Rui Peralta*
O arco da crise
A mancha de instabilidade, que tem feito subir audiências no negócio dos vasos comunicantes, vai seguir duas direções: uma do Norte de África para o Médio Oriente, tendo como objetivo Damasco e Teerão, a outra, partindo do mesmo ponto (o Norte de África) avançando para o interior do continente, começando a afetar a vasta região do Sara e do Sahel.
A posição geoestratégica da Líbia, a sua proximidade á Europa, tornou este pais num ensaio apetecível, enquanto os esforços fingidos dos líderes africanos, criando uma ridícula peça de teatro do absurdo, com a mascarada hipócrita do diálogo entre as partes (como se o conflito não fosse a continuidade do dialogo), mais pareciam aquela anedota da matrona desejosa de sexo, mas que ao ser apalpada pelo jovem mancebo, carregado de ansiedade glandular, resiste ao impulso de saltar para cima do jovem e começa a gritar, baixinho, esperançada que as mãos e a língua do jovem continuem a fazer o seu trabalho libidinoso.
A divisão da Líbia em parcelas, ou a sua unidade aparente, não é o fundamental para os interesses geoestratégicos da NATO, mantendo-se o joguete da Conferencia de Berlim através dos séculos e criando-se uma ponte de infiltração para o avanço da instabilidade numa África que nunca conseguiu a unidade, mantendo-se sempre na sombra dos tratados coloniais que definiram-lhe as fronteiras internas.
Na Líbia encontram-se respostas para o que aconteceu no Sul do Sudão, talvez o grande balão de ensaio desta apurada estratégia, que demorou décadas a apurar e a definir. A fragmentação do Sudão foi o primeiro sucesso de uma política de redesenho do mapa de África. É a continuação da velha máxima do Império Britânico: Dividir para reinar. Quanto maior for a divisão entre os africanos mais fácil torna-se o acesso a baixo custo às matérias-primas.
As fronteiras mantidas teimosamente pelas independências, como nunca foram dados soluções constitucionais nem progressos nas políticas de integração e descentralização, acabaram por ser uma armadilha para os povos africanos. Por outro lado as características das elites políticas e económicas africanas, corruptas, demagógicas, ávidas de dinheiro, indiferente aos anseios das populações que administram, sem noção do que é o bem público, do que quer dizer gestão democrática, desenvolvimento, futuro, acabou por gerar toda esta situação. Nestas situações junta-se a fome á vontade de comer. E em África os povos têm vontade de participar, de deixar de ser coagido, de viver…Kadhafi, é certo, era uma sanguessuga e não diferia em nada de outros seus colegas governantes, fossem eles camaradas, companheiros, irmãos ou adversários. Tentou nos seus últimos anos ser uma espécie de polícia de emigração, protetor fronteiriço da Europa, mas o seu destino deve ter sido traçado no Pentágono e na OTAN, desde há muito.
Se na Líbia pós Kadhafi as coisas funcionam ou não, se fica una e indivisível ou se somaliza, isso é indiferente às potências da OTAN, aos BRICS e outros clubes de investidores. A fragmentação parece ser uma eventual solução. A tendência aponta para ai. A Cirenaica declarou a sua autonomia. Misrata desafia o novo regime, os combates prosseguem um pouco por todo o lado, até nos arredores de Trípoli, Bani Walid continua a ser um baluarte dos defensores do antigo regime e em Sabha, a uns setecentos e tal quilómetros a Sul de Trípoli, as milícias têm atacado a tribo Toubu, etnia negra do Sul da Líbia, que estende-se pelo Chade e Níger, demonstrativo do racismo que as novas autoridades líbias parecem cultivar contra os negros, acusando-os de serem mercenários do Kadhafi, o que pode acabar por unir populações dispersas pelos Sahara e Sahel que sempre mantiveram boas relações com o regime de Kadhafi. Sinal disso a recusa do Níger em entregar aos novos senhores líbios um dos filhos de Kadhafi, que ai está refugiado, em Agadez, com diversos militares líbios que abandonaram Bani Walid. África está a ser penetrada, sodomizada será o termo mais indicado.
As Primaveras Árabes em Africa, na Tunísia e no Egipto, a desagregação do Sudão, os acontecimentos da Líbia foram as primeiras ratoeiras. Ao oeste africano são aplicadas armadilhas baseadas no mesmo conceito. As disputas sobre o petróleo e outras riquezas naturais provocam, tal como nos tempos áureos das disputas coloniais, a ingerência, a manipulação, o agenciamento das elites nacionais e o redesenhar das cartas geográficas. É uma neocolonização criadora de estados que leva á proliferação de identidades nacionais.
O pack experimentado no Sudão é aplicado na Nigéria, uma Federação cada vez mais enfraquecida e dividida pelas divisões Norte – Sul, Islão – Cristianismo, o mesmo acontecendo na Costa do Marfim. Na Guiné-Bissau, onde pululam os laboratórios de droga no arquipélago dos Bijagós, formados pela junção de dinheiro sujo das elites africanas e dos traficantes sul-americanos, manipulam-se políticos e militares, farejando as vastas reservas de bauxite.
No fundo é o mesmo pacote, bem ensaiado, que já produziu resultados nos anos sessenta no Congo de Lumumba, que produziu Senghor o deputado francês da teoria da negritude e Mobutu o sargento francês da politica genocida da autenticidade, o mesmo pacote de medidas que desestabilizaram Angola e Moçambique, relançadas e renovadas frequentemente, num sucedâneo de renovações que têm como único objetivo o agenciamento das elites e a repressão dos anseios populares por uma vida melhor e por um futuro de paz, liberdade e justiça social.
*Rui Peralta, um novo elemento do coletivo que "alimenta" o Página Global. Este é o seu primeiro conteúdo publicado em Página Global. Muitos outros se seguirão. Damos-lhe as boas-vindas.
Sem comentários:
Enviar um comentário