Gonçalo Amarante – Liberal, opinião, em Colunistas
Um povo que desconhece a sua história corre o risco de incorrer nos mesmos males. A narrativa que passa a desenvolver-se tem como heroína uma humilde mulher da vila do Tarrafal de Santiago, a Polónia, que, na era colonial enfrentou com dignidade e coragem, o Administrador do Concelho.
Quando já velhinha, ela, não porque deseja-se evidenciar-se, mas porque achava serem saudáveis para a comunidade os exemplos de honradez e firmeza, pediu-me que viesse a publicar o sucedido.
Três eram os traços físicos e especialmente notórios no dito administrador: era nédio, careca e faiscava-lhe uma carranca severa.
A sua índole pesporrente era exponenciada pelo “status” do administrador. Naquela altura perdurava a secular destrinça entre oprimidos e opressores, reclamando estes que aqueles lhes rendessem um culto quase idolátrico. Despótica e caprichosamente, o administrador punha e dispunha sobre esta gentalha, por ele considerada de despicienda, contrariando-lhe até os mais elementares e naturais gestos e atitudes de dia-a-dia.
Entre os perversos atributos desse fulano figurava a chafurdice sexual com várias amantes, pelo que ele não apenas na mira de acantonar, desarticular e aquietar politicamente as gentes, mas também com o intento de afastar “mirones” e até, eventualmente, deliberar-se de concorrentes na abordagem às damas, determinou que, a partir das dezanove horas, nenhum jovem andasse pelas ruas e se apostasse em qualquer esquina.
A quem fosse abarbatado como infractor era rapado o cabelo, chicoteado e atirado para choça.
O terror imposto era de tal ordem que muitos pais aconselhavam os filhos a irem assentar praça ou a arrumarem, como contratados, para as roças de São Tomé e Príncipe.
O tirano tinha às suas ordens uma horda de mal feitores que, cavilosa e perfidamente, espiavam e denunciavam, sendo rechaçado implacavelmente até o mais ténue trejeito de descontentamento, em relação ao “status cuo” que pretendia eternizar.
Quem tivesse o azar de deparar, onde quer que fosse, com esse crápula e algoz, logo era acometido de fulminante tremor e desfazia-se em vénias e salamaleques.
Com uma alma cheia de entulho não percepciona o Amor ( que é um Dom de Deus), as relações sexuais desse homem com as diversas amantes eram, evidentemente, meramente mecânicas e, logo o frenesim em ir descartando sensações já “gastas”, buscando novas experiências.
A dada altura, abate-se-lhe a cupidez sobre uma bela rapariguinha de quinze anos. E, é claro, conforme no-lo atestam séculos de História, aos opressores tudo fica bem, nada se nega e mais: face à sua sacra importância, têm que ser servidos, além de rastejantemente, sem demora.
Transferiu para os pais da moça certos valores, ou seja, fez um simulacro de “negócio” que lhe deixou a sensação no baixo-ventre (sim, talvez a nível do baixo-ventre!) de ficar autorizado no tocante ao acometimento contra as “vergonhas” da infeliz.
Mesmo junto à habitação onde ele acometia a moça, morava a Apolónia, tendo esta o hábito de permanecer até altas horas no pátio da casa a saborear a brisa do crepúsculo e da noite. Incomodava-o essa presença aí.
Mandou, pois, um guarda de serviço entregar à Apolónia uma intimação no sentido de jamais no pátio permanecer, a partir das dezanove horas.
Ela, porém, persistiu no velho hábito, pelo que logo foi intimada a aparecer no gabinete.
Ele interrogou-a e increpou-a, trouvejantemente, bem depressa se tendo dado conta de que tinha, perante si, uma mulher respeitosa, inteligente e afoita.
Ela riposta, com bem notória preocupação de respeito, mas sem abdicar de uma forma firmeza que o faz estrebuchar de cólera. O que é?!
Admitir que uma abjecta criatura o contraria, isso não! E, vai daí ele assevera cinicamente à Apolónia que de imediato, o guarda rapará de palmatória e a fustigará.
Imperturbável, talvez até espontaneamente perpassada por discreto sorriso de altivez, ela crava nele um olhar tão transparente como estas palavras que lhe dirige: Tenho, com todo o respeito - a dizer ao Senhor Administrador que o pátio é meu, porque a casa é minha.
Acometido o tirano de um momentâneo lampejo, diz-lhe que, para que surra venha a ser ainda mais impiedosa lhe vai deixar aquela noite para reflexão, voltando ao interrogatório no dia seguinte. Assim sendo, não chegou à polónia a exibir a faca que levava disfarçado sobre as vestes.
No interrogatório do dia seguinte, as mesmas desabridas increpações por parte dele e, tocante a Apolónia, sempre muito respeitosa, a mesma determinação. E insiste assertiva:
Tenho, com todo o respeito, a dizer ao Senhor Administrador que o pátio é meu tal como a cãs é minha, tendo-a, à custa de muito suor, conseguido para mim e meus filhos.
O administrador ordena, tonitruante, o começo da surra. Já erguida à palmatória, a polónia saca da faca do saiote e brandia, ameaçadora, ora no enlace do administrador, ora no do guarda presente.
Os seus algozes demandaram ante esta mulher enfurecida. E tão fácil era fazer a leitura da reacção da vila do Tarrafal de Santiago: toda a gente, aquela esmagadora gente, lhe enaltecia e agradecia tal coragem.
Perante a atitude afoita da Apolónia e face ao vislumbre de que massivamente a vila do Tarrafal de Santiago lhe era solidária, o Administrador esconde-se um pouco atrás daquilo que, afinal de contas, tinha de sobra: a cobardia.
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