terá causado cerca de um milhão de mortos argelinos.
Os T-6 constituíram um dos meios operacionais da Aviação Militar Francesa empregue nos ataques ao solo; nesses ataques houve por vezes o emprego de napalm.
3 ) De 23 de Outubro de 1957 (fez agora 54 anos) a 30 de Junho de 1958, as forças espanholas de Franco combateram contra a tentativa de libertação nacional em Ifni (“Ifni War” - http://en.wikipedia.org/wiki/Ifni_War).
Dum lado estiveram as forças espanholas e francesas comandadas por López Valência (computadas em cerca de 10.000 efectivos), do outro, o Exército de Libertação de Marrocos, comandado por Bem Hamu, com cerca de 30.000 combatentes.
Os aviões de ataque ao solo Harvard T-6 foram empregues e contribuíram para a morte de 8.000 efectivos marroquinos e para a sua derrota.
A “estreia” foi na Baixa do Cassange, (“a guerra de Maria”) em Janeiro de 1961 e em Março em Gombe ya Muquiama, Nambuangongo e por todo o norte de Angola.
Os T-6 foram utilizados pela Força Aérea Portuguesa de 1961 a 1975 nos três teatros operacionais (Angola, Moçambique e Guiné Bissau), até ao fim do colonialismo.
Em 1951 foram recebidos mais 20 aviões, ao abrigo um protocolo de defesa entre Portugal e os Estados Unidos, do tipo T-6G Texan.
A Aviação Naval recebeu em 1950, oito aviões SNJ-4, a versão utilizada pela Marinha dos Estados Unidos.
Em 1952, todos esses aviões foram integrados na Força Aérea Portuguesa que os reuniu na Base Aérea Nº1, utilizando-os na instrução de pilotagem. A FAP também decidiu uniformizar todos esses aviões modificando-os para versão T-6G.
O apelido Texan nunca foi usado em Portugal.
Dado que os primeiros aviões eram da versão canadiana, ali denominada Harvard, todos os T-6 portugueses, independentemente da origem ficaram conhecidos por T-6 Harvard.
O número de unidades em serviço foi sucessivamente aumentado. Um total de 257 T-6 serviu as Forças Armadas Portuguesas, fazendo o que faz dele o modelo de aeronave militar com o maior número de unidades de sempre a servir Portugal.
No inicio da Guerra do Ultramar, em 1961, foram enviados para as três frentes onde desempenharam um bom papel.
5 ) Durante a secessão do Katanga, entre 1960 e 1963, os mercenários belgas, britânicos franceses, portugueses, rodesianos e sul africanos ao serviço de Moisés Tshombé utilizaram também T-6 na força aérea improvisada, tirando partido de sua versatilidade.
«Dois exércitos mal armados, com roupas civis, viajando em carros particulares... Uma guerra de brincar, mas que fazia centenas de milhar de mortos, recorda.
Os aviões eram aparelhos recuperados a outros conflitos: bombardeiros B-25 do tempo da II Guerra Mundial ou Fokker Friendship, de transporte, armados com engenhos explosivos instalados em extintores vazios, depois empurrados à mão pelas portas dos aviões.
Mais tarde, o exército federalista haveria de ter vários MIG 15 e 21, bem como bombardeiros Ilyushin.
Naquela altura, contudo, era assim dos dois lados, explica.
Um dos Fokker veio a rebentar no ar e então Gil Pinto de Sousa teve sorte.
Convidaram-me a ir bombardear Lagos como co-piloto. Mas havia todas as noites uma festa no apartamento de um de nós e, naquela noite, era no meu. Não fui, recorda.
Pinto de Sousa volta então a Portugal, três meses depois, para concorrer a piloto da TAP. Recusado por suposta psicose de guerra, vai primeiro trabalhar como piloto de mondas químicas no Alentejo. Está já na Guiné-Bissau, como comandante dos Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa, quando o chamam de Lisboa.
Disseram-me: Temos em Tires uns T-6 abatidos da Guerra da Argélia para mandar para o Biafra. Alinhas? E eu alinhei.
E então começa a sua segunda aventura africana – aquela que não pode nunca esquecer.
Ao todo, eram cinco os pilotos destinados ao Biafra: Artur Alves Pereira, José Peralta, Armando Cró, José Manuel Pignatelli e ele próprio.
A posição de Portugal quanto ao conflito na Nigéria era uma extensão da delicada política de equilíbrios gerida por Salazar desde a II Guerra Mundial: Lisboa estava tacitamente ao lado do Biafra, a quem fornecia bens alimentares em troca de sal e petróleo, mas vendia armamento a Lagos, em especial espingardas Mauser.
Estes homens, porém, não agiam em nome de Portugal – agiam em nome próprio e no da sua sede de aventuras.
Cró desiste antes de partir para Abidjan, a base aliada onde os T-6 deviam fazer escala, e Peralta não chega a deixar a Costa do Marfim.
Pignatelli, Alves Pereira e Pinto de Sousa, pelo contrário, partem para o Biafra a 1 de Novembro de 1969, em direcção a Uli-Ihala, no centro da faixa de 100X50 km a que as forças de Lagos já haviam reduzido o território rebelde. Só os dois primeiros, contudo, levariam a viagem até ao fim.
Eu fui o último a arrancar – e perdi-me. Não tinha instrumentos e não consegui encontrar a pista. Ainda fiz alguns quadrados de reconhecimento, mas nada, conta.
É então que, sem combustível, abandona o avião.
Nunca tinha saltado na vida e sabia que podia cair em território inimigo. Senti muito medo, conta. À procura da orla da mata, preocupado em ir ao avião destruir alguns documentos importantes, é descoberto por uma mulher que começa aos gritos”…
7 ) A Força Aérea da Rodésia do Sul existiu entre 1935 e 1980, tendo inclusive participado na IIª Guerra Mundial.
Durante as acções de contra guerrilha, as forças de Ian Smith empregaram nas acções de ataque ao solo, entre outros, aparelhos T-6.
De notar que o movimento de libertação actuou contra o colonialismo (regime de Ian Smith) e o “apartheid”, pois o governo da Rodésia estava intimamente associado ao regime do “apartheid” na África do Sul.
8 ) Os países africanos que possuíam T-6 na sua frota militar foram a África do Sul, a República do Congo, o Gabão, Marrocos, Moçambique, a Rodésia, a Tunísia e o Zaíre do regime de Mobutu!
Em quase todos eles os T-6 cumpriram missões operacionais de ataque ao solo.
A África do Sul, em parte devido às restrições movidas contra o regime do “apartheid”, utilizou aviões Harvard T-6 até 1995.
Na guerra da Coreia a África do Sul teve presente um contingente da sua Força Aérea; nessa altura, nessa guerra, foram também empregues aviões Harvard T-6, muito provavelmente também pela Força Aérea da África do Sul.
Nas operações contra os países da Linha da Frente (de 1966 a 1989), os T-6 foram servindo como aviões de treino básico, só sendo substituídos nessa função, totalmente, em 1995, pelos Pilatus PC-7.
Os aviões T-6 são duma tecnologia de sua época, que mesmo assim foi aplicada durante quase 50 anos a África pelas antigas potências coloniais sobretudo, mas também por regimes como o do “apartheid”, de Mobutu e da Rodésia de Ian Smith!
Hoje os céus de África assistem ao carrossel de bombas que são lançadas pelos mais modernos aviões disponíveis que conformam a NATO e o AFRICOM, alguns deles “drones”, não tripulados.
Das águas territoriais italianas junto à ilha de Lampedusa, a frota de NATO alvejou o que quis e quando quis, nas cidades costeiras líbias, alvo principal de sua investida dita “humanitária”!
Quando os africanos aprendem a lição?
É evidente que esses exercícios, que foram presenciados pelo Presidente Pedro Pires e o então Primeiro Ministro, José Maria Neves, trouxeram ensinamentos também para esta campanha da Líbia, tal como para as acções que se desenvolverão em sequência, na Líbia e no Sahel.
Cabo Verde foi escolhido tendo em conta as afinidades dos cenários das ilhas com os cenários dos futuros objectivos da NATO em estreita coordenação com o Pentágono (Afeganistão, Iraque e Líbia).
Cabo Verde assumiu assim um papel contraditório com o passado: os guerrilheiros do movimento de libertação que lutaram na Guiné Bissau integrados no PAIGC, entre eles Pedro Pires, lutavam contra efectivos portugueses armados com material de guerra de origem NATO, tendo sofrido bombardeamentos aéreos, inclusive por parte de aviões T-6!
Kadafi nasceu há 70 anos em Sirtre, quando a Líbia estava sob ocupação colonial Italiana e morre agora, da maneira mais bárbara e sem julgamento, quando a Líbia está sob intervenção da NATO!
Será que isso diz alguma coisa a Cabo Verde?
Não foi de admirar que o governo de Cabo Verde, também sem rectificar pela sua Assembleia, tivesse tão rapidamente reconhecido o Conselho Nacional de Transição, exemplificando o papel submisso dos africanos face àquela Organização e ao “diktat” neo colonial!
Não lembrar o passado, é meio caminho andado, em África, para o abismo neo colonial!
Também nesse aspecto, em África como na América Latina, os erros de apreciação estratégica pagam-se caro!
*Foto: Anders Fogh Rasmussen, o condor que passa!