segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

POBRE PRESIDENTE




Alberto Gonçalves – Diário de notícias, opinião

Um dia, é o primeiro-ministro que agradece a "discreta mas importante intervenção" do presidente da República no acordo chamado de concertação social. No dia seguinte, é o presidente da República que, voluntária ou involuntariamente, decide sabotar qualquer esforço de concerto, com "c" ou com "s".

A esta hora, já toda a gente conhece as declarações de Cavaco Silva sobre os seus ganhos e os seus gastos, as quais, a bem da clareza, merecem um par de ajustes face às paráfrases sarcásticas ou indignadas que circulam por aí. Cavaco Silva não afirmou que a sua reforma é de 1300 euros por mês, mas que a sua reforma enquanto professor universitário e investigador na Gulbenkian é de 1300 euros por mês (se juntarmos a do Banco de Portugal, a coisa parece ascender aos 8 mil). Cavaco Silva também não afirmou que não consegue pagar as despesas pessoais, mas que necessita de recorrer às poupanças que realizou para complementar os rendimentos periódicos.

De resto, é escusado distorcer as declarações em causa para torná-las absurdas. Há absurdo suficiente quando o chefe de um Estado falido e cujos cidadãos ganham, se ganharem de todo, uma média de 700 ou 800 euros, se lamenta de que 9 mil euros mensais não chegam para uma existência decente. A maçada, claro, não são os montantes: são os lamentos. Não acho que Cavaco Silva deva regular o nível de vida pelos padrões de quem aufere dez vezes menos, nem que se deva envergonhar das pensões que lhe cabem por direito, nem sequer que deva cair na recusa demagógica do respectivo salário (em que aliás caiu). Acho apenas que lhe convinha ter uma noção, ainda que vaga, do cargo que ocupa e daquilo que o rodeia. No mínimo, a tentativa de se aproximar do homem comum na pobreza material levou Cavaco Silva a suplantá-lo em pobreza de espírito.

Tamanho delírio custa mais porque a distância entre a classe política e o mundo real esteve precisamente na origem das loucuras que nos trouxeram à desgraça vigente. Após suportarmos governantes que cantaram loas à prosperidade enquanto esfarrapavam o país, dispensava-se um PR que admite a crise enquanto ignora as condições do país que a sofre. Após suportarmos a regular opinião de lunáticos que condenam a austeridade como se houvesse alternativa, dispensávamos um PR que confunde austeridade com abundância. Após suportarmos a popular lengalenga de que estrangeiros sombrios conspiram para esmagar uma nação inocente, dispensava-se um PR que atribui às agências de rating todos os males da pátria, não por acaso o que Cavaco Silva fez na exacta intervenção em que chorou a minguada reforma.

Por distracção ou inconveniência gerais, o escândalo subsequente ao segundo disparate abafou o primeiro. Dado que ambos são inseparáveis, foi pena: seria útil notar que, graças aos vultos políticos de que dispõe, Portugal é perfeitamente capaz de se desgraçar sozinho.


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