Reflexão - A SUSPENSÃO DAS FUNÇÕES DE PRIMEIRO MINISTRO E RESPECTIVA CANDIDATURA ÀS PRESIDENCIAIS FACE AO ORDENAMENTO JURÍDICO GUINEENSE
Carlos Vamain – Gazeta de Notícias (Guiné-Bissau)
Um Estado de direito democrático constrói-se e afirma-se pelo respeito das normas, a começar pela sua Lei Fundamental, qual seja, a própria Constituição que ordena o Estado, organiza os seus poderes e, nomeadamente, a forma do acesso a esses poderes por parte dos seus cidadãos.
E, no caso guineense, na perspectiva de tornar efectivo esses pressupostos, o constituinte estabeleceu na Constituição um preceito fundamental para a afirmação do Estado de direito democrático, a saber: o princípio da legalidade dos actos do Estado, subordinando este àquele. O que significa que, na Guiné-Bissau, a validade dos actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição (Artigo 8º).
Assim sendo, torna-se preocupante, do ponto de vista jurídico, a atitude e o comportamento do Primeiro Ministro em se auto-suspender do exercício das suas funções para se candidatar para o cargo de Presidente da República, à revelia da Constituição e das leis da República que pretende presidir. Uma situação que nos leva a abordar a questão ora suscitada à luz da Constituição e das leis da República da Guiné-Bissau.
A suspensão de funções pelo Primeiro Ministro
A figura de suspensão, acto ou efeito de se interromper temporariamente o exercício das funções, no caso em espécie, as de Primeiro Ministro com o fito de se apresentar às eleições presidenciais, não está prevista no ordenamento jurídico da Guiné-Bissau. O que implica a sua não conformidade com a Constituição da República, no seu artigo 8º, que dispõe que a validade dos actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição, numa perspectiva da afirmação do princípio da legalidade.
A única possibilidade dada pela Constituição ao Primeiro Ministro para interromper as suas funções prende-se com a demissão, cujo pedido deve ser aceite pelo Presidente da República, nos termos do disposto no Artigo 104º, n.º 1, c) da Constituição da República, acarretando ipso facto a queda do Governo.
Ora, no contexto actual em que se encontra o país, presidido por um Presidente da República interino em consequência do impedimento definitivo do Presidente da República, torna-se impraticável o recurso à disposição constante do Artigo 104º, n.º 1, c) da Constituição.
Assim, em face do disposto no Artigo 8º da Constituição da República, é inexistente, do ponto de vista jurídico, a decisão do Primeiro Ministro de se auto-suspender as suas funções. Portanto, inoperante e sem efeito na ordem jurídica guineense, podendo-se incorrer na prática consequente do crime de responsabilidade de titular de cargo político previsto e punido pela Lei n.º 14/97 de 2 de Dezembro. Isto porque a subversão da ordem constitucional não deve ser visto tão-só como apanágio dos militares. Pois todos os guineenses devem obediência à constituição e às leis como forma de construção de uma sociedade pacífica e justa na qual impera a lei e não o arbítrio.
A candidatura do Primeiro Ministro à luz do disposto no Artigo 65º da Constituição da República
Em decorrência do princípio da legalidade estabelecido pelo Artigo 8º da Constituição e pelo facto de o Primeiro Ministro não dispor da possibilidade constitucional de se demitir das suas funções, em razão da impossibilidade constitucional do Presidente da República interino de aceitar a respectiva demissão e a sua consequente exoneração, torna-se evidente, a todos os títulos, que o Primeiro Ministro está impossibilitado, constitucionalmente, de se candidatar às eleições presidenciais.
Senão, vejamos: a incompatibilidade do exercício das funções de Presidente da República com quaisquer outras funções de natureza pública ou privada (Artigo 65º da Constituição), pressupõe que uma vez eleito o Primeiro Ministro para o cargo de Presidente da República deve, previamente à cerimónia da sua investidura nos termos do disposto no Artigo 67º da Constituição, demitir-se e ser exonerado pelo Presidente da República cessante. Caso contrário, estar-se-á em face da violação flagrante da Constituição da República. Pois, esta não fora feita para o António, Carlos ou M’baná, mas sim para todos os cidadãos guineenses e de forma abstracta. Assim, todo o cidadão é suposto conhecê-la e respeitá-la.
Ora, como o Presidente da República interino não dispõe da competência para aceitar a demissão do Primeiro Ministro e nem de o exonerar (Artigo 71º, n.º 4 da Constituição) caso o Primeiro Ministro vença as eleições ficará impossibilitado, constitucionalmente, de exercer o cargo de Presidente da República por impossibilidade constitucional de ser investido no cargo. Donde a necessidade de respeito pela ordem constitucionalmente estabelecida por todos os actores políticos em particular e, em geral, por toda a população da Guiné-Bissau.
Em suma, a eleição de um candidato ao cargo de Presidente da República não o torna ipso facto Presidente da República ao ponto de este se «auto-exonerar» sem pôr em causa o princípio fundamental que nortea o Estado de direito democrático: o princípio da legalidade. Isto porque, em direito público não se presumem direitos, nem obrigações. E, no caso em espécie, tratando-se da matéria constitucional, todo o tipo de conclusão deve fundamentar-se na Constituição e nas leis dela emanadas em conformidade com as suas disposições. Assim, não está em conformidade com a Constituição da República da Guiné-Bissau a auto-suspensão do Primeiro Ministro, que conduz inexoravelmente o Governo na ilegalidade. Isto, por um lado, pelo facto de não dispor o Primeiro Ministro da competência para nomear o seu sucessor e, por outro, pelo facto de a lei eleitoral não se aplicar à suspensão do mandato de Primeiro Ministro, enquanto titular de cargo político, mas tão-só a funcionários públicos e demais trabalhadores dos sectores público e privado, por força do regime de incompatibilidade imposto pelo Artigo 65º da Constituição.
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