domingo, 13 de maio de 2012

AMPLA CIDADE


Arte de Malangatana
Rui Peralta

Estamos juntos

Tenho um amigo judeu, Chris Two é o seu nome, filho de pai irlandês e de mãe dinamarquesa (de origem judaica) e que por isso tem as duas nacionalidades, vivendo em Itália, repartindo a sua vida entre Turim, onde dá aulas na respectiva universidade e Veneza, onde tem um delicioso restaurante cujo mestre de cozinha (que é também sócio) é um Palestiniano casado com uma boliviana (também sócia do restaurante) que desempenha as funções de chefe-de-sala.

Numa bela tarde Chris Two tomava um longo banho de imersão. Estava uma tarde quente, as ruas da cidade pareciam fumegar como a chaminé de um vulcão. O sol brilhava com uma intensidade invulgar e o calor penetrava na alma ardente.

Foi quando ela do nada surgiu. Chris sentiu a presença estranha. Abriu os olhos e viu um anjo feminino de pele castanha, com asas brancas, que sorriu com o olhar felino.

Visão perturbante. Chris ergueu-se, assustado com o anjo deslumbrante. O ser angelical fez-lhe apenas um sinal, dedo indicador espetado, ao nariz encostado (gesto arrogante). Chris não falou e nem um gesto esboçou.

Ficou imóvel e calado apreciando a feminina e angélica beleza felina. Quanto tempo passou nesta contemplação? Segundos, minutos, horas, ou…Seria uma alucinação? Sentia-se fascinado de forma estranha pela pele castanha daquele sublime corpo alado.

O anjo, por sua vez, nada disse e nada fez, limitando-se a permanecer imóvel, com as asas abertas, olhando para Chris, como a dizer: “Aceita as minhas ofertas”. O anjo as asas moveu e no nada desapareceu.

Chris Two da banheira saiu, com uma toalha posta, questionando o que viu mas sem resposta. Talvez o calor o tenha afetado (com esta ideia sorriu). Mas aquele anjo revelador, a sua beleza e a súbita aparição, deixava-o intrigado. Mal refeito da situação buscou a sageza no sofá sentado, a apreciar a frescura do ar condicionado. Procura a solução enquanto a pele se arrepia e a cabeça rodopia.

Foi então que ela surgiu de súbito ao seu lado (de onde ele não viu). “Quem és tu? Que queres de mim?” Questiona Chris Two. “Sou o Anjo teu” disse o ser alado Chris interrogou, assustado: “Um Anjo? O Anjo meu?” Ela respondeu: “Vem comigo, não fiques assim”. A cabeça de Chris disse que sim.

Os lábios ela não os movia, mas aquela voz serena ele a ouvia, a voz aquela, transmitindo tranquilidade plena. “Ir contigo?” Ele perguntou, ao que o anjo respondeu: “Ao Paraíso! Vem...” Disse o belo ser. “O Paraíso? Vou morrer?” O pânico tomou a alma dele e ela sentindo o medo que ele tem. “Vem comigo” sua mão estendeu.

Chris Two, temeroso, pegou na mão estendida e o anjo num ápice o transportou a uma planície de verde revestida.

Esta aventura do meu amigo Chris continua pelo que irei descrevê-la, tintim por tintim, exactamente como ele contou-nos, a mim e aos seus dois sócios, durante as várias publicações da Ampla Cidade, para que a partilhem comigo. Foi uma história que impressionou-me, de tal forma que nessa noite sonhei com um anjo feminino de pele castanha a quem ofereci mil flores coloridas... (Afinal os anjos têm sexo...).

Mas vamos lá ao motivo de hoje que tem um pouco a ver com o sexo dos anjos. Os escribas da demagogia que vivem da prosa verbosa da luta contra o que eles chamam “regime angolano”. É uma coisa que nunca encontrei em nenhuma obra de ciência politica essa noção de regime angolano. Já fiz várias pesquisas nesse sentido, nas mais diversas bibliografias sobre os regimes mas nunca encontrei nenhuma que definisse esse fantasma de alguns profissionais do verbo fácil: o terrorífico regime angolano. Houve até uma altura em que andei a fazer estudos comparados entre o regime constitucional de Angola com outros, europeus, asiáticos, africanos, sul-americanos e francamente não vejo onde é que a Republica de Angola, em termos constitucionais e no funcionamento das instituições seja assim tão terrificamente especifica.

É claro que temos podres e corruptos e incompetentes e ladrões de gado e assaltantes de bancos (aos quais nem o BNA escapa) e oportunistas que nunca mais acaba e racistas e xenófobos e bufos e vendidos e vendilhões e bajuladores e mentecaptos e assassinos e suicidas e lambe-botas, sapatos e chinelos, para além dos que cultivam o fetiche dos pés, feiticeiros e metafísicos e fascistas e papistas e seitas e pedófilos e tarados e policiomaníacos e militaristas e um monte de jabardice e uma lista extensa que nunca mais acabava se fosse mencionar item a item.

Mas temos uma outra lista, muita mais extensa que a anterior, dez vezes mais, no mínimo, de luta, sacrifícios, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, momentos de indescritível glória, orgulho, inteligência, perspicácia, subtileza, que só nos honra. No passado, no presente e no futuro que construímos a pulso.

         Derrotámos o colonial-fascismo, numa luta árdua de guerra de libertação nacional, internacionalista na solidariedade com os povos da Guiné, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, de Moçambique, de Timor e de Portugal. Depois vieram os mobutistas que espezinhavam o seu povo e os racistas do apartheid apoiados pelo arsenal do imperialismo, derrotados pela nossa frontalidade e pela solidariedade dos povos da Namíbia e da Africa do Sul e de Cuba e da Linha da Frente. Depois os agentes internos dos interesses externos. E estamos aqui, em paz, com um passado de luta vitoriosa, certos da vitória na continuidade da luta, agora na batalha do desenvolvimento, numa sociedade democrática, deficiente é claro, porque não existem paraísos, conscientes de um caminho árduo que ainda temos pela frente, dos imensos problemas por resolver, cometendo erros, corrigindo, tornando a cometer erros, continuando a corrigir, enquanto a luta de classes persegue a sua dinâmica histórica.

         Estamos aqui e estamos vivos. Com a experiencia e a sabedoria dos sobreviventes. Sempre solidários. De Cabinda ao Cunene. Do Cabo ao Cairo. De Paris a Pequim. De Washington a Tóquio. Cientes de que a luta continua e de que a vitória é certa. Sempre com uma mão solidária estendida, prontos a dar o que temos.

         Quanto aos escribas, aos de lá e aos de cá, parafraseando o meu mais-velho camarada Martinho Júnior: “É dar-lhes com o pau!”

         Estamos juntos!

Sem comentários:

Mais lidas da semana