Eduardo Febbro, Paris - Opera Mundi, opinião – com foto
"Os torcedores radicais da equipe do Cairo e os do Zamalek foram os que mais se comprometeram no combate contra Mubarak"
Nas horas mais violentas da segunda fase da Revolução egípcia que fez da praça Tahrir o seu território de rebeldia, as torcidas organizadas egípcias atuaram como a tropa de choque que se enfrentou com a polícia nos combates mais cruentos que estouraram nos acessos à rua Mohamed Mahmud. Essa via conduzia ao Ministério do Interior e era, tanto para os manifestos quanto para a polícia, um lugar estratégico. Sem aqueles jovens de 20 anos fanáticos por futebol e oriundos dos bairros pobres do Cairo, sem sua cultura aguerrida dos enfrentamentos, a praça teria caído nas mãos da polícia. As torcidas organizadas que surgiram na América Latina nos anos 70 apareceram recentemente no Egito. Os primeiros grupos apareceram em 2005 e, quase imediatamente, entraram para a oposição ao regime do deposto Hosni Mubarak e aos membros de seu braço político, o PND (Partido Nacional Democrático).
Incontroláveis pelas estruturas patriarcais que dirigem os clubes de futebol, a maior parte das vezes aliadas de uma ou de outra forma com o regime, hostis ao comando do PND, furibundos contestadores da autoridade policial, a qual desprezam por sua endêmica corrupção e pela brutalidade insensata com que atuava, os « ultras », como são conhecidos, desenvolveram uma estrutura poderosa, rebelde e violenta.
Autônomos nos planos político e material, já que não dependem dos clubes com os quais simpatizam, eles fizeram da guerrilha contra as forças da ordem um estilo de vida. Seu desenvolvimento foi tão rápido quanto sua capacidade de se organizar. Os analistas egípcios davam conta de que, depois da Irmandade Muçulmana, os clubes de torcedores que nasceram nos meados do ano 2000, eram as estruturas mais organizadas do país. Duas torcidas se destacam entre todas : a White Knights, dos torcedores do clube Zamalek SC, e a dos torcedores do Al Ahly Sporting Club, um dos grupos envolvidos no massacre de Port Said.
Em outubro e novembro do ano passado, em plena revolta da Praça Tahrir, Carta Maior compartilhou com esses torcedores momentos de uma extrema violência e de uma grande solidariedade interna. Poucos dias antes das eleições que marcaram o ingresso do Egito em um sistema democrático mais aberto, os revolucionários de janeiro de 2011 voltaram a ocupar a praça para exigir da junta militar mudanças substanciais no dispositivo eleitoral, assim como a entrega imediata do poder aos civis. A polícia respondeu com mais virulência do que nas revoltas que desembocaram na queda de Hosni Mubarak. Mas as torcidas organizadas estavam ali para defender a praça Tahrir. Nada os dissuadia : estavam perfeitamente treinados para suportar os gases lacrimogêneos, pular paredes, atirar pedras e se chocar diretamente contra as unidades policiais especializadas em repressão urbana.
A Revolução egípcia unificou as torcidas por cima das rivalidades clubísticas. "Eles foram os atores determinantes da Revolução de janeiro. No dia 25, sem que ninguém os chamasse e sem que houvesse uma consigna posterior, eles vieram para defender a Praça Tahrir e dali não se moveram", lembrava Tamer, um advogado recém formado. Sua presença ficou gravada nos muros do Cairo junto aos grafites da revolução.
A consiga dos ultras, ACAB (All Cops are bastards, Todos os policiais são bastardos) ocupa tantos lugares quanto as consignas revolucionárias.
Graças à internet, aos telefones celulares e às redes sociais, a capacidade de mobilização destes grupos é tão massiva como instantânea. Os três principais nucleos de torcidas organizadas, Ahlawy, White Knights e Blue Dragons, atraem dezenas de milhares de pessoas em um piscar de olhos.
Calcula-se que esses três grupos são capazes de reunir cerca de 20 mil pessoas e levar para a rua mais de 50 mil. Sua influência chegou a tal nível que, durante os últimos anos de Kubarak, a policia ia prender os líderes das torcidas em suas casas e os julgava logo em tribunais militares.
Os torcedores radicais da equipe do Cairo, Ahly, e os do Zamalek foram os que mais se comprometeram no combate contra Mubarak. Não parece ser um acaso que tenham sido agora objeto de uma vingança sangrenta ante à passividade cúmplice da polícia. Omar, um cairota de 20 anos, membro dos White Knights, dizia em novembro de 2011 que a polícia egípcia era "uma assassina" e que se havia algo que era preciso mudar com urgência no país era "limpar esse corpo de torturadores e corruptos". Gasser Abdel Ruzek, um dos dirigentes da Iniciativa Egípcia para os Direitos Pessoais, contava no ano passado que os torcedores de futebol passaram da condição de fanáticos de um clube para a de "soldados" da liberdade.
*Artigo publicado originalmente no Carta Maior.
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