Luciana Taddeo e Roberto Almeida, em Buenos Aires e Londres – Opera Mundi
Para analistas, guerra atrasou negociações, que agora estão em um beco sem saída; autodeterminação dos moradores deverá ser considerada
Um mapa da América do Sul estampa um grande cartaz na entrada de um supermercado das ilhas Malvinas. No entanto, o espaço entre o Chile e as fronteiras do Uruguai, Brasil e Paraguai é preenchido em azul, sem delimitação com o sul do Oceano Atlântico, sob a inscrição “Shit Sea”. Um bar chamado “Victory” confeccionou canecas com a imagem, mas traduziu a provocação: “Mierda Sea”.
Confeccionadas especialmente às vésperas do aniversário da guerra, as mensagens deixam clara a posição majoritária entre os habitantes da capital Porto Stanley: não querem ser as Malvinas Argentinas e sim as Falklands britânicas.
Nesta segunda-feira (02/04), o conflito entre Argentina e Reino Unido pela soberania das ilhas completa 30 anos, em meio à escalada retórica dos últimos meses, que agora opõe a presidente Cristina Kirchner e o primeiro-ministro David Cameron. Os motivos são semelhantes aos que culminaram com o confronto militar de 1982: orgulho, soberania, nacionalismo e interesses políticos.
Há algumas décadas, somente um punhado de ingleses sabia onde ficava este pequeno arquipélago do Atlântico Sul, ocupado pela coroa britânica em 1833, após a expulsão dos espanhóis que colonizavam as ilhas. Logo após a vitória na guerra contra a Argentina pela soberania do território em 1982, as Malvinas (ou Falklands) passaram a fazer parte do singular imaginário político do Reino Unido.
Com cacife incrementado, o alvo de disputa de apenas 12 mil quilômetros quadrados tornou-se cartada de um jogo que, ainda hoje, envolve blefes, bacias inexploradas com suposto potencial petrolífero e discursos com ranço colonialista. A pauta, concordam analistas britânicos e argentinos, é uma solução diplomática que obrigatoriamente passa pela soberania dos seus 2,5 mil habitantes.
No final das contas, são eles que decidem: Malvinas ou Falklands? As recentes manifestações dos “kelpers”, como são chamados na Argentina, indicam que a segunda opção continua fortíssima. O jornal local, Penguin News, crítico à presidente argentina Cristina Kirchner, chegou a classificá-la de “bitch” em seu site, o que foi rapidamente retirado do ar.
Para o Reino Unido, o preço para manter as ilhas como território ultramarino é alto e a crise econômica bate à porta. A “era da austeridade” implantada pelo primeiro-ministro David Cameron, conservador como sua predecessora no cargo durante a guerra, Margaret Thatcher (1979-1990), aumentou impostos e cortou gastos, expondo uma fraqueza no poderio britânico e dando margem a especulações. Com um grande porém: negociar as Malvinas envolve questionar a validade de uma campanha que deixou 255 mortos e, conseqüência disso, rancor em centenas de famílias britânicas.
Orgulho e conveniência
“As Falklands, em grande medida, não tinham qualquer valor antes da guerra. Depois dela, bilhões de libras esterlinas foram gastas em sua defesa. Hoje, o governo britânico não tem escolha, a não ser continuar defendendo as ilhas. Não é politicamente aceitável devolvê-las porque, em primeiro lugar, foram o cenário de um guerra recente, e também pelo dinheiro que já foi gasto em mantê-las”, afirmou ao Opera Mundi o pesquisador Benjamin Jones, do departamento de Defesa da King’s College, em Londres.
O sentimento é bastante diferente da dubiedade do período pré-guerra, quando as ilhas eram tratadas como relíquias de um império em decadência. A vontade dos moradores, durante a década de 1970, não estava na mesa. Defender as Malvinas, a 14 mil quilômetros de distância, era uma tarefa considerada impossível pelos britânicos, que assistiam a uma crise sem precedentes em seu próprio território no início dos anos 1980, com níveis de desemprego acima da casa dos três milhões.
As Malvinas contavam em 1982 com uma guarnição insignificante, muito diferente do que se vê hoje. A população é de 2.500; hoje os militares são outros 1.700. Antes da guerra os custos eram ínfimos, na década de 1980 passaram das 4 bilhões de libras esterlinas (cerca de R$ 11 bilhões).
Em uma entrevista ao jornal La Nación em 2006, Carlos Ortiz de Rozas, ex-embaixador argentino no Reino Unido durante a guerra pelas ilhas e ex-presidente da Assembleia Geral da ONU, conta que antes do golpe de Estado que deu início à ditadura militar argentina (1976-1983), Buenos Aires e Londres estavam “muito perto” de chegar a uma solução diplomática para o conflito.
Segundo ele, em 1971, o governo de Juan Domingo Perón assinou um “acordo de comunicações” que previa a permissão para que os habitantes das ilhas estudassem em colégios ingleses na Argentina e que a YPF (Yacimentos Petroliferos Estatales), então estatal, se estabelecesse nas ilhas.
Três anos depois, a embaixada britânica em Buenos Aires propôs a Perón um convênio –aprovado pelos conselhos legislativo e executivo das ilhas – que daria dupla nacionalidade aos habitantes das Malvinas, que teriam governadores nomeados alternadamente pelo Reino Unido e pela Argentina. Perón aceitou, mas morreu duas semanas depois e o documento não chegou a ser assinado.
Sua esposa e sucessora, María Estela Martínez de Perón, conhecida popularmente como “Isabelita”, acreditava não ter força política para convencer a opinião pública dos benefícios da “soberania divida”. O confronto armado levado a cabo em 1982 pela ditadura – iniciada após o golpe que derrocou Isabelita em 1976 - arruinou as possibilidades de acordo. Para Ortiz de Rozas, a guerra foi uma decisão política “equivocada e dramática” que “atrasou o relógio da história por muitíssimo tempo”.
Desde então, a soberania britânica continua uma questão “emotiva”, acima da econômica. A administração das ilhas é deficitária. A economia gira em torno de um parco turismo e pesca de lula. A maior parte dos empregos é gerada pelo governo britânico. A exploração de petróleo nas bacias do Atlântico Sul trariam um alto custo, com o qual o Reino Unido já afirmou que não arcará sozinho.
“O governo britânico adoraria reduzir os gastos com a guarnição, por exemplo. Mas não há resolução do problema de soberania enquanto os moradores das ilhas queiram permanecer submetidos ao Reino Unido. Para a atual administração britânica, a autodeterminação da população das Falklands é ponto-chave, enquanto para os argentinos trata-se de uma área física, que poderia ser parte de seu território”, apontou Jones. “Eu não vejo solução”.
Tensão crescente
A disputa pela soberania das ilhas ganhou novos capítulos com a proximidade do aniversário da guerra. Durante seu discurso na 66ª Assembléia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), em setembro do ano passado, a argentina Cristina Kirchner afirmou que os recursos naturais pesqueiros e petroleiros das Malvinas são “subtraídos e apropriados ilegalmente por quem não tem nenhum direito”.
A presidente peronista acusou o governo britânico de ignorar resoluções da Assembleia da ONU e da OEA (Organização dos Estados Americanos) de que a soberania das ilhas deveria ser dialogada: “Diversos fóruns (...) do mundo inteiro reclamam através de resoluções e declarações o tratamento desta questão e o Reino Unido se nega sistematicamente a cumpri-lo e obviamente utilizado sua condição de membro do Conselho de Segurança com direito a veto para isso”, alegou.
Cristina Kirchner chegou a ameaçar a permanência da permissão dos voos que partem do Chile em direção às ilhas sobrevoando o território argentino. Também afirmou que “não é necessário ressaltar que ninguém pode alegar domínio territorial a mais de 14.000 km de ultramar”, queixando-se das “verdadeiras provocações, ensaios de mísseis em maio e julho” do ano passado.
O agravante da troca de faíscas foi a acusação feita pelo primeiro-ministro britânico de "colonialismo" argentino pela insistência em reivindicar as Malvinas, informando que convocou o Conselho Nacional de Segurança de seu país para abordar a situação nas ilhas. O aumento do tom se deveu ao apoio recebido pela Argentina de países do Mercosul, da Unasul e da Celac, que concordaram em bloquear a passagem de embarcações que ostentem a bandeira ‘ilegal’ das Malvinas por seus portos.
Em fevereiro, o envio de um navio de guerra do Reino Unido à região, quase ao mesmo tempo em que o príncipe William, herdeiro da coroa britânica, chegou às ilhas para a realização de exercícios militares como piloto de caça, foi classificado de “irresponsável” pela presidente argentina, que pediu a Cameron que desse, “pela primeira vez, uma chance à paz e não à guerra”.
Dias depois, a diplomacia argentina denunciou a militarização do Atlântico Sul às Nações Unidas, argumentando que a Grã-Bretanha não cumpre com o tratado de Tlatelolco, que proíbe armas nucleares na América Latina, devido ao envio de um submarino nuclear à região em disputa.
“O Atlântico Sul é, talvez, o último refúgio de um império em decadência. É o último oceano que controlam”, disse, na ocasião, o chanceler argentino Héctor Timerman, denunciando que a capacidade militar britânica nas Malvinas tem alcance para atingir todo o território argentino e uruguaio, a metade do chileno e o sul brasileiro.
Visão alternativa
Como reação ao aumento das tensões, um grupo de intelectuais, jornalistas e políticos argentinos - entre os quais se encontram a socióloga Beatriz Sarlo e o jornalista fundador do Página 12 - , assinaram uma carta aberta, há um mês e meio, em que propõe uma “visão alternativa” para resolver o conflito.
“A afirmação obsessiva do princípio ‘As Malvinas são argentinas’ e a ignorância ou desprezo do avassalamento que este supõe debilitam a reivindicação justa e pacífica de retirada do Reino Unido e sua base militar, e fazem impossível avançar em uma gestão dos recursos naturais negociada entre argentinos e habitantes das ilhas”, escreveram, propondo não a incursão ao patriotismo, mas sim o abandono da “causa Malvinas” para “elaborar uma visão alternativa que supere o conflito e contribua para sua resolução pacífica”.
Um dos autores, Vicente Palermo, pesquisador principal do Conicet (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas) e membro do Clube Político Argentino, acredita que a estratégia diplomática de chegar à ação conjunta regional para impedir a passagem de barcos às Malvinas é “um erro”. “Governos como Chile, Uruguai e Brasil estão reticentes em relação a esta medida, que poderia implicar em custos econômicos e políticos. Esta não seria a melhor solução para desmilitarizar a região”, explicou ao Opera Mundi.
Para o pesquisador, a resistência dos habitantes das ilhas aos avances argentinos é compreensível e a saída para neutralizar o conflito seria uma redefinição global da questão, “uma mudança de 180º”. “A alternativa supõe a oferta de uma cooperação multidimensional que deixe de lado a soberania e inclua os recursos econômicos, energéticos, pesca, turismo, preservação do meio ambiente”, disse.
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