Antonio Lassance – Carta Maior
O Judiciário não pode ser um bom xerife. Na berlinda, enfraqueceu sua relação de confiança com os cidadãos desde que limitou a atuação do CNJ, o xerife do xerife. Mesmo tendo melhorado sua pontaria, suas armas são de curto alcance. Caça corruptos, mas continua a tratar corruptores como vítimas.
Dada a ausência de uma reforma política mais ampla, o Poder Judiciário tem atuado como uma espécie de xerife da política brasileira. Suas armas são a regulamentação dos pleitos eleitorais e, principalmente, o julgamento de casos concretos, que determinam a inelegibilidade ou impugnação de pré-candidatos ou mesmo a cassação de eleitos.
Em época de eleição, os inúmeros escândalos e o clamor por providências vão parar nos tribunais eleitorais. Neles se deposita a maior dose de cobrança para que os abusos sejam coibidos e quem os pratica seja punido. É uma tarefa inglória, como a de acabar com pernilongos batendo palmas.
Essa condição de xerife será reforçada com a Lei da Ficha Limpa, que ainda aguarda decisão final do Supremo sobre como será sua aplicação às eleições municipais deste ano. Benéfica em vários sentidos, a lei é limitada como remédio. Trata, mas não cura muitos males: o poder de muitos acusados em barrar investigações, a dificuldade na obtenção de provas e de sua aceitação como evidências incontestáveis, a morosidade dos processos até que ocorra a condenação em segunda instância, e o fato de que a corrupção política é capaz de sofrer mutações justamente para sobreviver ao antibiótico.
Além disso, o "controle de qualidade" na condução dos negócios públicos está em mãos de cúmplices de maracutaias escabrosas. Comprovar um crime depende de uma denúncia, o que, por sua vez, depende de um caluniador, ele próprio um malfeitor em quem não se pode confiar. É só quando uma serpente abre a boca que caem as poucas gotas para míseros frascos de soro antiofídico.
Como se isso não bastasse, mais preocupante é o fato de que uma das raízes da corrupção no país não é tratada como crime. Ao contrário, é regra. Trata-se do financiamento privado de campanha. Isso afeta o controle de qualidade da política que, por excelência, numa democracia representativa, deve ser feito pelas eleições.
O sistema eleitoral brasileiro não só permite como premia candidatos que são hábeis em amealhar recursos privados. O financiamento empresarial para candidaturas tem o eufemístico apelido de “doação”. Como se sabe, “não existe almoço grátis”. Salvo raríssimas exceções (se é que há), empresas não doam, emprestam. Não colaboram, investem. Os recursos “investidos" em uma campanha serão posteriormente cobrados com juros e correção monetária.
E quanto aos xerifes? No Velho Oeste, eles eram escolhidos diretamente pelos cidadãos. Em geral, preenchiam três critérios: tinham a confiança da comunidade, eram exímios no uso das armas (atiravam nas pessoas certas) e tinham a coragem de enfrentar tanto capangas quanto mandantes. Os filmes de faroeste mostram que os Jack Palances e Lee Van Cleefs não apareciam do nada. Estavam a serviço de chefões que os contratavam para intimidar pacatos cidadãos.
A Justiça Eleitoral foi fundamental para a moralização dos pleitos no Brasil. Podemos dizer que, hoje em dia, não é mais possível fraudar uma eleição. O voto dado a um candidato será computado para este mesmo candidato. Mas é possível fraudar a vontade do eleitor. É lícito eleger alguém que diga que representará o cidadão, quando na verdade representa um consórcio de empresas. É lícito eleger candidatos com discurso de mudança que farão o governo da mesmice. Parcela relevante da política é feita por jogos ocultos. O voto vendido é proibido. O voto vendado é válido.
Assentada a poeira de alguns tiroteios espetaculares que promoveu e do chumbo grosso que poderá trocar em 2012, julgando os políticos, o xerife tende a levar a culpa de problemas crônicos. Por exemplo, quando cassa Nero e o substitui por Calígula. Quando permite a eleição do Dr. Jekyll, mas se diz de mãos atadas quando este se transforma no Sr. Hyde - respectivamente, o médico e o monstro da ficção de terror.
O Judiciário não pode ser um bom xerife. Na berlinda, enfraqueceu sua relação de confiança com os cidadãos desde que tentou limitar a atuação do Conselho Nacional de Justiça, o xerife do xerife. Mesmo tendo melhorado sua pontaria com o uso de pistolas, elas são de curto alcance, embora mais barulhentas. O xerife caça corruptos, mas continua a tratar corruptores como vítimas.
Finalmente, o xerife não pode e em muitos casos não almeja ser um bom xerife. Já vimos juízes exímios no uso de rifles, que são mais silenciosos e miram os mandantes, sofrerem pressões internas e perderem seu distintivo, como aconteceu com aquele que dizia coisas do tipo:
"Na Idade Média, o foro privilegiado protegia as pessoas mais abastadas". "No Brasil de hoje, ele também virou instrumento de proteção". "Desse modo, para que Justiça?"
Em época de eleição, os inúmeros escândalos e o clamor por providências vão parar nos tribunais eleitorais. Neles se deposita a maior dose de cobrança para que os abusos sejam coibidos e quem os pratica seja punido. É uma tarefa inglória, como a de acabar com pernilongos batendo palmas.
Essa condição de xerife será reforçada com a Lei da Ficha Limpa, que ainda aguarda decisão final do Supremo sobre como será sua aplicação às eleições municipais deste ano. Benéfica em vários sentidos, a lei é limitada como remédio. Trata, mas não cura muitos males: o poder de muitos acusados em barrar investigações, a dificuldade na obtenção de provas e de sua aceitação como evidências incontestáveis, a morosidade dos processos até que ocorra a condenação em segunda instância, e o fato de que a corrupção política é capaz de sofrer mutações justamente para sobreviver ao antibiótico.
Além disso, o "controle de qualidade" na condução dos negócios públicos está em mãos de cúmplices de maracutaias escabrosas. Comprovar um crime depende de uma denúncia, o que, por sua vez, depende de um caluniador, ele próprio um malfeitor em quem não se pode confiar. É só quando uma serpente abre a boca que caem as poucas gotas para míseros frascos de soro antiofídico.
Como se isso não bastasse, mais preocupante é o fato de que uma das raízes da corrupção no país não é tratada como crime. Ao contrário, é regra. Trata-se do financiamento privado de campanha. Isso afeta o controle de qualidade da política que, por excelência, numa democracia representativa, deve ser feito pelas eleições.
O sistema eleitoral brasileiro não só permite como premia candidatos que são hábeis em amealhar recursos privados. O financiamento empresarial para candidaturas tem o eufemístico apelido de “doação”. Como se sabe, “não existe almoço grátis”. Salvo raríssimas exceções (se é que há), empresas não doam, emprestam. Não colaboram, investem. Os recursos “investidos" em uma campanha serão posteriormente cobrados com juros e correção monetária.
E quanto aos xerifes? No Velho Oeste, eles eram escolhidos diretamente pelos cidadãos. Em geral, preenchiam três critérios: tinham a confiança da comunidade, eram exímios no uso das armas (atiravam nas pessoas certas) e tinham a coragem de enfrentar tanto capangas quanto mandantes. Os filmes de faroeste mostram que os Jack Palances e Lee Van Cleefs não apareciam do nada. Estavam a serviço de chefões que os contratavam para intimidar pacatos cidadãos.
A Justiça Eleitoral foi fundamental para a moralização dos pleitos no Brasil. Podemos dizer que, hoje em dia, não é mais possível fraudar uma eleição. O voto dado a um candidato será computado para este mesmo candidato. Mas é possível fraudar a vontade do eleitor. É lícito eleger alguém que diga que representará o cidadão, quando na verdade representa um consórcio de empresas. É lícito eleger candidatos com discurso de mudança que farão o governo da mesmice. Parcela relevante da política é feita por jogos ocultos. O voto vendido é proibido. O voto vendado é válido.
Assentada a poeira de alguns tiroteios espetaculares que promoveu e do chumbo grosso que poderá trocar em 2012, julgando os políticos, o xerife tende a levar a culpa de problemas crônicos. Por exemplo, quando cassa Nero e o substitui por Calígula. Quando permite a eleição do Dr. Jekyll, mas se diz de mãos atadas quando este se transforma no Sr. Hyde - respectivamente, o médico e o monstro da ficção de terror.
O Judiciário não pode ser um bom xerife. Na berlinda, enfraqueceu sua relação de confiança com os cidadãos desde que tentou limitar a atuação do Conselho Nacional de Justiça, o xerife do xerife. Mesmo tendo melhorado sua pontaria com o uso de pistolas, elas são de curto alcance, embora mais barulhentas. O xerife caça corruptos, mas continua a tratar corruptores como vítimas.
Finalmente, o xerife não pode e em muitos casos não almeja ser um bom xerife. Já vimos juízes exímios no uso de rifles, que são mais silenciosos e miram os mandantes, sofrerem pressões internas e perderem seu distintivo, como aconteceu com aquele que dizia coisas do tipo:
"Na Idade Média, o foro privilegiado protegia as pessoas mais abastadas". "No Brasil de hoje, ele também virou instrumento de proteção". "Desse modo, para que Justiça?"
*Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
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