terça-feira, 13 de março de 2012

ESSA PALAVRA AUSTERIDADE




Mário Soares – Diário de Notícias, opinião

1 A ideologia neoliberal desenvolvida pelos Estados Unidos, após o colapso do comunismo, no final do século passado, teve o seu momento de glória - na América e depois na União Europeia -, mas parece estar a esgotar-se. O seu grande trunfo cifrou-se numa palavra horrível: austeridade. Para engordar os mercados, valer aos bancos e para tornar mais ricos os magnatas, a austeridade está, com as medidas propostas, a destruir as classes médias, a aumentar em flecha os desempregados e a criar mais pobreza, paralisando a economia real, tornando inevitáveis a recessão e, portanto, atirando cada vez mais trabalhadores para o desemprego.

Os países da Zona Euro estão a perder o sentido do crescimento económico, dos valores éticos, da solidariedade e a pôr em perigo o contrato social, responsável por quatro décadas de paz, de bem- -estar, de democracia pluralista e de progresso. Tudo isso está em causa, uma vez que os dirigentes europeus aceitaram pôr os Estados ao serviço dos mercados e dos seus serventuários principais, as empresas de rating, que têm por função atemorizar os governantes e manipular os Estados...

A União Europeia, de Cimeira em Cimeira, tem dado pequenos passos para tentar emendar a mão - com a resistência persistente da chanceler Merkel -, embora o FMI, seguramente por influência dos Estados Unidos, e o Banco Central Europeu, desde que tem à frente um italiano de grande gabarito, Mario Draghi, tenham finalmente compreendido que a austeridade, por si só, levará a um desastre, que aliás está à vista. A Comissão Europeia também tem procurado expressar algumas preocupações que vão no mesmo sentido, mas entalada como está entre a chanceler Merkel e o ainda Presidente Sarkozy, a poucas semanas das eleições presidenciais, hesita e não tem dado nenhum contributo favorável.

O Tratado que há duas semanas foi subscrito por líderes de 25 Estados europeus e está ainda na fase de ratificação pelos Parlamentos nacionais parece já estar ultrapassado, havendo Estados que querem ir mais além. É evidente!

Sem um Governo europeu, financeiro e económico (e mais tarde político), não há austeridade que, por si só, valha à União, à beira do abismo. É, portanto, imprescindível para vencer a crise mudar de paradigma e ter uma estratégia política, financeira e social concertada e solidária. Não se trata só da Grécia, que acaba de receber uma ajuda financeira importante, nem da Irlanda e de Portugal. Hoje, há dois Estados, dos mais importantes da União - Espanha e Itália -, que estão a ser atacados pelos mercados e a esses a solidariedade europeia não lhes pode faltar, se quisermos que a União não sucumba, como projecto de paz, de democracia social e de bem-estar.

Para além dos que já estão em lista de espera, como a França, a Bélgica, a Holanda e a Áustria. Para não falar dos Estados de Leste. O Governo alemão não compreende que está a ficar isolado e que não pode - nem deve - germanizar a União Europeia. Abra os olhos, Senhora Merkel, que já não é sem tempo.

2 Portugal não vai bem. Infelizmente, é o que sinto todos os dias, pensando no que vejo nas televisões, no que leio nos jornais e no que oiço às pessoas com quem falo, por todo o País. A crise global está a fazer estragos imensos que se repercutem em Portugal. Mas há também causas próprias, que vêm de longe. Contudo, o passado pertence aos historiadores e o que conta, na atual emergência, é o presente e o futuro para onde caminhamos. É o que interessa aos portugueses.

O actual Governo, como se sabe, é adepto do neoliberalismo. Não o esconde e está no seu direito. Daí o tratamento respeitoso que tem com a troika, nalguns casos querendo ir além dela. Daí alguns cortes cegos e precipitados que tem feito e depois alguns recuos que as circunstâncias o obrigam a fazer. Os exemplos recentes da TAP e da Caixa Geral de Depósitos, entre outros, são a prova disso.

As políticas de austeridade paralisam a economia e estimulam a recessão. O desemprego cresce sem conta como o trabalho precário e a pobreza. As pequenas e médias empresas estão a falir todos os dias. Todavia, a procissão vai ainda no adro...

As privatizações já efetivadas não tiveram, até agora, a transparência que se impunha. E as que estão para vir, ainda são mais preocupantes, como a RTP 1, as Águas de Portugal, a TAP, entre outras. Há quem ganhe com essas operações, mas isso não está claro. O Serviço Nacional de Saúde, com os cortes já feitos - e os que estão para vir -, está a ser destruído, com o Estado Social, conquista maior dos Partidos de Esquerda, dos Sindicatos e dos trabalhadores.

Assiste-se assim a um recuo civilizacional imenso. Porquê? Porque não há dinheiro, dizem-nos. É caso para, legitimamente, perguntar: onde está o dinheiro que resulta dos cortes? Temos ao menos a esperança de que em dois ou três anos a situação vai mudar para melhor? Não creio. Os próprios economistas que aconselham a austeridade não dão qualquer certeza a esse respeito.

O descontentamento está a crescer muito, o que é perigoso. A criminalidade também, bem como a emigração forçada e os suicídios. Há que reagir, patrioticamente. A União Europeia vai ser obri-gada a fazê-lo, como se viu com o caso grego: foram-lhe perdoados cem mil milhões de euros, pela banca europeia. Foi um sinal importante. Com a Espanha e a Itália no estado em que se encontram - sem ignorar a França -, talvez seja o momento de o Governo português rene-gociar com a troika e deixar-se de complexos. Não devemos deixar degradar mais a situação!

Começa a haver medo na sociedade portuguesa. As pessoas não têm suficientes explicações do que está a acontecer, todos os dias. Há tremendos "buracos", sem que a população perceba quem foram os responsáveis. O enriquecimento ilícito não foi, até agora, punido. Os portugueses estão a perder a confiança na política e nos políticos. E desesperam: para onde vamos? Como e quando vamos sair da crise? Ora, o desespero é mau conselheiro. Os responsáveis do poder, eleito democraticamente, têm de, com humildade, dialogar com as pessoas e explicar-lhes como sair da crise. Não o têm feito.

A austeridade, com limites claros, é necessária. Mas é igualmente imprescindível reduzir o desemprego e aumentar o crescimento económico. Sem isso, a austeridade não serve para nada. E os portugueses sabem-no.

3 A erosão democrática. Assistimos, na União Europeia - e também em Portugal -, a uma certa e perigosa erosão democrática. Aproxima-se a data simbólica do 38.º aniversário da Revolução dos Cravos. É um bom momento para os portugueses refletirem com civismo - e os Partidos, no poder e na Oposição, os Sindicatos e as Associações Patronais - bem como a sociedade civil, saírem das rotinas, renovarem as suas estruturas e pensarem nos riscos que a erosão democrática nos pode causar. É importante reagir e não só atirar as culpas para os outros. No período de emergência que vivemos é indispensável reforçar a coesão nacional, defender a nossa Pátria, com quase nove séculos de uma história gloriosa e não permitir que o niilismo e o pessimismo nos invadam e inferiorizem.

Temos problemas muito sérios - um deles e dos mais importantes - é a maneira como a Justiça tem vindo a deixar-se desprestigiar. A corrupção é outro e tem a ver com o primeiro. Há outros conhecidos. Mas de momento não valerá a pena enumerá-los. O fundamental é recuperar a confiança em nós próprios, nas nossas elites intelectuais, científicas e artísticas - e sobretudo no nosso Povo, que tem bom senso -, ouvindo as novas gerações, tão inventivas e preparadas, como se tem visto em todos os domínios.

4 Vieira da Silva. Passaram, há poucos dias, quase despercebidos, os 20 da morte de Maria Helena Vieira da Silva, a mais excecional e mundialmente conhecida pintora portuguesa de todos os tempos. Embora haja um Museu, em Lisboa, Arpad Szenes-Vieira da Silva, bem localizado, tem infelizmente poucos quadros do casal. Por falta de apoios e de dinheiro, como sucede, tantas vezes, com o nosso tão rico património cultural.

Conheci Vieira da Silva e Arpad Szenes quando estava no exílio, em França, pela mão do pintor, amigo do casal, Cargaleiro. Visitei-os e fiquei admirador rendido de ambos. Relação que, com o tempo e a convivência, se tornou uma sólida amizade. Vieira era uma pessoa humana extraordinária, com uma enorme cultura e simpatia.Ofereceu-me alguns quadros e bastantes litografias. Viveu o 25 de Abril com paixão, fez o célebre cartaz com dizeres da sua grande amiga e poetisa Sophia de Mello Breyner. Conquistada a democracia, o casal veio, várias vezes, a Lisboa. Depois da morte do seu marido, húngaro, de origem judaica, de uma bondade e simpatia irradiantes e também um pintor excecional, espaçou as suas viagens.

Trata-se de um casal que não pode ser esquecido nem o Museu que tem o nome de ambos abandonado. Salazar negou-lhes, durante a guerra, a nacionalidade portuguesa. Mas tiveram, no pós-guerra, a francesa... Em ditadura tivemos desses deslizes imperdoáveis.

5 Coimbra veio a Lisboa. Na sala principal do São Jorge, Coimbra, "a encantada e quase fantástica Coimbra", no dizer de Eça, veio a Lisboa, na noite de 8 de março, oferecer um espetáculo único, "as guitarras, o canto e a poesia", dirigido por Carlos Carranca. Quando o fado de Lisboa acaba de ser reconhecido pela UNESCO, como património universal, Coimbra cantou, dançou e recitou poemas lindíssimos, quis demonstrar a sua solidariedade e apreço por Lisboa. A sala estava repleta e entusiástica, com pessoas de meia idade e para cima - algumas mesmo idosas - que cantaram, tocaram e dançaram como verdadeiros profissionais, sem o serem, porque quase todos são professores doutores ilustres. Faltaram talvez os jovens, à exceção da vice-reitora e reputada cientista Helena Freitas, que representava a Universidade e falou no início.

Zeca Afonso esteve sempre presente, com as suas canções e poemas e alguns outros, do tempo da resistência, como Adriano Correia de Oliveira, os poetas neorrealistas do Novo Cancioneiro, que a minha mulher recitou, entre outros ausentes mas presentes, como António Portugal e Manuel Alegre.

Sempre tive um grande fascínio por Coimbra, apesar de lisboeta dos sete costados. Vem isso desde a geração de 70 do divino Eça, que sempre tanto admirei. Permito-me por isso citar Eça: "Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio, atravessava (...) o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava (...). Então, perante este céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me considerei na vida." Antero, "um génio que era um santo"...

Este é o fascínio de Coimbra que marcou sucessivas gerações: o Mondego, o choupal, a lua, a velha novíssima Universidade, construída em cima de ruínas romanas, hoje quase ocupada por estudantes do sexo feminino, que ajudam a dar uma vida nova à velhíssima instituição. Foi essa Coimbra, com as suas capas e canções, que veio a Lisboa. Foi uma noite gloriosa. Adorei o espetáculo, que se prolongou pela noite fora. Obrigado, Coimbra!

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