Correia Marques – Hoje Macau, opinião
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também.
Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também.
José Afonso, “Traz outro amigo também”
Li, na última página deste jornal da passada segunda-feira, o título bombástico e definitivo: “Ramos Horta baniu português». Alicerçado, apenas, no facto de as primeiras informações sobre uma possível recandidatura de José Ramos Horta à presidência de Timor-Leste só estar disponível em inglês e tétum, no novo sítio oficial da presidência. Não acreditei, não podia acreditar. Nem o coração, nem a razão o consentiam.
Pensei que o jornalismo atual é assim mesmo, sensacionalista, e que alguma razão de natureza operacional justificaria a referida omissão da língua portuguesa. E aí está, na última página do Hoje Macau de terça-feira consta a informação de que a situação terá sido corrigida ainda no passado fim de semana e que as informações já estão disponíveis na página da presidência de Timor também em língua portuguesa, estando a tradução ainda em andamento, de acordo com a agência Lusa.
Nunca pisei terras de Timor-Leste mas, nos anos 70 do século passado, convivi de perto, em Aveiro, com dois dos seus naturais que me fizeram sentir solidário com o destino das suas gentes. Um, o João, era o meu barbeiro, comunista, filho de pai anarco-sindicalista deportado para aquele território, por Salazar e por razões políticas, e de mãe autóctone. Outro, o Vitor, igualmente nascido em Timor de pai também deportado por razões políticas, ativista da UDP e companheiro das lides sindicais da função pública. Com eles festejei a independência, com eles me indignei com a invasão indonésia e, também com eles, me empenhei na solidariedade com a luta da resistência timorense. Depois, na década de 90, em Macau, conheci mais de perto a realidade timorense.
Mais tarde, em 1999, se a memória me não atraiçoa em setembro, Portugal parou, em silêncio, durante três minutos, em solidariedade com Timor pela reconquista da sua independência. E recordo-me das colchas brancas nas janelas e das flores lançadas ao Rio Mondego, em Coimbra, por trabalhadores de vários setores e categorias profissionais, nos quais me incluo com orgulho. Foi a maior onda de solidariedade a que assisti. Por isso não acreditei na notícia de que Ramos Horta teria banido o português. Isto porque ele conhece bem o papel do povo e da diplomacia portuguesa na vitória da luta do povo timorense contra a opressão e a ocupação indonésias. Como conhece bem os esforços de Portugal, apesar das suas dificuldades económicas, na ajuda a Timor seja na área da educação, seja na área da própria segurança interna.
Timor é um país independente e, como, tal livre para escolher o seu destino, os seus amigos e a (s) sua (s) língua (s) oficial (ais), assumindo as respetivas consequências políticas. Manter, ou não, o português como língua oficial é uma questão interna de Timor. Mas, se este país afastar o português do estatuto de língua oficial, será a primeira de todas as ex-colónias portuguesas a fazê-lo. É que todos os outros países de língua oficial portuguesa entenderam a importância da língua enquanto fator de comunicação entre populações com falas diferentes e, como tal, de unidade nacional.
Para além disso, o português, ao contrário do inglês que é a língua dos negócios e da rede virtual, é a língua dos afetos, dos laços de sangue.
Em Timor, como no Brasil, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em S. Tomé e Príncipe, em Macau, em Malaca e em tantos outros lugares, para além da vontade política em apagar ou em respeitar a história e os legados históricos, permanecerá, no seu melhor e no seu pior, a marca indelével do homem português.
No dizer de Miguel Torga, numa Conferência proferida aqui em Macau, no Salão Nobre do Leal Senado, em 9 de Junho de 1987: « Esse homem português, que começou na gruta do Escoural, se abrigou na Pala Pinta, imaginou o painel rupestre do Cachão da Rapa, tem pegadas indeléveis por todos os continentes, que neles foi imprimindo através dos tempos nas várias modalidades da sua acção. E são essas pegadas que nos afirmam e afirmarão pelos séculos dos séculos… Depois da nossa partida, continuaremos aqui, presentes em cada vínculo familiar, em cada apelido, em cada hábito, em cada vocábulo, em cada tempero, em cada reza, em cada ruína».
Ao povo timorense cabe decidir, designadamente através da eleição dos seus titulares de cargos políticos, se os seus filhos e os seus netos manterão os apelidos Ramos Horta ou Gusmão ou se os mesmos apelidos, por domínio canguru, se transformarão em «Kitchen-garden» ou «Gousmon».
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